É o cristianismo nominal – e não o complementarismo – que leva ao abuso

Uma análise do Soft Patriarchs de W. Bradford Wilcox, New Men: How Christianity Shapes Fathers and Husbands. (Novos Homens: Como o Cristianismo Molda Pais e Maridos). Chicago: University of Chicago Press, 2004.

Na esteira da crise dos casos de abuso da Convenção Batista do Sul, uma pergunta está sendo feita: existe uma conexão essencial entre as crenças teológicas conservadoras sobre gênero e a família e os ambientes que promovem e toleram o abuso?

Um número crescente de pessoas, ao que parece, responderia “sim”. Por exemplo, um estudo recente que recebeu atenção no Christianity Today argumentou que as crenças calvinistas perpetuam os “Mitos da Violência Doméstica” por causa de sua correlação com as “visões binárias de gênero”, níveis mais baixos de aceitação da teoria da justiça social e ênfase nas relações hierárquicas. Mas o cristianismo conservador não é o único alvo. Em 2017 e 2018, a Australian Broadcasting Company publicou uma série de artigos detalhados destacando a violência e o abuso doméstico entre comunidades evangélicas, católicas, muçulmanas, judaicas e hindus na Austrália. Isso não é, necessariamente, algo novo. Após a adoção do Protocolo BFM2000 pela Convenção Batista do Sul, em 1998, incluindo a declaração sobre liderança masculina, dois jornalistas importantes argumentaram que esse tipo de retórica “pode ​​claramente levar a abusos, tanto físicos quanto emocionais”.

Alguns dados surpreendentes

Neste ponto, é útil recorrer a dados e fatos concretos. Em 2004, o sociólogo da University of Virginia, W. Bradford Wilcox, publicou um estudo monumental, “Soft Patriarchs, Novos homens: Como o Cristianismo Molda Pais e Maridos” (University of Chicago Press, 2004). Com base nos conjuntos de dados mais abrangentes e respeitáveis ​​disponíveis na época, a (Pesquisa Nacional de Famílias e Agregados, e a Pesquisa Social Geral), ele compara as convicções da média dos homens protestantes e conservadores sobre casamento, gênero e família. Ele então examina os efeitos dessas crenças em uma ampla variedade de comportamentos, incluindo atenção emocional, parentalidade e abuso. A utilidade deste estudo para a discussão sobre complementarismo e abuso é que, diferentemente do estudo mais recente de Wilcox, é o único que leva em consideração o efeito distintivo da participação na igreja nos protestantes conservadores.[i]

Sua conclusão e descobertas são significativas. De fato, longe de ser um corolário do abuso, Wilcox descobre que, quando combinadas com a frequência à igreja, visões teologicamente conservadoras sobre casamento e gênero realmente se correlacionam com menores índices de violência doméstica.

Nas palavras de Wilcox:

“Ao contrário do que afirmam as feministas, muitos estudiosos da família e críticos públicos, [homens protestantes conservadores que frequentam a igreja] não podem ser descritos, de maneira justa, como chefes de família “abusivos” e “autoritários”, casados sob influência de “formas estereotipadas de masculinidade”. Eles superam a média dos homens de família protestantes em sua dedicação prática e emocional a seus filhos e esposas … e são os menos propensos a abusar fisicamente de suas esposas.” (199-200).

Conclusões de Wilcoxc

De fato, seja qual for a métrica, os homens protestantes conservadores, que frequentam a igreja, superam todos os outros segmentos da população americana nas mesmas áreas em que seus críticos mais suspeitam que cometam erros. Wilcox descobriu que os homens protestantes conservadores que frequentam a igreja “passam mais tempo com seus filhos; são mais propensos a abraçar e elogiar seus filhos; suas esposas relatam níveis mais altos de satisfação com a admiração, carinho e compreensão que recebem de seus maridos; e eles passam mais tempo socializando com suas esposas”(206–207).

Novamente: “Esses homens são, consistentemente, o grupo de pais mais ativamente e emocionalmente envolvidos e o grupo de maridos mais emocionalmente envolvido, conforme mostrado nesse estudo” (191).

De fato, a ironia que Wilcox observa repetidas vezes é que protestantes conservadores, com “visões antiquárias” sobre gênero e família, se aproximam mais do novo “homem ideal” do liberalismo: gentil, emocionalmente atencioso, educador, sensível e amável. Nas palavras de Wilcox, “Esses homens adotam uma abordagem da vida familiar que se aproxima surpreendentemente do novo homem, ideal de envolvimento familiar ativo e emocionalmente expressivo, que é celebrado na sociedade em geral” (191). Ele continua:

Comparados à média dos seus homólogos não pertencentes a esse grupo, os homens casados conservadores protestantes com filhos, são consistentemente os pais mais ativos e expressivos e os maridos mais comprometidos emocionalmente. (195).

Mais importante, no que diz respeito à violência doméstica, Wilcox solta esta bomba:

“Vimos também que, contrariamente às previsões de seus críticos, homens protestantes conservadores que frequentam a igreja registram os menores índices de violência doméstica do que qualquer grupo deste estudo. De fato … os homens da família protestante conservadora que frequentam a igreja têm as mais baixas taxas de violência doméstica entre qualquer grupo religioso importante nos Estados Unidos. (207).

O significado dessa descoberta é impressionante. Como se vê, os homens com as opiniões mais “antiquárias”, sobre gênero e a família, realmente fazem o melhor trabalho para cuidar de seus cônjuges. Eles são de longe os menos propensos a abusar de suas esposas. E, embora façam menos trabalhos domésticos, eles fazem um trabalho melhor do que homens seculares e menos religiosos, em apreciar suas esposas (207).

Portanto, longe de se correlacionar com comportamentos e resultados negativos, “uma afiliação protestante conservadora, especialmente uma afiliação ativa, está associada a praticamente todos os resultados comportamentais analisados neste estudo” (197). A média dos protestantes com visões mais “liberais” sobre a família e gênero é mais baixa. Homens de fora desse grupo e não-religiosos também têm uma classificação mais baixa.

Mais para a história…

No entanto, há um outro lado importante. Enquanto os homens protestantes conservadores que frequentam a igreja registram os menores índices de violência doméstica, verifica-se que o oposto é verdadeiro nos homens protestantes conservadores nominais – ou seja, homens que se identificam como “protestantes conservadores”, mas não frequentam a igreja. Wilcox escreve:

“Comparados aos outros homens deste estudo, os [homens protestantes conservadores nominais] não estão seriamente envolvidos na vida emocional e prática de suas famílias, eles tem uma menor atuação doméstica e têm maior probabilidade de abusar fisicamente de suas esposas.” (200).

Mais uma vez, enquanto “os homens protestantes conservadores praticantes têm, consistentemente, os mais altos níveis de envolvimento prático e emocional na paternidade e no casamento”, verifica-se que “os homens de família protestante conservadora nominal não são muito diferentes dos seus homólogos não crentes, em suas práticas e investimento emocional na vida familiar, não são disciplinadores responsáveis, investem menor quantidade de esforço no trabalho doméstico e apresentam os níveis mais altos de violência doméstica do que qualquer outro grupo deste estudo.”(195).

Aqui está a conclusão: os homens protestantes conservadores que frequentam a igreja são os melhores em cuidar de suas famílias, e os protestantes nominais conservadores são piores em cuidar de suas esposas e famílias. A média dos homens protestantes não religiosos ficam em algum lugar no meio dessa estatística.

A igreja faz a diferença

Por trás disso, há outra verdade impressionante: visões conservadoras sobre casamento e família não são suficientes, por si só, para criar famílias e casamentos saudáveis. A participação e os membros da Igreja fazem uma enorme diferença.

Figura: Maridos (Protestantes) que cometem violência doméstica. Fonte: NSFH2 (1992-1994)

Wilcox chama esse fato de “uma das descobertas mais impressionantes deste estudo” (202). Nas palavras dele:

“Os pais de famílias protestantes conservadoras nominais parecem estar singularmente afastados da vida familiar – especialmente em comparação com seus irmãos protestantes conservadores praticantes. Se minhas descobertas sobre a violência doméstica são alguma indicação, é a de que esses homens reacionários, e suas parceiras, provavelmente estejam liderando o típico caminho dos comportamentos familiares – divórcio, problemas conjugais, negligência infantil – que os protestantes conservadores veem como frutos venenosos da modernização familiar. (202).

De fato, é tão grande a lacuna comportamental entre homens protestantes conservadores nominais e homens protestantes conservadores que frequentam a igreja, que Wilcox especula que “o comportamento conjugal distintamente ruim dos homens protestantes conservadores nominais pode explicar o fato de que alguns estudos revelam que os protestantes conservadores se divorciam em uma taxa mais alta que a população em geral” (198). Em uma frase, os evangélicos nominais estão fazendo o restante dos evangélicos parecerem ruins.

Wilcox até observa que essa “divergência” entre crença e prática é verdadeira para os protestantes conservadores de uma maneira que não é verdadeira para a média dos protestantes. Estatisticamente falando: “A relação entre as crenças e comportamentos da média dos protestantes e as ideologias de família e gênero da média das instituições em geral, está mais próxima ao continuum, enquanto a relação entre as crenças e comportamentos dos protestantes conservadores e as ideologias de família e gênero de instituições protestantes conservadoras está mais distante em relação ao continuum”(194). Em outras palavras, se para a média dos homens protestantes frequentar a igreja tem pouco ou nenhum efeito em seu comportamento. Isso faz uma enorme diferença para os homens protestantes conservadores.

Para concluir, esse estudo preenche a lacuna entre duas intuições aparentemente contraditórias. Por um lado, como evangélicos, acreditamos convictamente, e muitos de nós já experimentamos pessoalmente, que o complementarismo é bíblico e bom. Por outro lado, muitos estão compartilhando seus históricos de uma teologia complementar que coexiste e talvez até facilite o abuso. Esse estudo dá, a ambos os conjuntos de intuições, seu lugar apropriado, reconhecendo a bondade inerente do complementarismo quando praticada por um coração regenerado, bem como sua capacidade de distorção quando cooptada apenas por quem é evangélico nominal.


[i] Alguns criticaram o estudo de Wilcox por se concentrar apenas em abuso físico e por negligenciar outras formas de abuso, como abuso sexual, emocional, psicológico, social, financeiro e espiritual. Outros alertaram contra o excesso de confiança nesse estudo, pois os dados subjacentes são de 1992 e, portanto, desatualizados. No entanto, o estudo de Wilcox não é uma anomalia entre as pesquisas em ciências sociais sobre religião e abuso, mas reflete uma tendência mais ampla na pesquisa de que mais homens religiosos têm menos probabilidade de perpetuar o abuso e a violência interpessoal.

Por: Caleb Morell. © 9Marks. Website: 9marks.org. Traduzido com permissão. Fonte: Nominal Christianity—Not Complementarianism—Leads to Abuse.

Original: É o cristianismo nominal – e não o complementarismo – que leva ao abuso. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Paulo Reiss Junior. Revisão: Filipe Castelo Branco.