Um lamento brutal

Para onde você se volta quando a vida o aflige? Comidas deliciosas? A última série da Netflix? Seu time favorito? Mídias sociais? Vivendo neste mundo de lágrimas, a pergunta não é se, mas quando a vida afligirá.

É claro que os cristãos não estão isentos das ondas tumultuosas da vida. Para onde nos voltamos? Como nos voltamos? Muito frequentemente, negligenciamos nossos recursos mais valiosos na igreja. Um bom cristão certamente responderia “a Palavra de Deus” como o lugar para o qual nos voltamos em tempos de angústia. Mas para qual parte específica da Escritura? No decorrer da história do povo de Deus, os Salmos têm sido, em específico, um recurso para os desesperados, para os desanimados, para os aflitos. Uma das coisas que os Salmos fazem continuamente para nós — independentemente de nossa posição social e experiência de vida — é aproximar-nos de Deus como a nossa única ajuda.

O Salmo 102 é um admirável e proveitoso exemplo disso. Quando aflito, quando no limite de si mesmo, o salmista se volta para Deus. O que desejo focalizar neste primeiro artigo sobre o Salmo 102 é que Deus é um Deus a quem podemos levar o nosso lamento brutal. Meu segundo artigo sobre este salmo examinará como Deus é um Deus que pode ajudar.

Honestidade ousada          

O salmista começa com uma nota de urgência: “Senhor, ouve! Ouve! Não escondas a tua face! Inclina os ouvidos! Responde depressa!” O salmista é um homem desesperado, mas, em sua aflição, ele clama a Deus: “Ouve, Senhor, a minha súplica, e cheguem a ti os meus clamores” (Sl 102.1). O elemento mais importante deste início não é a aflição do salmista, e sim o fato de que em sua aflição ele invoca a Deus. A aflição invoca a Deus.

Ora, os detalhes específicos da aflição do salmista não são informados, porque ele quer que nos focalizemos em seu sentimento de desânimo. A linguagem é impressionante: os ossos do salmista ardem, seu coração está ferido, ele se esquece de comer, profere lamento altissonante, seus ossos se apegam à pele. Há algum tipo de enfermidade que contribui para a aflição dele. Há também inimigos. Além disso, ele se sente como se Deus o tivesse lançado para fora, excluindo-o de sua presença. Se esta parte do contém um estado mental, é o de desânimo. O salmista se sente abandonado e sozinho, como um pelicano no deserto, como um passarinho solitário nos telhados com uma única coisa ao seu redor, o céu vazio.

Os primeiros onze versículos do Salmo 102 são bastante melancólicos… mas honestos. Expressam a experiência universal dos cristãos em ocasiões diferentes. João Calvino disse que os Salmos nos apresentam uma “anatomia completa da alma”. E disse mais: “Não há nenhuma emoção da qual alguém tenha consciência que não seja apresentada ali, como em um espelho. Ou melhor, ali o Espírito Santo.. retrata todas as tristezas, angústias, temores, dúvidas, esperanças, cuidados, perplexidades, em resumo, todas as emoções inquietantes com as quais as mentes dos homens são costumeiramente agitadas”.[1]

Séculos antes de Calvino, Atanásio escreveu que, “com base nos Salmos, aqueles que desejam fazê-lo, podem conhecer as emoções e as disposições da alma, achando neles também a terapia e a correção apropriadas para cada emoção. Se esta verdade precisa ser argumentada mais fortemente, permita-me dizer que toda a Escritura Sagrada é um mestre de virtudes e verdades da fé, enquanto o Livro de Salmos contém, de alguma maneira, a imagem perfeita do caminho de vida da alma”.[2]

No Salmo 102, vemos o lado mais sombrio do caminho de nossa alma, motivado pela dificuldade da vida e pelos sentimentos subsequentes.

Frequentemente não sabemos quais palavras devemos usar em nossas orações. Os Salmos abrem a nossa boca e nos dão as palavras.

Achando as palavas certas

Mas, quais palavras devemos usar em tempos difíceis? Muito frequentemente, tristeza e desânimo nos deixam exasperados — até em oração. Porém, o que encontramos no salmista é que, em sua angústia, ele tinha uma fonte para uma riqueza de palavras. Admiravelmente, estas palavras ecoam e refletem as palavras de outros salmos: quanto a “cheguem os meus clamores”, ver Salmo 18.6; quanto “não me ocultes o rosto”, ver Salmo 27.9; quanto a “no dia da minha angustia”, ver Salmo 59.16; quanto a “inclina-me os ouvidos”, ver Salmo 31.2; quanto a “no dia em que eu clamar”, ver Salmo 56.9; quanto a “dá-te pressa em acudir-me”, ver Salmo 69.17.

Quando estamos atribulados e desanimados, podemos não orar, podemos não invocar a Deus por muitas razões; mas frequentemente é porque não sabemos as palavras que devemos usar em nossas orações. Os salmos abrem a nossa boca e nos dão as palavras. Aqui parece que o salmista está se apropriando da linguagem de outros salmos. A mente e o coração do salmista estão encharcados da Palavra; e, por isso, ao expressar seus sentimentos profundos, ele usou a Escritura naturalmente, porque ela fazia parte de sua vida interior.

Ela faz parte de nossa vida? Quando somos tentados a ficar mudos diante de Deus, nos voltamos à Escritura, aos Salmos em específico e os deixamos abrir nossa boca e prover-nos as palavras?

É correto lamentar

Os Salmos apresentam realmente uma anatomia completa da alma, até mesmo o lado mais escuro iluminado pelas labutas da vida. E eles nos dizem que é correto lamentar.

Leonard Cohen, que faleceu há apenas alguns anos, ficou conhecido por compor músicas comoventes, que frequentemente resvalavam para lamento sincero — expressando convenientemente, de certo modo, um tom descrito certa vez como tão profundo quanto uma mina de carvão na Sibéria. Em 1974, ele fez comentários sobre tradições de lamento. A primeira tradição sobre a qual ele falou é familiar, porque é a reação instintiva de nossa cultura na qual, incluindo até grupos da igreja evangélica, somos tentados a cair. Cohen disse:

Vocês têm uma tradição que, por um lado, diz que, se as coisas estão más, não devemos pensar na tristeza… Devemos tocar uma música feliz, uma melodia alegre. Tocar a banda e dançar o melhor que pudermos, embora estejamos sofrendo um trauma. E há outra tradição, uma tradição mais oriental ou do Oriente Médio, a qual diz que, se as coisas estão realmente más, o melhor a fazer é sentar perto de um túmulo e lamentar; dessa maneira você se sentirá melhor. Acho que ambos os esforços têm o propósito de levantar o espírito. E a minha própria tradição, que é a tradição hebraica, sugere que você sente perto do desastre e lamente. A noção de lamentação me parece ser a maneira de levantar o espírito. Você não evita a situação — você se atira nela, sem medo.[3]

Cohen está certo, mas apenas em parte. No Salmo 102, temos um modelo de atirar-nos sem medo no vácuo espiritual e emocional. Mas, se isso é tudo que devemos fazer, conheceremos apenas o desânimo e trevas eventuais.

O que o salmista faz? Ele está numa situação de angústia, está sendo honesto quanto a seu estado emocional e está falando. Mas a observação mais importante é com quem ele está falando: com Deus. E, como veremos no artigo seguinte, Aquele a quem o salmista se dirige faz toda a diferença.


[1] John Calvin, Preface to Commentary on Psalms, volume 1.

[2] Letter to Marcellinus, 13-14.

[3] Extraído de uma entrevista com Allan Jones, em junho de 1974, em Londres.

Por: Blair Smith. © Ligonier Ministries. Website: ligonier.org. Traduzido com permissão. Fonte: A Brutal Lament.

Original: Um lamento brutal. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Francisco Wellington Ferreira. Revisão: Filipe Castelo Branco.