Com que autoridade fazes estas coisas?

A máxima de Johann Wolfgang von Goethe que diz “autoridade: sem ela o homem não pode existir e, entanto, ela traz consigo tanto o erro como a verdade”, é muito verdadeira na cultura brasileira. No Brasil, temos uma relação ambivalente com a ideia de autoridade, a qual envolve concepções erradas com alguns elementos de verdade. Por um lado, há uma tendência de rejeição da autoridade, algo que tem sido insuflado pelo pós-modernismo europeu, especialmente aquele visto na “batalha travada contra as relações de poder”, esposada pelo filósofo francês Michael Foucault e que influenciou segmentos importantes da academia, mídia e de formadores de opinião no Brasil, colocando em xeque figuras legítimas de autoridade como as forças armadas e policiais, a figura paterna, o chefe em uma empresa.  Por outro lado, há uma tendência do povo brasileiro de se celebrar figuras que exercem autoridade de modo mais dominante e autoritário, especialmente aquelas de personalidade mais carismática e populista, como se vê comumente no campo da política, o que evidencia uma pobre distinção entre autoridade e autoritarismo. O tumultuado cenário político do Brasil, marcado por ditaduras nos anos 1930-1945 e 1964-1985, e por uma visão de estado agigantado em tempos mais recentes talvez expliquem essa característica de dependência de líderes fortes e autoritários de um lado e dependência do estado, de outro lado.

Essa dupla tendência é forte também nas igrejas evangélicas. Por um lado, a falta de entendimento do ensino bíblico sobre autoridade leva muitos cristãos a desenvolverem uma atitude crítica e suspeita com respeito à autoridade pastoral na igreja e à autoridade da congregação em áreas como a disciplina bíblica, trazendo enormes prejuízos para o trabalho pastoral de exortação, liderança e aconselhamento, além de perdas para a vida comunitária da igreja e à noção de responsabilidades e cuidados mútuos contra o pecado.

Por outro lado, há uma equivocada valorização de líderes que se impõem sobre suas congregações com poder quase absoluto sobre elas, como se fossem mediadores entre o povo comum e Deus. Muitos desses líderes se autodenominam apóstolos ou concedem a si mesmos títulos que os tornam especiais e inacessíveis diante do povo. Essa tendência deve ter suas raízes na longa herança católica romana brasileira de viés mais platônico, a qual coloca o sacerdote como um mediador entre Deus e os homens e faz dele uma figura superior em relação aos leigos – pois ele é consagrado. Esta também é a lógica por detrás da noção de infalibilidade ex cathedra do Papa, o qual tem de ser obedecido por ser “sucessor do apóstolo Pedro, e representante de Cristo na terra”.

Certamente essas distorções fazem grande mal aos cristãos em nosso país e só podem ser reparadas pela graça transformadora de Deus através do ensino e da pregação fiel das Escrituras. Dentre muito que pode ser trabalhado para direcionar o povo de Deus a um caminho mais equilibrado e saudável em sua relação com a autoridade, quero destacar três importantes ênfases:

1. A afirmação da autoridade absoluta de Deus: Embora a palavra autoridade não apareça no relato da criação, ela está completamente presente. Poucas frases têm o peso de autoridade absoluta do que a que se encontra logo nas primeiras linhas do livro de Gênesis: Dixitque Deus: Fiat lux. Et facta est lux.” “Disse Deus, haja luz e houve luz”. Na criação dos Céus e da Terra, na formação do homem e na concessão do Imago Dei vemos autoridade plena, que só o Deus criador possui. Deus se revela como aquele que tem autoridade plena, domínio e poder sobre a criação e sobre os homens e esta é uma ênfase presente em toda Escritura e vital para um relacionamento adequado e comunhão dos homens com Deus (Exôdo 15.18; Jó 38-41; Salmos 9.7,8; 11.4; 29.10; 93.1; 146.10; Jeremias 18.6; Isaías 40.12-31; Daniel 4.34-37; Romanos 9.21)

2. Autoridade delegada aos homens: Toda autoridade humana é assim delegada. Deus a concedeu como criador ao homem que é portador de sua imagem e lhe deu este mandato para que, debaixo da autoridade divina, administrasse a terra e exercesse domínio – autoridade – sobre a coisa criada, desenvolvendo cultura, tecnologia, formando a família e organizando a sociedade (Gênesis 2.15-25; Salmos 8). A noção de soberania das esferas ensinada pelos teólogos holandeses Herman Dooyeweerd e Abraham Kuyper, ambos debaixo da influência dos escritos de João Calvino, traduz bem a ideia de que que cada instituição criada por Deus, como a família, o estado, o trabalho, a cultura, etc., possui uma área específica de autoridade e regência, ou seja, são esferas bem delimitadas e específicas. Esta concepção de que todas instituições e poderes estão debaixo da autoridade de Deus estende-se também à igreja, o que ajudará a corrigir a noção de que a autoridade é algo essencialmente mau e que deve ser resistida. Na verdade, a autoridade faz parte da ordem criada por Deus e mesmo na comunidade da fé ela dará sentido, direção e ordem ao corpo (Êxodo 18.13-27; Marcos 6.7).

3. Sacerdócio universal dos crentes: Uma das principais ênfases de Martinho Lutero, na Reforma Protestante do século XVI, foi a noção bíblica de sacerdócio universal dos cristãos (1 Pedro 2.5, 9; Apocalipse 1.5,6). Em sua obra “A Liberdade do Cristão”, Lutero demonstra que sacerdotes e leigos compartilham da mesma dignidade diante de Deus e que todos os homens têm acesso a Deus em Jesus Cristo (1 Timóteo 2.5). Com isto, Lutero também demonstrou que todas as vocações são igualmente dignas diante de Deus. Isso libertou os homens do temor e da dependência dos sacerdotes na Reforma. A ênfase neste princípio ajudará o cristão a entender que todo cristão é feito filho de Deus e tem acesso ao Pai pelo Filho, por meio do Espírito. Também entenderão que todo cristão é “diákonos” (ministro) de Deus e tem a responsabilidade de servir a Deus com seus dons na comunidade cristã. Este entendimento demonstrará que nenhum homem tem poder absoluto sobre outro homem, em nenhuma esfera da criação, muito menos na igreja. O que ele tem é fruto da graça.

A verdade é que, de modo geral, o homem rejeita a autoridade de Deus e a usurpa para si, como bem já notou Milton em seu “Paraíso Perdido”: O execrable son! so to aspire /  Above his brethren; to himself assuming / Authority usurped, from God not given. Por esta razão, será sempre preciso trazê-lo de volta ao ensino das Escrituras e demonstrar que a autoridade equilibrada e debaixo do governo de Deus é ideal no mundo antes da Queda, é ideal na Redenção dos homens e assim será também quando Cristo voltar e estabelecer seu Shalom na terra.