Um blog do Ministério Fiel
Ele se atreveu a desafiar o Papa
Martinho Lutero (1483–1546)
Uma das grandes redescobertas da Reforma – especialmente de Martinho Lutero – foi que a palavra de Deus vem a nós na forma de um livro, a Bíblia. Lutero compreendeu este fato poderoso: Deus preserva a experiência de salvação e santidade, de geração em geração, por meio de um livro de revelação, não um bispo em Roma.
O risco vital e fatal da Reforma era a rejeição do papa e dos concílios como autoridade infalível e final da Igreja. Um dos arquioponentes de Lutero na Igreja Romana, Sylvester Prierias, escreveu em resposta às 95 teses de Lutero: “Aquele que não aceita a doutrina da Igreja de Roma e do pontífice de Roma como regra de fé infalível, da qual as Santas Escrituras também extraem sua força e autoridade, é um herege ”( Luther: Man Between God and the Devil, 193). Em outras palavras, a igreja e o papa são o depósito autorizado da salvação e da Palavra de Deus – e o livro, a Bíblia, é derivado e secundário.
“O que há de novo em Lutero”, escreve o biógrafo Heiko Oberman, “é a noção de obediência absoluta às Escrituras contra qualquer autoridade, sejam papas ou concílios” (Luther, 204). Esta redescoberta da palavra de Deus acima de todos os poderes terrestres moldou Lutero e toda a Reforma. Mas o caminho de Lutero para essa redescoberta foi tortuoso, começando com uma tempestade com raios aos vinte e um anos.
Um monge medroso
No verão de 1505, aconteceu a providencial experiência, semelhante à de Damasco. A caminho de casa vindo da faculdade de direito, em 2 de julho, Lutero foi pego por uma tempestade e foi lançado ao chão por um raio. Ele gritou: “Ajude-me, Santa Ana! E me tornarei monge” (Luther, 92). Ele temia por sua alma e não sabia como encontrar segurança no Evangelho. Então ele pegou a segunda melhor coisa: o mosteiro.
Quinze dias depois, para consternação de seu pai, Lutero deixou seus estudos jurídicos e manteve seu voto. Ele bateu no portão dos eremitas agostinianos em Erfurt e pediu ao Superior que o aceitasse na ordem. Mais tarde, ele disse que essa escolha foi um pecado flagrante – “não vale um centavo” porque foi feita contra seu pai e por medo. Em seguida, acrescentou: “Mas quanto bem o misericordioso Senhor permitiu resultar disso!” (Luther, 125).
O medo e o tremor permearam os anos de Lutero no mosteiro. Em sua primeira missa, dois anos depois, por exemplo, ele ficou tão impressionado com o pensamento da majestade de Deus que quase fugiu. O Superior o convenceu a continuar. Mas este incidente não seria isolado na vida de Lutero. Lutero mais tarde se lembraria desses anos: “Embora eu vivesse como um monge, irrepreensível, eu sentia que era um pecador diante de Deus com uma consciência extremamente perturbada. Não podia acreditar que sua ira se aplacasse com minhas ações para satisfazê-lo” (Martin Luther: Selections from His Writings, 12).
Lutero não se casaria por vinte anos – até se casar com Katharina von Bora em 13 de junho de 1525 – o que significa que ele viveu com tentações sexuais como solteiro até os 42 anos. Mas “no mosteiro”, disse ele, “eu não vivi pensando em mulheres, dinheiro ou posses; em vez disso, meu coração tremia e inquietava-se pensando se Deus iria conceder sua graça sobre mim” (Luther, 128). Seu anseio, que o consumia, era conhecer a felicidade do favor de Deus. “Se eu pudesse acreditar que Deus não estava irado comigo”, disse ele, “ficaria de cabeça para baixo de alegria” (Luther, 315).
Boas notícias: a justiça de Deus
Em 1509, o amado superior, conselheiro e amigo de Lutero, Johannes von Staupitz, permitiu que Lutero começasse a ensinar a Bíblia. Três anos depois, em 19 de outubro de 1512, aos 28 anos de idade, Lutero recebeu seu doutorado em teologia, e von Staupitz entregou a ele a cadeira de teologia bíblica na Universidade de Wittenberg, que Lutero manteve pelo resto de sua vida.
Enquanto Lutero começava a ler, estudar e ensinar as Escrituras nas línguas originais, sua consciência atribulada fervilhava sob a superfície – especialmente quando ele confrontou a frase “a justiça de Deus” em Romanos 1.16-17. Ele escreveu: “Eu odiava a palavra ‘justiça de Deus’, que de acordo com o uso e costume de todos os professores, fui ensinado a entender filosoficamente como a justiça formal ou ativa, como a chamavam, com a qual o Deus justo pune o pecador injusto” (Selections, 11).
Mas de repente, enquanto ele trabalhava com o texto de Romanos, todo o ódio de Lutero pela justiça de Deus se transformou em amor. Ele lembra:
“Por fim, pela misericórdia de Deus, meditando dia e noite, dei atenção ao contexto das palavras, a saber: ‘a justiça de Deus se revela no Evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé’. Ali eu comecei a entender [que] a justiça de Deus é aquela pela qual o justo vive por um dom de Deus, ou seja, pela fé. E este é o significado: a justiça de Deus é revelada pelo Evangelho, a saber, a justiça passiva com a qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, como está escrito: “O justo viverá por fé”. Aqui eu senti que havia nascido de novo e que havia entrado no próprio paraíso pelos portões abertos. . ..
E exaltei minha mais doce palavra com um amor tão grande quanto o ódio com que antes odiava a palavra “justiça de Deus”. Assim, aquela passagem, nos escritos de Paulo foi, para mim, verdadeiramente a porta do paraíso. (Selections, 12).
Permanecendo no Livro
Para Lutero, a importância do estudo estava tão entrelaçada com sua descoberta do verdadeiro Evangelho que ele nunca poderia tratar o estudo como algo que não fosse absolutamente crucial, doador de vida e modelador da história. O estudo foi sua porta de entrada para o Evangelho, a Reforma e Deus. Hoje temos tanta certeza sobre a verdade e sobre a Palavra que dificilmente podemos imaginar o que custou a Lutero chegar à verdade e manter o acesso à Palavra. O estudo era importante. Sua vida e a vida da igreja dependiam disso. E assim, Lutero estudou, pregou e escreveu mais do que a maioria de nós pode imaginar.
Lutero não era o pastor da igreja da cidade em Wittenberg, mas compartilhou a pregação com seu amigo pastor, Johannes Bugenhagen. O registro testemunha como ele era totalmente dedicado à pregação das Escrituras. Por exemplo, em 1522 ele pregou 117 sermões, no ano seguinte 137 sermões. Em 1528, ele pregou quase 200 vezes e, a partir de 1529, temos 121 sermões. Portanto, a média nesses quatro anos foi de um sermão a cada dois dias e meio. E tudo isso surgiu de um estudo rigoroso e disciplinado.
Ele disse a seus alunos que o exegeta deveria tratar uma passagem difícil da mesma maneira que Moisés tratou a rocha no deserto, que ele feriu com sua vara até que a água jorrasse para seu povo sedento (Luther, 224). Em outras palavras, golpeie o texto. Ao relatar sua descoberta em Romanos 1.16-17, ele escreveu: “Eu bati de forma importuna sobre Paulo” (Selections,, 12). Há um grande incentivo nessa batida no texto: “A Bíblia é uma fonte notável: quanto mais se tira e bebe, mais ela estimula a sede” (What Luther Says: An Anthology, vol. 1, 67).
Isso é o que o estudo era para Lutero – agarrar um texto da maneira que Jacó agarrou o anjo do Senhor e dizer: “Ele deve me conceder algo. Vou ouvir e conhecer a Palavra de Deus neste texto para a minha alma e para a igreja!” (ver Gn 32.26). Foi assim que ele entendeu o significado de “a justiça de Deus” na justificação. E foi assim que ele quebrou a tradição e a filosofia repetidas vezes. Lutero tinha uma arma com a qual recuperou o Evangelho de ser vendido nos mercados de Wittenberg: as Escrituras. Ele expulsou os cambistas – os vendedores de indulgências – com o chicote da Palavra de Deus.
Caluniado e abatido
O estudo não foi o único fator que abriu a Palavra de Deus a Lutero. O sofrimento também. As provações foram transformadas em vida para Lutero. Lembre-se de que, a partir de 1521, Lutero viveu sob a proscrição do império. O imperador Carlos V disse: “Decidi mobilizar tudo contra Lutero: meus reinos e domínios, meus amigos, meu corpo, meu sangue e minha alma” (Luther, 29). Ele poderia ser legalmente morto, exceto onde fosse protegido por seu príncipe, Frederico da Saxônia.
Ele suportou a calúnia implacável do tipo mais cruel. Certa vez, ele observou: “Se o Diabo nada pode fazer contra os ensinamentos, ele ataca a pessoa, mentindo, caluniando, xingando e reclamando dela. Assim como o Belzebu dos papistas fez comigo quando não conseguiu subjugar meu Evangelho, ele escreveu que eu estava possuído pelo Diabo, que era um bastardo, minha amada mãe uma prostituta e acompanhante” (Luther, 88).
Fisicamente, ele sofria de pedras nos rins e dores de cabeça excruciantes, com zumbidos e infecções no de ouvido, além de constipação e hemorroidas incapacitantes. “Eu quase morri- e agora, banhado em sangue, não consigo encontrar paz. O que levou quatro dias para curar, as lágrimas imediatamente abriram novamente” (Luther, 328).
Oratio, Meditatio, Tentatio
Na providência de Deus, no entanto, esses sofrimentos multiplicados não destruíram Lutero, mas sim o transformaram em um teólogo. Lutero observou, no Salmo 119, que o salmista não apenas orava e meditava sobre a Palavra de Deus para entendê-la; ele também sofria para entendê-la. O Salmo 119.67, 71 diz: “Antes de ser afligido, andava errado, mas agora guardo a tua palavra. … Foi-me bom ter eu passado pela aflição, para que aprendesse os teus decretos.” Uma chave indispensável para compreender as Escrituras é o sofrimento no caminho da justiça.
Assim, Lutero disse: “Quero que você saiba como estudar teologia da maneira certa. Eu mesmo pratiquei esse método. . .. Aqui você encontrará três regras. Elas são frequentemente propostas ao longo do Salmo [119] e executadas assim: Oratio, meditatio, tentatio (oração, meditação, tribulação).” E a tribulação ele chamou de “pedra de toque”. “[Estas regras] lhe ensinam não apenas a conhecer e compreender, mas também a experimentar quão certa, quão verdadeira, quão doce, quão amável, quão poderosa, quão consoladora é a Palavra de Deus: é a sabedoria suprema” (What Luther Says,vol. 3, 1359-60).
Ele provou o valor das provações repetidas vezes em sua própria experiência. “Pois assim que a Palavra de Deus se tornar conhecida através de você”, diz ele, “o diabo o afligirá, fará de você um verdadeiro médico [teológico] e vai ensiná-lo por suas tentações a buscar e amar a Palavra de Deus. Para mim mesmo. . . devo aos meus papistas muitos agradecimentos por me bater, pressionar e assustar tanto, através da fúria do diabo, que eles me transformaram em um teólogo bastante bom, levando-me a uma meta que eu nunca poderia ter alcançado” (What Luther Says, vol. 3, 1360).
Acima de todos os poderes terrestres
Lutero disse, com força retumbante em 1545, um ano antes de morrer: “Aquele que quer ouvir Deus falar, leia a Sagrada Escritura” (What Luther Says, vol. 2, 62).
Ele viveu o que ele pediu. Ele escreveu em 1533: “Há vários anos, tenho lido a Bíblia duas vezes por ano. Se a Bíblia fosse uma árvore grande e poderosa e todas as suas palavras fossem pequenos galhos, eu bati em todos os galhos, ansioso para saber o que havia ali e o que ele tinha a oferecer” (What Luther Says, vol. 1, 83). Oberman diz que Lutero manteve essa prática por pelo menos dez anos (Luther, 173). A Bíblia passou a significar mais para Lutero do que todos os pais e comentaristas.
Aqui Lutero estava, e aqui estamos nós. Não fundamentados sobre os pronunciamentos dos papas, as decisões dos concílios, ou os ventos da opinião popular, mas sobre “aquela Palavra acima de todos os poderes terrestres” – a Palavra viva e permanente de Deus.