Ele pegou em armas contra o liberalismo

J. Gresham Machen (1881–1937)

Na véspera de Ano Novo de 1936, em um hospital católico romano em Bismarck, Dakota do Norte, J. Gresham Machen estava a um dia de morrer aos 55 anos. Era feriado de Natal no Seminário de Westminster na Filadélfia, onde ensinava Novo Testamento. Seus colegas disseram que ele parecia “mortalmente cansado” no final do semestre. Mas em vez de descansar, ele pegou o trem da Filadélfia para os ventos de 20 graus abaixo de zero de Dakota do Norte para pregar em algumas igrejas presbiterianas a pedido do pastor Samuel Allen.

Ele estava com pneumonia e mal conseguia respirar. O pastor Allen veio orar por ele no último dia de 1936, e Machen contou-lhe sobre uma visão que teve de estar no céu. “Sam, foi glorioso. Foi glorioso”, disse ele. E um pouco depois ele acrescentou: “Sam, não é a fé reformada grandiosa?”

No dia seguinte – Dia de Ano Novo de 1937 – ele reuniu forças para enviar um telegrama para John Murray, seu amigo e colega em Westminster. Foram suas últimas palavras registradas: “Estou muito grato pela obediência ativa de Cristo. Sem esperança sem ele.” Ele morreu por volta das 7h30 daquela noite.

Um Presbiteriano Insubordinado

A vida de Machen foi interrompida em meio de uma grande obra – o estabelecimento do Seminário de Westminster e da Igreja Presbiteriana Ortodoxa. Ele não tinha a intenção de fundar um seminário ou uma nova igreja. Mas dado quem ele era, o que ele representava e o que estava acontecendo em Princeton, onde ele havia ensinado por vinte e três anos, e na Igreja Presbiteriana nos EUA, isso era quase inevitável.

O Seminário de Westminster tinha sete anos quando Machen morreu. A Igreja Presbiteriana Ortodoxa tinha seis meses. A ocasião para começar uma nova igreja presbiteriana, contra a enorme igreja presbiteriana nos EUA, surgiu em 29 de março de 1935, o presbitério de Machen, em Trenton, Nova Jersey, o considerou culpado de insubordinação às autoridades da igreja e o privou de sua ordenação.

O motivo da acusação de insubordinação foi que Machen fundou um Conselho independente de missões estrangeiras, em junho de 1933, para protestar contra o fato de que o Conselho Presbiteriano de Missões Estrangeiras ter endossado um relatório leigo (chamado Rethinking Missions) que Machen dizia ser “do começo ao fim um ataque à fé cristã histórica” (J. Gresham Machen: A Biographical Memoir, 475).

Ele ressaltou que o conselho apoiava missionários como Pearl Buck na China, que representava o tipo de atitude evasiva e sem comprometimento em relação à verdade cristã que Machen julgava estar destruindo a igreja e seu testemunho. Ela disse, por exemplo, que se existisse alguém que pudesse criar uma pessoa como Cristo e retratá-lo para nós, “então Cristo viveu e vive, quer tenha sido em um só corpo e uma só alma, quer seja na essência dos sonhos mais elevados dos homens” (474).

Assim, Machen foi forçado, por sua própria consciência, ao que a igreja via como a mais grave insubordinação e desobediência aos seus votos de ordenação. Daí o início da Igreja Presbiteriana Ortodoxa.

“O seminário de Princeton está morto”

Alguns anos antes, Machen havia deixado o Seminário de Princeton para fundar o Seminário de Westminster. Daquela vez, ele não foi forçado a sair, mas escolheu sair livremente quando os conselhos de administração do seminário foram reorganizados para que o conselho de administração conservador pudesse ser diluído por liberais mais em sintonia com a denominação como um todo.

O Seminário de Princeton morreu, aos olhos de Machen, e das cinzas ele pretendia preservar a tradição de Charles Hodge e Benjamin Warfield. Então, quando ele fez o discurso inaugural do Seminário de Westminster, em 25 de setembro de 1929, para a primeira classe de cinquenta alunos e convidados, ele disse:

“Não, meus amigos, embora o Seminário de Princeton esteja morto, a nobre tradição do Seminário de Princeton está viva. O Seminário de Westminster se esforçará, pela graça de Deus, para preservar essa tradição intacta.” (458)

A resposta mais duradoura de Machen, ao que ele chamou de modernismo, foi a fundação dessas duas instituições: o Seminário de Westminster (que hoje é uma grande influência no evangelicalismo americano) e a Igreja Presbiteriana Ortodoxa (que agora, mais de oito décadas depois, dá um testemunho desproporcional ao seu pequeno tamanho).

Fé e Dúvida

Machen havia conhecido o modernismo face a face muitos anos antes, enquanto passava um ano na Alemanha depois do seminário. Ao estudar o Novo Testamento com renomados estudiosos alemães, Machen ficou profundamente abalado em sua fé. Quase irresistível foi a influência de Wilhelm Herrmann, o teólogo sistemático de Marburg, que representou o melhor do que, mais tarde, Machen se oporia com todas as suas forças. Ele não estava jogando pedras no muro quando criticou o modernismo. Machen havia pulado o muro e quase sido atraído para o acampamento.

Em 1905 ele escreveu para casa,

“Fiquei confuso com o que [Herrmann] disse – muito mais profunda é sua devoção a Cristo do que qualquer coisa que conheci em mim mesmo nos últimos anos […] Herrmann afirma muito pouco daquilo que estou acostumado a considerar essencial para o cristianismo; no entanto, não tenho dúvidas de que ele é um cristão, e um cristão de um tipo peculiarmente sério.” (107)

Sua luta com a dúvida deu-lhe paciência e simpatia para com outras pessoas na mesma situação. Vinte anos depois, ele escreveu,

“Alguns de nós mesmos já passaram por essa luta; alguns de nós conhecemos o vazio da dúvida, o desânimo mortal, a perplexidade da indecisão, o vacilar entre “fé diversificada pela dúvida” e “dúvida diversificada pela fé”. (432).

No entanto, Machen passou por esse período sem perder sua fé evangélica e foi chamado a Princeton para ensinar Novo Testamento, o que fez de 1906 até que a deixou para formar o Westminster em 1929. Durante esse tempo, ele se tornou um pilar da ortodoxia reformada e conservadora, um forte apologista do cristianismo bíblico e um estudioso do Novo Testamento aclamado internacionalmente.

Duplicidade na sala de aula

A experiência de Machen na Alemanha causou um impacto duradouro na maneira como ele conduziu a controvérsia. Ele disse repetidamente que tinha respeito e simpatia pelo modernista que honestamente não podia mais acreditar na ressurreição corporal ou no nascimento virginal ou na segunda vinda, mas foi a rejeição dessas coisas sem admitir abertamente a incredulidade que irritava Machen.

Por exemplo, ele disse uma vez que seu problema com certos professores do Union Seminary era a duplicidade deles:

“Essa é a minha verdadeira disputa com eles. Quanto às suas dificuldades com a fé cristã, tenho profunda simpatia por eles, mas não pelo seu tratamento desdenhoso para com os homens conscienciosos que acreditam que um credo subscrito solenemente é mais do que um pedaço de papel.” (221-22).

Ele queria lidar com as pessoas de uma maneira direta e levar a sério os argumentos de seus oponentes, se eles fossem honestos e abertos com seus constituintes e leitores. No entanto, muitos professores e pastores modernistas não eram honestos e abertos.

Liberalismo: Outra Religião

Na Igreja Presbiteriana dos dias de Machen, havia centenas que não negariam a Confissão de Fé, mas em virtude desse espírito modernista desistiram, embora a tenham assinado. Uma das declarações mais contundentes e penetrantes de Machen sobre esse assunto é encontrada em seu livro O que é fé?

“Faz pouquíssima diferença o quanto ou quão pouco dos credos da Igreja o pregador modernista afirma, ou quanto ou quão pouco do ensino bíblico do qual os credos são derivados. Ele pode afirmar cada jota e til da Confissão de Westminster, por exemplo, e ainda estar separado, por um grande abismo, da Fé Reformada. Não é que uma parte seja negada e o resto afirmado; mas tudo é negado, porque tudo é afirmado meramente como útil ou simbólico e não como verdadeiro. (O que é fé? 34)

Quando Machen enfrentou o modernismo, ele o enfrentou como um desafio a todo o cristianismo. Seu livro mais importante no debate foi Cristianismo e Liberalismo, publicado em 1923. O título quase diz tudo: O liberalismo não está rivalizando com o fundamentalismo como espécie de cristianismo. O livro não se intitula Fundamentalismo e Liberalismo. Em vez disso, o liberalismo está competindo com o cristianismo como uma religião separada. Ele escreveu na sinopse do livro:

O liberalismo, de um lado, e a religião da igreja histórica, do outro, não são duas variedades da mesma religião, mas duas religiões distintas que procedem de raízes totalmente distintas. (J. Gresham Machen, 342)

Do modernismo ao pós-modernismo

Não acho que a estrutura do modernismo da época de Machen seja muito diferente do pós-modernismo de nossa época. Em algumas igrejas, o triunfo do modernismo é completo. Ainda é uma ameaça à porta de todas as nossas igrejas, escolas e agências. Uma de nossas grandes proteções será a consciência de histórias como a de Machen – o inimigo que ele enfrentou, a batalha que travou, as armas que usou (e deixou de usar), as perdas que sofreu, o preço que pagou e os triunfos que conquistou.

Por exemplo, a vida e o pensamento de Machen trazem um chamado para que todos nós sejamos honestos, abertos, claros, diretos e sinceros no uso da linguagem. Ele nos desafia, assim como o apóstolo Paulo (2Co 2.17; 4.2; Ef 4.25; 1Ts 2.3-4), a dizer o que queremos dizer e a dizer o que dizemos, e a repudiar a duplicidade, trapaça, farsa, manipulação verbal, desvio e evasão.

Os perigos dos usos utilitários da linguagem moral e religiosa ainda existem em nossos dias. Não é incomum, por exemplo, encontrar uma linguagem semelhante à que li no Washington Times quando estava pesquisando pela primeira vez a vida de Machen. O porta-voz do Human Rights Campaign Fund, o maior grupo de defesa da homossexualidade do país, disse ao Times: “Pessoalmente, acho que a maioria das lésbicas e gays americanos apoia a família tradicional e os valores americanos”, que ele definiu como “tolerância, preocupação, apoio e senso de comunidade.”

Este é um exemplo de como palavras com conotações morais foram cooptadas por grupos de interesses especiais para obter uma posição moral elevada sem conteúdo moral. Elas parecem valores, mas são vazias. “Tolerância” para quê? Todas as coisas? Quais coisas? “Preocupação” com o quê? Expresso de que maneira? Oposição redentora ou endosso solidário? “Suporte” para quê? Pelo comportamento destrutivo e errado? Ou para a pessoa que admite que o comportamento é errado e está lutando bravamente para superá-lo? “Comunidade” com quais padrões de unificação? Endossos comuns de comportamento? Visão comum do que é certo e errado? Indiferença comum ao que é certo e errado?

Em todos os casos, os padrões não são definidos. Tudo o que você tem são palavras guiadas por uma visão utilitária da linguagem, onde a honestidade e a verdade não são fundamentais. Machen nos mostra que isso não é novo e que é destrutivo para a igreja e a causa de Cristo – especialmente quando os pastores se envolvem em tal duplicidade no púlpito.

Sua promessa nunca falha

A lição abrangente a ser aprendida com a vida de Machen, no entanto, é que Deus reina sobre sua igreja e sobre o mundo. Seu plano abrangente é sempre mais esperançoso do que pensamos nas horas mais sombrias da história, e está sempre mais misturado com o pecado e a fraqueza humanos do que podemos ver em suas horas mais brilhantes. Isso significa que devemos renunciar a todo triunfalismo nas estações brilhantes e renunciar a todo desespero nas estações escuras.

Nossa esperança para a igreja e para a propagação do verdadeiro evangelho não está em nossas estratégias, mas em Deus. Mesmo quando a cultura degenera e instituições antes fiéis se desviam, como aconteceu nos dias de Machen, há toda esperança de que Deus triunfe. Ele escreve,

“Essa Igreja ainda está viva; uma ligação espiritual ininterrupta nos conecta com aqueles a quem Jesus comissionou. Os tempos mudaram em muitos aspectos, novos problemas devem ser enfrentados e novas dificuldades superadas, mas a mesma mensagem ainda deve ser proclamada a um mundo perdido. Hoje precisamos de toda a nossa fé; a incredulidade e o erro nos deixam profundamente perplexos; contendas e ódio colocaram o mundo em chamas. Há apenas uma esperança, mas essa esperança é certa. Deus nunca abandonou sua igreja; sua promessa nunca falha.” (J. Gresham Machen, 386).

Por: John Piper. © Desiring God Foundation. Website: desiringGod.org. Traduzido com permissão. Fonte: He Took Up Arms Against Liberalism.

Original: Ele pegou em armas contra o liberalismo. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Paulo Reiss Junior. Revisão: Filipe Castelo Branco.