A importância da teologia sistemática

“Teologia Sistemática” é um rótulo com conotações reconhecidamente médicas. Isso evoca uma imagem do teólogo como alguém que toma nas mãos a Palavra Viva de Deus apenas para dissecar e desmembrar o corpo da verdade bíblica em várias partes para que ele as possa rotular (muitas vezes em latim!) e organizar essas partes em categorias do seu próprio planejamento meticuloso. Embora essa conotação de teologia sistemática não seja incomum na cultura cristã popular, ela não representa o que a maioria dos teólogos cristãos pretendia com o rótulo. Longe de tentar dividir a vestimenta contínua da verdade bíblica, a teologia sistemática considera o que “todo o conselho de Deus” (At 20.27) ensina sobre qualquer tópico e reflete sobre as relações divinamente reveladas entre os vários tópicos da Bíblia.

Na teologia sistemática, não perguntamos apenas: “O que a Bíblia ensina sobre a salvação?” ou “O que a Bíblia ensina sobre boas obras?” Também perguntamos: “Como a Bíblia relaciona salvação e boas obras?” A resposta da Bíblia para a última pergunta, é claro, é que a salvação não decorre de boas obras (Ef 2.8-9). Em vez disso, a salvação precede as boas obras (v. 10). Que a salvação precede, em vez de seguir as boas obras, é tão vital para entender a natureza da salvação e boas obras quanto para entender a salvação e as boas obras como tópicos isolados. Na verdade, não se pode ter uma compreensão bíblica de qualquer um dos tópicos sem entender a relação entre eles.

A teologia sistemática, portanto, contempla o corpo do ensino bíblico como um organismo vivo, oferecendo atenção amorosa a seus vários membros e traçando suas relações orgânicas entre si. Em última análise, a teologia sistemática nos ajuda a entender melhor Deus e todas as coisas em relação a Deus, uma relação que está encapsulada no vínculo vivo entre Jesus Cristo, “a cabeça”, e a igreja, “que é o seu corpo” (Ef 1.22-23). A seguir, consideraremos como a teologia sistemática pode servir à igreja e instruir a vida cristã: (1) moldando uma mente caracterizada pela admiração e (2) dirigindo uma vida caracterizada pela adoração e pelo testemunho.

Sabedoria que promove admiração

A teologia sistemática pode ser classificada como uma espécie de “sabedoria” bíblica. De acordo com Agostinho, a sabedoria envolve mais do que o conhecimento de objetos distintos e mais do que o “know-how” prático necessário para navegar em diferentes circunstâncias. Para Agostinho, a verdadeira sabedoria envolve uma consciência contemplativa da relação entre as realidades temporais e eternas, a relação entre as criaturas e o Deus triúno, que é o autor e consumador de todas as criaturas.

Ao descrever a sabedoria dessa forma, Agostinho capta algo significativo sobre a maneira como a Bíblia nos ensina sobre vários tópicos. Quando Moisés começa seu relato da criação, ele começa com Deus: “No princípio Deus” (Gn 1.1). Quando João começa seu relato da salvação, ele também começa com Deus: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (Jo 1.1). O salmista contempla a maravilhosa variedade das criaturas de Deus e, ainda assim, por toda a sua variedade, ele discerne nelas um coro unificado, pronto para louvar o nome do Senhor (Sl 148). Tendo considerado a misteriosa operação do plano de salvação de Deus para judeus e gentios através das múltiplas voltas e reviravoltas da história da redenção, Paulo irrompe em temor e admiração diante de Deus “de quem, por quem e para quem são todas as coisas” (Rm 11.36).

Como uma espécie de sabedoria bíblica, a teologia sistemática considera o Deus triúno, o tema supremo do ensino bíblico e todas as coisas em relação a Deus. A teologia sistemática contempla Deus, a Santíssima Trindade:  considera Deus em seu ser, perfeição, pessoas, conselho e obras. A teologia sistemática também contempla todas as coisas: considera a criação, o pecado, Cristo e assim por diante. Ao considerar todas essas coisas, a teologia sistemática está sempre preocupada em vê-los em relação a Deus, seu autor e consumador. A teologia sistemática, portanto, exibe um princípio de organização centrado em Deus.

Herman Bavinck resume bem a natureza da teologia sistemática a esse respeito. De acordo com Bavinck, a teologia sistemática “descreve para nós Deus, constantemente Deus, do princípio ao fim – Deus em seu ser, Deus em sua criação, Deus contra o pecado, Deus em Cristo, Deus quebrando toda resistência por meio do Espírito Santo e guiando o toda a criação de volta ao objetivo que ele decretou para ela: a glória de seu nome.” Dado seu foco em Deus e em todas as coisas relativas a ele, Bavinck continua, a teologia sistemática “não é uma ciência enfadonha e árida. É uma teodiceia, uma doxologia para todas as virtudes e perfeições de Deus, um hino de adoração e ação de graças, uma ‘glória a Deus nas alturas’ (Lc 2.14).” A teologia sistemática, podemos dizer, é para ser cantada. Dogmática (outro nome de teologia sistemática) serve à doxologia. Em suma, a teologia sistemática é a sabedoria bíblica que promove a admiração centrada em Deus.

Sabedoria que orienta a adoração e o testemunho

A teologia sistemática não apenas molda a sabedoria, mas essa sabedoria também permite uma vida de adoração e testemunho. As palavras de Paulo aos romanos se voltam exatamente nesta direção. Depois daqueles louvores elevados encontrados em Romanos 11. 33-36, o Apóstolo volta-se para a orientação moral: “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional. E não vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. (Rm 12.1-2).

Deus deseja adoração, oferecer-se a Deus em sua totalidade. A este respeito, certamente a menção de “seus corpos” pretende sugerir que mesmo o elemento mais básico ou mundano do eu – este corpo miserável que sofre e morrerá devido aos efeitos do pecado e da maldição – pode e deve ser oferecido a Deus em louvor. Paulo segue, aqui, a instrução de Deuteronômio 6, onde a singularidade de Deus (v. 4) acena para a devoção de todo o coração e tudo, inclusive a si mesmo para o serviço de Deus na adoração: “Amarás, pois, o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de toda a tua força.” (v. 5). Deus deseja não apenas dízimos e ofertas, ritos e cerimônias, mas um “sacrifício vivo” envolvendo todo o ser.

Essa devoção não vem sem oposição. Em primeiro lugar, é claro, Paulo adverte contra as invasões de uma cultura ímpia: “não vos conformeis com este século.” O apóstolo nos chama para colocarmos um braço espiritual forte entre nossas almas e as pressões tortuosas do diabo e deste mundo pecaminoso. Seja no Egito, em Canaã, na Roma do primeiro século ou no Ocidente do século vinte e um, podemos ver como as culturas se desviam e somos chamados a estar alertas. Mas não é apenas uma cultura sem Deus que pode atrair inocentes para seu domínio. Nós mesmos somos uma parte do problema, pois vemos que Paulo continua: “mas transformai-vos pela renovação da vossa mente”, Não ousamos ser atraídos para os ciclos pecaminosos do mundo, mas também devemos nos afastar das inclinações malignas de nossos próprios corações. Nosso status quo espiritual não é aceitável; devemos ser santificados e transformados por dentro.

Se essas ameaças externas e internas se escondem, como Paulo sugere que nos afastemos delas e busquemos o tipo de adoração e testemunho para o qual fomos feitos? Nossas mentes devem ser renovadas, diz ele, para que possamos ter discernimento. A “renovação da vossa mente” (Rm 12.2) envolve a reorientação do seu estado de espírito para Deus e para a obra misericordiosa de Deus já realizada em seu nome (Rm 11.33-36). É por isso que o chamado moral de Romanos 12.1-2 segue a lógica da exposição anterior da gloriosa graça de Deus em Romanos 1-11. (Esta relação é aludida pela palavra de transição, pois, em Rm 12.1). “Pelas misericórdias de Deus”, devemos adorar a Deus de maneiras razoáveis, renunciando assim à adoração tola e fútil do mundo (1.21-23). A teologia sistemática desloca e realoca nossa obediência, nos lembrando sempre de nos vermos através das lentes das misericórdias de Deus. Somente quando conhecemos a nós mesmos e nossa vocação nessa estrutura, somos capazes de discernir “o que é bom, agradável e perfeito” (12.2). Paulo está esboçando uma forma de discipulado intelectual pela qual somos capacitados e amadurecidos, por um discernimento sábio e piedoso, para que possamos honrar a Deus com nossa adoração e atestar a Deus por nosso testemunho, Divulgando a memória de sua muita bondade e com júbilo celebrando a sua justiça. (Sl 145.7).

Resumindo, então, a vida cristã é uma vida de “adoração racional” (Rm 12.1). Chamado a uma vida de “culto”, o cristão é chamado a ser “sacrifício vivo” (12.1), a dedicar a sua vida à glória de Deus e ao bem do próximo. Como alguém chamado a uma vida de “adoração racional”, o cristão aprende o que significa dedicar sua vida a Deus e ao próximo por meio da “renovação” de sua “mente” (12.2). A teologia sistemática é especialmente adequada para nos ajudar no chamado à “adoração racional”. A teologia sistemática molda uma mente de sabedoria e admiração, ajudando-nos a ver a realidade de uma perspectiva centrada em Deus. A teologia sistemática também dirige uma vida de adoração e testemunho, ajudando-nos a considerar como todas as coisas (inclusive nossos egos redimidos) se relacionam com Deus como seu autor e consumador: “A ele, pois, a glória eternamente” (Rm 11.36).

Por: Scott Swain & Michael Allen. © Ligonier Ministries. Website: ligonier.org. Traduzido com permissão. Fonte: The Importance of Theology.

Original: A importância da teologia sistemática. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Paulo Reiss Junior. Revisão: Filipe Castelo Branco.