O trabalho como fator de impacto civilizacional

Compreender como as diferentes tradições cristãs nos hemisférios norte e sul do planeta entendem as relações do ser humano com o trabalho, pode responder – pelo menos em parte – como no Ocidente, o hemisfério norte sendo tão mais pobre naturalmente, é tão mais rico materialmente que o hemisfério sul, tão mais rico naturalmente.

O X da questão se dá em como o povo de um determinado local, cidade ou nação compreende o trabalho. Afinal, é justamente através do trabalho que se produz riqueza. É o trabalho que proporciona oportunidades para o desenvolvimento humano e para o desenvolvimento de bens, além de trazer senso de dignidade e norte para nossa existência.

Certa vez, perguntado por um sapateiro recém-convertido sobre qual seria a melhor forma de se adorar a Deus, Lutero teria dito: vá para sua oficina, faça o melhor sapato que puder e venda-o ao preço mais justo que puder. João Calvino ao chegar em Genebra a convite do Pequeno Conselho que governava a cidade à época, organizou uma ação pública onde todos os moradores de rua seriam retirados das condições precárias que viviam a fim de aprenderem um ofício e retomarem suas vidas com dignidade e honestidade.

As passagens acima evidenciam que, de forma geral, a Reforma Protestante redescobriu e popularizou a ideia de que não servimos a Deus apenas nos templos, monastérios, mosteiros ou centros religiosos, mas que toda a criação, todas as ciências, saberes e atividades pertencem a Cristo e estão debaixo de Seu senhorio, de forma que a adoração a Ele deve ser empreendida em cada campo e momento da vida, inclusive, e com destaque, no campo do trabalho. Para os cristãos não existem mais lugares, dias ou atividades sagradas, e, lugares, dias ou atividades seculares, ou tudo é sagrado, ou tudo é secular.

Imagine, portanto, toda uma cidade vivendo a partir desta perspectiva: de que o trabalho tem igual valor para Deus do que qualquer atividade tida como religiosa. Imagine o impacto de povos inteiros conscientes de que cada trabalho é digno de ser feito com amor e esmero como se fosse um serviço prestado ao próprio Deus, e de que não há trabalho mais ou menos digno diante do Criador, pois Ele é dono e Senhor de cada palmo da existência.

Dessa forma, os melhores produtos seriam produzidos, os melhores serviços seriam prestados, as melhores negociações seriam feitas, o que faria com que tanto contratantes e compradores como contratados e pagadores, ficassem satisfeitos e em breve voltassem a fazer novos negócios, pois, acima de tudo, todos teriam a consciência de que produzem, negociam, compram e vendem para a glória de Deus e para o bem do próximo.

Claro que existem inúmeras outras variantes sociológicas e históricas em todo esse processo, contudo, meu intuito é sublinhar esse aspecto teológico da ação das igrejas protestantes na história. Mesmo passados mais de cinco séculos e estando enfrentando um profundo processo de secularização, o legado e os resultados de uma correta compreensão a respeito do valor do trabalho, ainda podem ser visivelmente constatados nos países de tradição majoritariamente protestante.

Percebam o desenvolvimento e a qualidade de vida ainda presentes em países como a Alemanha de Lutero e Melanchton, a Suíca de Bucer, Farrel, Zwinglio e Calvino, a Inglaterra de Wycliff, Whitefield, Wesley e Cranmer, a República Tcheca de Huss, a Escócia de Knox, a Holanda de Kuyper, Rookmaaker e Dooyeweerd, os Estados Unidos de Edwards e Schaeffer, isso pra citar brevemente alguns dos nomes e das nações mais célebres.

O trabalho não precisa e não deve ser entendido como um fardo. A palavra ‘trabalho’ da língua portuguesa, por exemplo, advém do latim ‘tripalium’, que nada mais era que uma espécie de instrumento de tortura da época do Império Romano. Significativo, não? Ora, se não é exatamente assim que encaramos o trabalho muitas vezes. Por outro lado, na tradição judaica do antigo testamento, a mesma palavra hebraica (‘avadh’) que era utilizada para adoração, também era utilizada para trabalho. Há aí uma diferença crassa de cosmovisões, proporcionalmente antagônicas em seus resultados. A absorção equivocada de um simples conceito pode mudar – e de fato muda – os rumos de civilizações inteiras.

Precisamos insistir nessa abordagem. Precisamos redescobrir todos os dias essa tradição. Precisamos enxergar o quão imerso no cotidiano comum está o nosso serviço no Reino de Deus que é Senhor e dono de todas as coisas, e como tal, se interessa de forma absoluta tanto com o que acontece nas altas cortes governamentais, como com o trabalho que um gari presta no quarteirão que está sob sua responsabilidade.

Apenas como exercício hipotético, imaginemos se os mais de 40 milhões de cristãos protestantes do Brasil vivessem, fielmente, a partir do compromisso de que cada trabalho que têm é um ofício que estão a cumprir diante do próprio Deus. Um ofício que deve ser cumprido com alegria, como quem recebeu do Senhor o privilégio de trabalhar na construção de uma nova realidade terrena, que aponta para a consumação de Seu Reino Eterno. Isto, inequívoca e naturalmente, faria com que nos tornássemos um país menos corrupto, menos desigual, mais bem-educado, mais organizado, mais seguro, mais justo e até mesmo mais rico. Precisamos encerrar de uma vez por todas com a dicotomia vida secular x vida ministerial na igreja evangélica brasileira. Para o cristão tudo é ministério, tudo é serviço.

Portanto, o trabalho, na perspectiva do Reino de Deus, possui dimensões de impacto civilizacionais, e é responsabilidade nossa tanto promover essa perspectiva como encampá-la na prática cotidiana de nossas vidas. Não existe fórmula mais poderosa para subverter, ou pelo menos aplacar o avanço do caos no mundo, do que um ser humano consciente de seu compromisso integral diante de Deus e diante dos homens. Que Deus nos ilumine e nos transforme!


Recursos relacionados

• Curso: O Evangelho no Trabalho – Heber Campos Jr., Tiago Santos, Sebastian Traeger e Solano Portela
• 
Curso: Calvinismo e a Vida Cristã – Ian Hamilton
• Livro: O Evangelho no Trabalho
– Sebastian Trager e Greg Gilbert
• Livro: Mulher, Cristã e Bem-sucedida
– Carolyn McCulley e Nora Shank
• Livro: Faça Mais e Melhor
– Tim Challies