A politização de todas as coisas

Nós politizamos a doença, o vírus, o remédio e o tratamento. Nós politizamos também a escola, a família, a cultura, o humor, a biologia, a religião, o direito e a economia. A bola da vez é o futebol e a Seleção Brasileira. Sim, um dos maiores símbolos nacionais de união, congraçamento e orgulho, parece também estar sucumbindo diante da catarse esquizofrênica que a idolatria política está causando no país. Tudo isso, infelizmente, fomentado e vocalizado por setores bastante significativos e influentes da igreja brasileira.

Eu temo pelo paradoxal abismo de superficialidades no qual o brasileiro pode cair em pouquíssimo tempo. Temo pelo afastamento do homem comum do que é belo e eterno. Temo que homens e mulheres aos milhões esvaziem de sentido suas próprias vidas ao trocarem a glória do Criador pela idolatria da criatura. Seja qual for a confissão política à mesa, cooptar o sentido próprio que cada setor da vida humana possui, a fim de transformá-los em meros trampolins para o projeto político A, B ou C, me parece uma evidência expressa da pobreza ontológica e idólatra na qual estamos prestes a afundar como nação.

É certo que, recentemente na história do Brasil, houve significativos avanços na denúncia de totalitarismos políticos contraditoriamente sutis, que têm como doutrina não mais a expropriação dos meios de produção, mas a expropriação da inteligência e do espírito humano. Para esses, todos os flancos da vida tornam-se campos de luta, velada ou explícita, a fim de que sirvam a uma causa maior, que, num futuro desconhecido, há de suprimir toda injustiça e opressão que retarda o progresso das sociedades.

A identificação e denúncia do que estava (?) acontecendo têm grande valor. O ambiente político-cultural predominantemente homogêneo, exercia (?) uma influência cada vez mais nefasta no imaginário do povo brasileiro. Além do que, nos âmbitos institucional, acadêmico e jurídico, mudanças civilizacionais estavam e, infelizmente, ainda estão em franca expansão. Toda essa engenharia sorrateira e onipresente foi desvelada, e identificamos que esse projeto de salvação empreendido no Brasil por décadas, pertence a grupos políticos habilidosos entranhados na estrutura social brasileira. Gente que o que tem de arrogante diante dos homens, tem de frágil diante de Deus. Gente que desconhece o próprio limite, e pensa poder o que só Deus pode para libertar o homem do cativeiro no qual ele se encontra desde os tempos primeiros.

A igreja evangélica brasileira participou muito de perto de todo esse despertar, de modo que não é meu intuito desvalorizar as lutas legítimas que emergem desse âmbito. Meu ponto é que tem havido, por parte dos denunciantes, uma mera replicação dos métodos usados pelos denunciados. Qual não foi a surpresa quando muitos de nós, relegando o papel profético que nos cabe como cristãos e demonstrando uma imaturidade bíblica colossal, começamos a projetar sobre novos grupos políticos uma esperança messiânica de libertação, exatamente como faziam aqueles a quem denunciávamos.

A equivalência entre a densidade e a complexidade das doutrinas e ações políticas deliberadas para tomada de poder por parte de cada grupo, obviamente, não é real. Há um lado muito mais treinado, experiente e filosoficamente munido para esse trabalho. Todavia, o que a realidade tem demonstrado é que aqueles que denunciavam os experimentos humanos falidos de uma corrente política adversária, continuam projetando a resolução de suas próprias vidas em homens, entretanto, munidos agora de outras doutrinas, políticas, cores, bandeiras, números e rostos. Seria como se deixássemos de adorar a Baal e passássemos a adorar à Astarote.

Quando me refiro ao problema da idolatria política, quero dizer que grupos organizados politicamente têm nos inebriado de tal forma, a ponto de projetarmos sobre eles e suas diretrizes, as aspirações mais caras de nossos corações. Parece que a idolatria política tem nos sugado o que há de mais sublime. Se tudo que eu faço não estiver de algum modo servindo para que meus intentos políticos sejam afirmados publicamente, então minhas ações estão incompletas. Ou seja, o que valida a forma como eu vivo é a política, e não os valores intrínsecos de cada aspecto da vida com os quais eu me envolvo. Tomar um remédio virou um ato político. Tomar uma vacina virou um ato político. Ouvir uma determinada estação de rádio virou um ato político. Andar de moto virou um ato político. Ir ou não à igreja virou um ato político. Assistir ou não a um jogo da Seleção Brasileira virou um ato político! Será que, em algum momento da história brasileira, já nos deparamos com uma contaminação idólatra tão assustadora como essa diante da qual estamos?

Direta ou indiretamente, a política tem assumido um lugar de redenção dentro de nós que deveria pertencer somente a Deus. E a igreja tem participado negativamente de tudo isso. A igreja, em muitos de seus setores, mais tem confundido do que iluminado. Nossa resposta a uma doutrina política que reduz o todo da vida humana ao serviço de si mesma, tem sido quase que igual, diferindo-se apenas pelo verniz religioso que nossas liturgias políticas têm assumido. Como representantes do Reino de Deus, ao invés de devolvermos cada fragmento da existência às mãos daquele que é o dono de todas as coisas, temos apenas trocado de idolatria, entregando tudo o que recebemos das mãos de Deus nas mãos de intermediários travestidos de representantes de Deus.

Cortou-me o coração quando dia desses li uma talentosa cantora falando em ‘arte de direita’. Ela estava encabeçando uma iniciativa para reunir artistas de direita numa espécie de festival artístico conservador. Eis uma péssima proposta. Eis o empobrecimento atroz do espírito humano explícito diante de nós. Eis o aprisionamento serviçal da arte a um falso deus. A arte possui um valor intrínseco incalculável, e não deve estar a serviço de nada que não o belo, muito menos rebaixar-se ao papel de mera moldura para um projeto político que o que tem de passageiro, tem de raso.

As leis que regem cada palmo da nossa existência foram estabelecidas pelo próprio Deus. Foi Ele quem criou todas as coisas com seus devidos propósitos e em seus devidos lugares, de modo que quando cada devido propósito instituído por Deus é cumprido, Ele é glorificado. A arte não deve servir à política, mas à beleza. A família não deve servir à política, mas à preservação da comunidade humana. A igreja não deve servir à política, mas à expansão do Evangelho. A medicina não deve servir à política, mas ao cuidado do enfermo. O direito não deve servir à política, mas à justiça; e assim sucessivamente. Cada palmo da existência pertence a Deus e para glória dele deve existir, assim legislou o Supremo Legislador, e se assim o for, Ele sempre será glorificado, exatamente como deve ser.

Quando rompemos a diretriz de Deus de glorificarmos a Ele em todas as coisas, abrimos espaço para um desajuste quase que irremediável para o desenvolvimento saudável da vida. É como enfiar uma barra de ferro no meio de uma engrenagem. Tudo sai do lugar, fica desajustado, disfuncional. Assim são os homens quando projetam o compromisso de seus corações em algo ou alguém que não o Criador. Quando o eixo de nossas vidas sai das mãos daquele que nos formou, tudo que virá em seguida será confusão, ilusão, perda de tempo e condenação.

A política tem se agigantado no imaginário da nossa população e em grande parte do imaginário da própria igreja. Quer consciente ou inconscientemente, muitos de nós começamos a alimentar a ideia de que nossa salvação não passa mais somente pela cruz de Cristo, mas também pelo político que mais admiro. A política tem tomado proporções destruidoras, tem invadido espaços que não pertencem a ela, e sequestrado corações em seus mais íntimos anseios por liberdade e realização pessoal. Isso é pecado e nós precisamos nos arrepender. Nós precisamos reposicionar a política no lugar legítimo que ela ocupa no mundo de Deus, e, precisamos denunciar os agentes que tem se utilizado da política a fim de instrumentalizar os homens para seus próprios projetos pessoais. Quer isso esteja sendo feito consciente ou inconscientemente, direta ou indiretamente.

Pensando a partir da sociedade brasileira, a politização de todas as coisas já caracteriza, sem dúvidas, um grande problema. Todavia, quando pensamos a partir da comunidade da igreja, esse problema torna-se muito maior e, diria, quase que intolerável. Nós temos sonegado a destra da comunhão a irmãos que divergem politicamente de nós. Quem tem arbitrado as nossas relações na igreja não é mais o sangue vertido no calvário, mas os números que digitamos nas urnas eleitorais. Quantas não são as mesas em épocas festivas que estão divididas pelo mal-estar da política? Quantos pais sem falar com seus filhos? Quantos filhos sem falar com seus pais? Quantos pastores censurando seus membros e quantos membros censurando seus pastores? A razão de todos esses relacionamentos estarem fraturados é que temos confiado mais nos políticos do que em Jesus Cristo para o julgamento de como vivemos e nos relacionamos com o próximo. Cristo foi subjugado e está rebaixado às nossas paixões ensandecidas por candidatos, isso está nos destruindo. Em nome de nosso amor aos políticos, temos amado menos ao próximo e ainda menos a Cristo.

A igreja precisa dar um basta em sua própria subserviência idólatra à politicagem passageira. O Brasil precisa da igreja não como cúmplice de uma seita gigante que desbancou Deus a fim de utilizá-lo para seus próprios fins, mas, como profetiza que anuncia o Reino de Deus entre nós, onde todo joelho deve se dobrar e toda língua deve confessar que somente Cristo Jesus é o Senhor. Nossa missão é desenvolvermos a habilidade profética de viver nesse lugar histórico meio indecifrável entre o já e o ainda não, entre o viver no mundo e não pertencer a ele. Que Deus nos dê o discernimento e a coragem para o arrependimento. Que passemos, de hoje em diante, a deixar somente aos pés da cruz nossas aspirações e preocupações mais íntimas, e, que nossos sacrifícios deixem de ser políticos, já que a era dos sacrifícios cessou na cruz, e, hoje, o único compromisso irrevogável que o Senhor requer de nós é a obediência.