Fidelidade com lacunas

No dia 31/07/2010 eu renunciei a todas as mulheres do mundo, exceto uma. O leitor provavelmente entendeu que me refiro ao meu casamento, mas esse é um modo pouco usual de fazê-lo; é verdadeiro e revela algo importante sobre o sentido do casamento, mas costumamos enfatizar os aspectos afirmativos, e não os negativos, que nos ocorrem com maior dificuldade, sejam quais forem as razões disso.

Na reflexão sobre ciência, o espírito humanista contribui para um olhar enviesado do mesmo tipo. A narrativa convencional e o imaginário coletivo enfatizam as vitórias, os progressos, as realizações que um dia pareceram impossíveis, o mundo de possibilidades ilimitadas que o futuro reserva. Visão que, romanceada ou idólatra, sempre distorce a realidade.

Um exemplo de como essa distorção funciona pode ser visto no livro Criação ou evolução: precisamos escolher? (Viçosa: Ultimato, 2017), do biólogo cristão Denis Alexander, que defende uma perspectiva evolucionária. O capítulo destinado à crítica do design inteligente é incompetente de muitas maneiras, mas me concentrarei nesse único ponto. Segundo ele (p. 334-5),

a inferência do design […] está baseada no argumento central do DI sobre a suposta incapacidade dos mecanismos evolutivos de explicar a entidade em questão. Assim que chegam novos dados, o argumento em favor do designer é rapidamente vaporizado […]. Não é sem razões, portanto, que esse elemento central da posição do DI tem sido acusado de ser um argumento […] análogo ao desacreditado argumento do ‘deus das lacunas’, onde ‘deus’ é utilizado como explicação para algum mistério ainda não resolvido pela ciência. Evidentemente, a ciência avança, o suposto mistério desaparece, e a noção de ‘deus’ encolhe cada vez mais.

O “deus das lacunas” é um argumento antigo. Baseia-se na convicção de que há causas cientificamente explicáveis para tudo e, quando assim não parece, é apenas pelas limitações do conhecimento atual. Quando a ciência avança, lacunas somem, e assim invocar Deus para preenchê-las seria uma má ideia, pois ele será inevitavelmente desentocado dali.

Tal argumento pressupõe otimismo quanto ao poder da investigação científica e é francamente antissobrenatural. Um materialista pode usá-lo de modo consistente: segundo seus pressupostos, não existem limites a esse projeto na investigação do que quer que seja. Entretanto, o argumento tem sido usado de modo irrefletido e inconsistente por cristãos que aderem a uma abordagem evolucionária. Citei Alexander, recém-chegado no mercado editorial brasileiro, mas Francis Collins já fizera o mesmo em seu clássico A linguagem de Deus (São Paulo: Gente, 2007).

Uma falsa concepção do progresso científico domina o argumento. Na verdade, entender cada vez mais o mundo natural não equivale a sempre viabilizar o que parecia inviável. A história da ciência realmente apresenta descobertas notáveis que abriram portas que todos consideravam fechadas, mas outras (ou as mesmas) também fecharam portas que todos julgavam abertas. As leis da termodinâmica demonstraram a impossibilidade do moto-perpétuo. O teorema de Gödel extinguiu certas pretensões de formalização lógico-matemática. As leis da química rechaçaram o velho sonho de fabricar ouro. A relatividade vetou a ideia de alcançar velocidades superiores à da luz. Ressaltar apenas o outro aspecto dessa história é uma opção ideológica, e não uma boa descrição da natureza da ciência. Não é só achar uma mulher: é também desistir das outras.

Não é correto, portanto, atribuir toda limitação à falta de conhecimento. Em algumas situações, pelo contrário, a ignorância produziu a ilusão de que certas coisas eram possíveis quando não eram, e descobrir limitações reais também representou avanço científico. As propostas do DI sobre a natureza da informação são desse tipo, e não são um caso isolado na história da ciência. A pretensão de tratá-las como mera ignorância é em si mesma efeito da ignorância.

Sendo mais específico, imputações de “mera ignorância” são enganosas quando tratamos de afirmações que contradizem o melhor conhecimento disponível. Quem crê no moto-perpétuo pode dizer que a descrença geral se deve à ignorância e incapacidade de produzir um até o momento, o que se resolverá com o progresso da ciência. (O caso não é fictício: Karl Popper relatou em sua autobiografia o contato com alguém exatamente assim.) Mas a afirmação é enganosa porque as leis conhecidas sobre fluxo de energia declaram o moto-perpétuo impossível, e não apenas incerto. Não é como uma equação que ninguém resolveu, e sim como uma equação que alguém provou que não tem solução. E, segundo um matemático que conheci, quem prova que uma equação não tem solução traz grande contribuição ao conhecimento, pois leva outros matemáticos a pararem de perder tempo.

Não ignoro que o progresso da ciência traz surpresas. Ideias que pareciam provadas já se revelaram falsas, e outras refutadas também já voltaram à consideração. Não devemos fazer declarações muito convictas sobre as descobertas futuras, pelo excelente motivo de que o futuro, por definição, não está presente. Portanto, em princípio é possível que o moto-perpétuo seja inventado e as dificuldades da teoria evolutiva sejam superadas. E daí? É igualmente possível que as complicações só aumentem (Alexander em parte alguma do livro considera essa possibilidade). O futuro é campo aberto ao devaneio, e não há muito proveito ou racionalidade em fazer afirmações confiantes sobre ele. É apenas um ótimo truque para não considerar seriamente a evidência disponível hoje, uma desculpa para ignorar os fatos atuais. Se não fosse assim, cessaria a própria motivação para falar do futuro com tão ostentosas demonstrações de confiança.

Mas algo mais grave que a retórica está envolvido: a especulação sobre o futuro revela não só a imaginação, mas também a fé de quem fala. Um ateu típico usa o “deus das lacunas” de modo consistente, pois crê que há explicações naturais para tudo. O cristão sabe que isso não é verdade e não deve se espantar se o mistério for maior que o esperado; diferenças entre cristãos verdadeiros serão de grau, não de princípio. Olhando dessa perspectiva, o uso irrefletido do artifício argumentativo “deus das lacunas” tem algo de inautêntico. É a tentativa inconsciente de enxertar na fé cristã uma esperança humanista. É como se casar sem abrir mão das outras mulheres.