Passaporte sanitário em Pernambuco

Mais um caso de desrespeito à laicidade colaborativa brasileira

O Brasil possui o melhor sistema constitucional de laicidade do mundo. Essa constatação nos inspirou a escrevermos o livro “A Laicidade Colaborativa Brasileira: da aurora da civilização à Constituição brasileira de 1988”, com objetivo de contar como o Brasil conseguiu produzir – constitucional e legalmente – o melhor modelo de relacionamento entre poder religioso e poder político em comparação a mais de uma dezena de países analisados e, provavelmente, do mundo.

Entretanto, isso não nos imuniza de passar por violações à liberdade religiosa e liberdade de crença, e não evita que estejamos diante de situações capazes de nos arrancar lágrimas. Afinal, como dizem por aí, “na prática a teoria é outra”. Não sem motivo que rankings como do Pew Institute, World Bank e outros, nosso índice chega à metade de países como Portugal (que também possui uma laicidade colaborativa como a nossa), por exemplo.

Durante o curso da pandemia em 2020 e 2021 muitas situações estranhas foram vistas pelo Brasil em termos de decisões violadoras de nossas liberdades por parte de gestores públicos municipais e estaduais pelo país. Seja por falta de isonomia (como a postura do prefeito de Belo Horizonte) ou atos frontalmente hostis mesmo, como é o caso do governo do Pernambuco. Lembremos que no período mais agudo do ano passado nem mesmo lives tinham sido permitidas pelo governador.

Agora a da vez é a obrigação imposta mediante decreto do governador do Pernambuco, que entrou em vigor no dia 27 de setembro de 2021, determinando que, para participar de celebrações religiosas em templos que comportem mais de 300 pessoas, é obrigatório a apresentação de comprovante de vacinação ou, no caso de esquema vacinal incompleto, comprovante de resultado negativo ao COVID-19. Para não ficar em nossas palavras, citamos a literalidade do parágrafo único do art. 2º do decreto, que pode ser lido por completo clicando aqui:

Celebrações religiosas com mais de 300 (trezentas) pessoas devem observar os limites de capacidade do ambiente e número máximo de pessoas estabelecidos em Portaria Conjunta da Secretaria de Saúde e da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, que também disciplinará a exigência da apresentação dos comprovantes do esquema vacinal completo e/ou dos resultados negativos dos testes para a Covid 19.

Antes de adentrarmos na análise do decreto propriamente dista, deixamos o presente disclaimer: não estamos defendendo que as pessoas têm que tomar a vacina ou deixar de tomar. Cada um tem um conjunto de preceitos e deve agir de acordo com a sua consciência, não cabendo ao Estado, nem a um grupo de pessoas, obrigar, de forma direta ou indireta, o que os outros devem fazer ou deixar de fazer em relação a vacinação, por mais que nosso conselho seja pela vacina. Contudo, conselho não é ordem. Também falamos sobre isso em outro texto que você pode ler aqui.

Não é à toa que defendemos que a liberdade de crença é primária, já que parte da consciência humana. “A liberdade de crença é a garantia que qualquer cidadão tem, brasileiro ou não, de optar por professar qualquer religião que escolher, assim como, em razão da liberdade de consciência, também, optar por não escolher nenhuma[i]. A mesma liberdade de consciência que protege a dimensão interna das nossas escolhas é a liberdade que está ao lado da liberdade de crença no art. 5º, inciso VI da Constituição Brasileira de 1988.

De capa a capa, a Constituição de 1988 reconhece a importância do fenômeno religioso para o brasileiro, protegendo-o nas suas diversas formas de manifestação. O livre exercício dos cultos religiosos é assegurado, e os locais em que são realizadas as liturgias e o sagrado é […] devidamente protegido. A liberdade de crença é inviolável e garantida […][ii].

Tal decreto de Pernambuco viola a liberdade de crença e de culto ao impedir fiéis que não adotaram um consenso em relação a tomar a vacina do COVID-19 ou, não se vacinaram ainda pela própria falta da vacina, especialmente da segunda dose, de frequentar seus cultos e atos litúrgicos, mesmo cumprindo todos os protocolos de segurança. Já no transporte público não faz tal exigência!

Na prática o governador está dizendo quem pode e quem não pode cultuar. Percebam a gravidade da situação: fomos alertados sobre uma onda de perseguição envolvendo violência física e prisões, mas estamos a ser atacados com outras modalidades de persecução religiosa. Comunidades de fé substituindo os cultos presencias por uma tela de transmissão ao vivo, redução dos cultos, verticalização das relações humanas e assim por diante: o decreto do governador pernambucano revela um grave processo de depenação da fé, usando como justificativa a saúde pública.

O Brasil ainda é uma democracia, sendo assim não vamos nos calar e, mesmo que vivêssemos em um país totalitário, em que fosse crime ser cristão e viver conforme seus preceitos e dogmas, continuaríamos fazendo, nem que fosse na prisão ou em catacumbas.


[i] VIEIRA, Thiago Rafael. REGINA, Jean Marques. Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas. 3ª Ed. São Paulo: Edições Vida Nova, 2020. p. 88.

[ii] VIEIRA, Thiago Rafael. REGINA, Jean Marques. A laicidade colaborativa brasileira: da aurora da civilização à Constituição Brasileira de 1988. São Paulo: Edições Vida Nova, 2021, p. 260.