Duas cidades em uma conversa de Natal

Palestina, manhã de Natal

Belém: “Ó Rei das nações, quem não temerá? Quem não glorificará teu nome? Ó Rei das nações, quem não te louvará? Pois só teu nome é santo…”. Bom dia, Jerusalém! Até que enfim você acordou.

Jerusalém: Oi…

Belém: É hoje!

Jerusalém: É. Eu sei. Já percebi pela música.

Belém: Por que você está assim? “Alegrai-vos!”. O nascimento do Rei! Você não se lembra das palavras do anjo: “… eis aqui vos trago boa-nova de grande alegria”. Grande alegria!

Jerusalém: Obrigada. Agora estou me sentindo ainda mais culpada por não estar nessa “alegria” toda.

Belém: Para com isso! Bom, eu gosto de usar essa época para lembrar do meu passado.

Jerusalém: “Passado”… Esse é exatamente o meu problema. Obrigada de novo.

A alegria de uma cidade

Belém: Lembro-me da primeira vez que o profeta Samuel veio aqui, 3.000 anos atrás, para encontrar com aquele menino ruivo, o jovem pastor de ovelhas…

Jerusalém: O rei Davi?

Belém: Você tinha que ver o rosto do Jessé, o pai dele, quando o Samuel chegou.

Jerusalém: Mas o Samuel também não esperava que o caçula fosse o escolhido.

Belém: Tem razão. Nenhum dos dois. “O SENHOR não vê como vê o homem. O homem vê o exterior, porém o SENHOR, o coração”. Os padrões de Deus são diferentes dos padrões dos homens. E o Miqueias? Eu gostava daquele profeta. Bom, eu gostava de todos, você sabe, mas  eu lembro até hoje quando ele  disse o meu nome naquela profecia. Eu sabia da aliança que o Senhor tinha feito com Davi, 300 anos antes, que o trono dele seria estabelecido para sempre e tudo o mais, mas quando você ouve o seu próprio nome a coisa fica mais pessoal, sabe? “Eu tu, Belém…”

Jerusalém, interrompendo sem paciência:  “E tu, Belém-Efrata, pequena demais para figurar como grupo de milhares de Judá, de ti me sairá o que há de reinar em Israel, e cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade”. Eu já memorizei de tanto você repetir.

Belém: Sabe quando o apóstolo dos gentios disse: “vivo pela fé no Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim”? Então. E quando Habacuque chamou Deus de “meu Santo”? Me dei conta de que não apenas eu conhecia a Deus, mas Deus me conhecia. Pelo nome. E ainda mais essa: o Rei eterno nascendo nas minhas terras?! Contei cada dia até Ele nascer. Sabe aquelas marcas na parede da Caverna Sul que comentei contigo outro dia e que não me lembrava sobre o que era.

Jerusalém: Sei.

Belém: Então, depois eu lembrei. Cada marca daquela significava um dia. Foram 255.523 marcas até o nascimento do Rei. Quase 700 anos. “Ora, esperança que se vê não é esperança; pois o que alguém vê, como o espera? Mas se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos”.

Jerusalém: Que paciência você tem.

Belém: Confesso que fiquei preocupada quando Maria começou a ter contrações antes de chegar aqui. Mas deu tempo. Ninguém quis hospedá-los, mas tudo bem. Desde quando  isso é problema para Deus? Acho que entendo o sentimento de Maria quando ela cantou “meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador, porque contemplou na humildade da sua serva…”. Uma mulher humilde em um lugar humilde de uma cidade humilde com um Rei glorioso se fazendo humilde. O cenário perfeito para manifestar a glória de Deus, você não acha?

Jerusalém: Achei que você ia usar as palavras do ex-fariseu de novo: “Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas humildes do mundo, e as desprezadas, e aqueles que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus”.Belém: Eu não me lembrava, mas de qualquer forma, amém!

Jerusalém: Tá vendo. Sua história é bacana. Por isso você está assim. Já a minha…

Belém: Você ainda está triste… Me desculpe, Jerusalém. Fui insensível.

Jerusalém: Não precisa se desculpar. Você tem motivos para estar feliz. Você será para sempre lembrada como a cidade em que o Rei nasceu. E eu? A cidade que matou o Rei…

E a tristeza de outra…

Belém: Ué? Mas você também…

Jerusalém interrompe, amargurada: Eu estraguei tudo. Olha para minha história. Olha o meu passado. Toda vez que as coisas pareciam estar indo bem,  estragávamos tudo.  Vivíamos  abandonando o  Rei. Quando Salomão construiu aquele templo majestoso, fiquei preocupada. E não é porque eu sou pessimista  não. Sou realista! Pensei comigo mesmo: “Até quando teremos o Salomão humilde da oração ‘não passo  de uma criança, não sei como conduzir-me’”? Quanto tempo será que vai durar?

Belém: Às vezes é melhor viver em meio a tribulações do que a calmaria.

Jerusalém: Pois é! Alguns anos depois Salomão desviou o coração do Senhor. Eu não tinha razão? E Roboão, o filho dele? Ignorou o conselho dos mais sábios e fez nosso reino se dividir. Desde então, nunca mais fomos os mesmos.  Alguns reis até  lideraram uma reforma espiritual, mas nunca durava muito. Amaioria  dos reis  dá vergonha de lembrar. Me sinto mal só de lembrar daqueles altares e rituais que fazíamos para os outros deuses.

Belém: Mas…

Jerusalém: Não tem “mas”, Belém. É a triste realidade. É verdade que o Pai podia ter nos destruído de uma vez por todas,  e  ao invés disso  preferiu  nos  disciplinar, mas nossa memória  era curta.  Nos esquecíamos de anos de passado negro em poucos dias de céu ensolarado. Os mesmos erros de sempre: Idolatria.  Autoexaltação. Falta de  misericórdia com o necessitado. Desobediência constante. Quebra da aliança.  Será que eles achavam que iam impressionar ao Pai do Rei com aquele monte de sacrifícios de animais? Coração, Deus quer o coração! Eles deviam ler mais Davi…

Belém acena com a cabeça, concordando.

Jerusalém: O Pai usou até  nações  ímpias  para nos corrigir: Assíria, Babilônia,  Pérsia, Grécia, Roma. Nada, nada resolvia o problema.

Belém: É que o problema é mais grave que…

Jerusalém interrompe novamente: E os profetas?! Matamos os profetas! Você lembra o que o Rei disse quando entrou aqui pela última vez?

Belém permanece quieta, sem saber como ajudar.

Jerusalém:  “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não quisestes! Eis que a vossa casa ficará deserta”. Ele quis reunir, mas nós éramos um povo obstinado. Lembro do rosto do Rei quando ele disse isso. Só de te contar isso fico com vontade de chorar. Está vendo, eu não te disse? Você tem motivos para estar feliz, eu não. Você ouve lindas profecias, eu ouço julgamento. Você não estragou seu passado como eu. Você entende porque estou assim?

Belém: Eu entendo porque você está triste.

Jerusalém:  Acho que você não entende não… E para  terminar “bem”, nós  rejeitamos  o Rei, o prendemos injustamente, batemos nele, cuspimos, ridicularizamos, blasfemamos e o pregamos em uma cruz. O Rei?! Olha o que fizemos! Matamos o Rei! Por quê? Porque Ele era bom demais para a gente suportar. Ele mesmo disse: “O julgamento é este: que a luz veio ao mundo, e os homens amaram mais as trevas do que a luz; porque as suas obras eram más”. Nossa maldade não suportou  a pureza divina. E desde então só o que tenho visto aqui é guerra…

Belém: Entendo. Mas acho que você está olhando para a sua história de uma forma errada.

Jerusalém: Não estou não. São os fatos.

Belém: Tá bom. É verdade, você não disse nenhuma mentira. Mas a sua forma de olhar as coisas, apesar de não ser inteiramente falsa, está limitada.

Conselhos para uma Jerusalém depressiva

Belém: Jerusalém,  há séculos (literalmente!)  venho falando  isso para você, mas para mim não tem nenhum problema repetir. Eu falo  novamente  quantas vezes for necessário.  Eu gosto de você.  Só me prometa que você vai prestar atenção. Eu falo, você presta atenção. Combinado? Depois, se você quiser, deixo você continuar chorando as mágoas do passado.

Jerusalém: Tá bom. Fala.

Belém: Primeiro, todos nós temos problemas  no  passado.  “Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus”. E não só no passado. Nosso presente e nosso futuro também são “injustos”. Ou você acha que hoje à noite poderá colocar a cabeça no travesseiro e agradecer ao Rei: “Senhor, obrigado porque hoje eu não pequei.”?

Jerusalém: Acho que não.

Belém: Então.

Jerusalém: É, mas saber que outros também  têm problema com o passado não resolve o  meu problema.

Belém: Eu sei. Calma, eu ainda não terminei. Em segundo lugar, você está olhando para a história como se o Rei não soubesse o que iria acontecer ou como se Ele não tivesse nenhum controle sobre o que estava acontecendo.

Jerusalém: Não foi isso que eu quis dizer.

Belém: Mas foi isso que você disse. É verdade que o Rei foi crucificado “pelas mãos de iníquos”, é verdade que se juntaram “nesta cidade contra o santo Servo” e Rei, mas também é verdade que o Rei foi entregue “pelo determinado desígnio e presciência de Deus”. Ele nasceu para morrer. Foi para isso que Ele veio. Ele sempre soube disso.  Desde a eternidade.  E Ele não recuou.  Você não lembra o que Ele disse: “Ninguém tira a minha vida de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para entregar e também para reavê-la. Este mandato recebi de meu Pai”. Não estou negando o pecado dos homens que o mataram e do plano diabólico para prendê-lo, mas no final das contas, não “pegaram o pobre Rei”. O próprio Rei se entregou para salvar o seu povo. É isso que significa o nome do Rei: salvação. O problema do nosso povo não era “memória curta”, como você sugeriu. Eles voltavam a pecar porque estavam escravizados pelo pecado e por Satanás. A lei não podia salvá-los. O Rei é o único que tem poder para destruir o pecado e Satanás. Os outros reis, mesmo Davi que você ama tanto, também era pecador e precisa de um Salvador. Olhe para a cruz como a vitória do Rei sobre o Mal, e não como a derrota dele.

Jerusalém olha para o chão, mas continua ouvindo atenta.

Belém: Não veja a cruz como fruto do pecado da humanidade. Veja-a como a manifestação da justiça, graça, sabedoria e poder de Deus  contra o pecado da humanidade. Como o caminho necessário para o perdão. É pela cruz que Deus é o justo e justificador daquele que tem fé no Rei.

Belém: Para terminar o segundo ponto. O Rei não ficou morto. Ele ressuscitou. Você é a cidade em que Ele morreu. OK. Mas você é também a cidade onde Ele ressuscitou! Nós temos esperança. A morte não é a palavra final para nós. Vivemos aqui, mas com os olhos na eternidade. O que me leva ao terceiro e último ponto:  nosso futuro. Você lembrou  das palavras de  julgamento para você.  Mas  e as promessas? E as graciosas promessas do Rei?

Jerusalém: Quais?

Belém: A promessa da ressurreição. A promessa de estarmos livre no dia do julgamento. A promessa da volta dele. Tudo o que nossa união com o Rei nos dá! Somos coerdeiros com o Rei, “se com ele sofremos, também com ele seremos glorificados”. Jerusalém, não precisamos de um passado perfeito. Não precisamos nem mesmo de um presente ou de um futuro perfeito. Nós precisamos de graça. Da graça de um Rei perfeito. Foi para isso que Ele veio. Por isso Ele nasceu aqui e por isso Ele morreu e ressuscitou aí. Para conquistar a graça. Você não é a única que tem manchas no passado. Devemos lamentar pelos nossos pecados, mas não podemos parar aí. Eu poderia ficar aqui por séculos (literalmente!) te contando meus pecados. Talvez você nem queira mais olhar na minha cara se eu te contar tudo. Mas sabe de uma coisa? Nós somos pecadoras, assim como todas as outras cidades. Jerusalém, o Rei não veio para as cidades que têm um passado perfeito. Ele veio para as pecadoras como eu e você. Nossa esperança não está na nossa história, mas na história do Rei. Ele veio, morreu, ressuscitou e vai voltar. Isso é o Natal. Você entende melhor agora as palavras de “grande alegria” do anjo?

Jerusalém: Acho que sim. “Glória a Deus nas maiores alturas, e paz na terra entre os homens, a quem ele quer bem”. Obrigado por me lembrar dessas coisas, Belém. Você tem sido uma amiga fiel. Estou me sentido um pouco melhor.

Belém: Que bom. Jerusalém, o Rei vai voltar! Você já parou para pensar nisso? Ele virá com seus santos anjos, cheio de poder e muita glória! Ele prometeu que vai acabar com todo o mal e a terra vai se encher com a glória dele. Essa saudade que a gente tem dele vai acabar. E nós seremos transformadas! Finalmente redimidas do “cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus”. Você lembra do final da última carta do discípulo amado falando sobre o seu futuro? Sobre o seu futuro.

Jerusalém, enxugando as lágrimas: Lembro…

Belém: “Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém (você!), que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo”. Esse é o futuro de todos os seguidores do Rei. O Rei vai enxugar pessoalmente  cada lágrima depressiva. “Não haverá luto, não haverá pranto, não haverá dor, porque as primeiras coisas passaram”. Jerusalém, um futuro glorioso te espera. O que o Rei promete, Ele cumpre.

Jerusalém: Eu quero que Rei volte logo.

Belém: Eu também! Mas  Jerusalém,  enquanto Ele não volta,  quando vier a sua mente os gritos de “Crucifica-o, crucifica-o”, lembre-se também do “Está consumado!” dele na cruz. Quando você lembrar da coroa de espinhos furando a cabeça dele e o sangue escorrendo pelo seu rosto machucado, lembre-se também que agora ela está com a coroa real, glorificado, sentando no trono com o Pai, reinando. E quando o choro dos discípulos e das mulheres aos  pés da cruz  vier à  sua memória, troque-o pela alegria deles quando viram o Rei ressurreto dizendo: “Paz seja convosco!”. O Rei já venceu. Nossa tarefa agora é falar isso para todas as cidades até o Rei voltar.

Jerusalém: Como o discípulo amado encerrou o último livro: “Amém! Vem, Senhor Jesus”.

Belém: É bem melhor te ver assim. Feliz Natal, Jerusalém.

Jerusalém: Obrigada. Feliz Natal para você também, Belém. Posso cantar uma música com você?