Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste (Introdução)

Refletindo sobre nossa autoimagem e o pecado

Este post faz parte da série Salmo 32.

“Se Deus faz essa pergunta [‘Onde você está?’], Ele não quer saber algo que ainda não saiba sobre a pessoa; Ele quer provocar alguma coisa nessa pessoa, algo que só pode ser provocado dessa maneira – com a condição de que a pergunta atinja o coração da pessoa, de que a pessoa se permita ser atingida no coração.

Adão se esconde para não ter de dar satisfações, para escapar da responsabilidade em relação à própria vida. Dessa maneira, todos os homens se escondem, pois todos são Adão e estão na situação de Adão. Para escapar da responsabilidade por sua vida, a existência é transformada num sistema de esconderijos” – Martin Buber (1878-1965).[1]

O Senhor é cheio de terna misericórdia e compassivo. (Tg 5.11).

Introdução

Quando era estudante, havia algumas revistas de gostava de ler. Em uma delas encontrei uma pergunta mais ou menos assim: Quando um homem que atravessa a floresta começa a sair? Ainda que não soubesse, a resposta é simples: Quando ultrapassar o meio. Lógico. Depois do meio ele não mais entra, começa a sair. Faz sentido. O difícil é que não há uma placa indicando o meio da floresta…

Creio que um pouco antes desta fase, mas ainda estudante, li Descartes (1596-1650), que descrevendo o seu método, o seu itinerário intelectual, nos fala sobre dividir o problema da forma mais completa possível a fim de pelas partes entender o todo gradativamente.[2]

Na maturidade tornei-me “Cartesiano” nesta particularidade. Quando dividimos ainda que idealmente as dificuldades (“o todo”[3]) por fases ou tempos, podemos, em geral, lidar melhor com elas.

Normalmente quando tratamos da graça Deus que nos alcança e transforma, enfocamos uma parte fundamental desta realidade, porém, que não é a primeira. A vida cristã não começa pela paz e alegria. Pelo contrário. O primeiro fruto da graça da fé, é a tristeza[4] pelo pecado que se manifesta em arrependimento.[5]

Esse processo pode ser mais ou menos doloroso, porém, sempre angustiante. Contudo, sabemos, que a alegria do perdão supera em muito esses passos essenciais à vida cristã, ainda que não apenas em seu início, já que a nossa nova vida será marcada por arrependimento, confissão e restauração.[6] Tudo isso, sem dúvida, pela maravilhosa graça de Deus.

De certa forma, a história de nossa vida não deixa de ser uma demonstração prática dos efeitos de nossa obediência e desobediência a Deus, sempre, é claro, envolvida pela misericórdia de Deus que nos capacita a obedecer, nos perdoa em nosso arrependimento e nos restaura à sua comunhão.

O tema do Salmo 32 é a soberana graça de Deus que se manifesta na concessão de perdão aos nossos pecados.[7] A grande lição do salmista é que o ocultar seus pecados agrava a dor e amargura, enquanto o arrependimento acompanhado de uma confissão sincera, produz alívio e a alegria proporcionada pela restauração à comunhão com Deus.

Isso é de grande relevância para nós pois, o homem que não sente a necessidade do perdão de Deus certamente não tem a consciência de sua condição de pecador e de como isso é grave diante de Deus, aquele que é absolutamente Santo.

No entanto, por estranho que possa parecer, essa é uma ilusão farisaica que consiste em estar contente consigo mesmo e não perceber a gravidade de seu estado de pecado e miséria.[8]  Perdemos a dimensão de que o pecado embaralha a nossa capacidade de percepção, vela os nossos olhos, e nos oferece um resultado viciado que tende a nos agradar em nossa credulidade ingênua, porque vem com o título de “saudável”.

Satanás, sem muita dificuldade, nos circunda com uma atmosfera de pecado que não nos permite perceber o quão viciado é o  ar que respiramos, já que ele é comercializado com o rótulo de normalidade. Sabemos que o que habitualmente nos cerca tende a assumir o status de normal para nós.[9]

Assim sendo, o caminho de Deus proposto em sua Palavra, torna-se estranho, alienante e bizarro. A fé cristã parece para muitos é um desperdício de vida, como se estivéssemos jogando a nossa vida fora.[10] De fato, uma visão de um único ponto sem conseguirmos verificar o seu contexto pode nos conduzir a grandes equívocos.

O pecado, entre outras coisas, fragmentou a nossa visão, nos forneceu um grande espelho que promete ser muito abrangente. Contudo, a realidade que reflete está distorcida, nos conduzindo a uma grande aversão à verdade (realidade). “O verdadeiro obscurecimento efetuado pelo pecado reside (…) no fato de que perdemos o dom de abranger o contexto real, a coerência apropriada, a integração sistemática de todas as coisas”, interpreta Kuyper (1837-1920).[11]

Por isso, é que com muita frequência, os piores diagnósticos são os autodiagnósticos. Ou, como diz Watson (c. 1620-1686): “O olho pode ver tudo, menos a si mesmo”.[12]

Autoimagem

Aliás, diria mais: Muito dos conselhos dados a quem se sente mal socialmente, tem a ver com o se sentir bem, ter um olhar altivo, uma visão positiva de si mesmo e do seu valor. O fundamental, dizem, é ter a autoestima elevada,  um bom “astral”, “estar de bem com a vida” e coisas do gênero.

Calvino (1509-1564) é bastante objetivo nessa questão:

Desejosos de manter nossa autoestima, levamos muito a sério quando somos desprezados. Essa doença da natureza humana é tão generalizada que cada pessoa deseja que seus vícios agradem a outros. Se alguém nos desaprova por alguma coisa que fazemos ou dizemos, nos sentimos imediatamente ofendidos sem qualquer razão plausível. Que cada um de nós examine a si mesmo, e encontrará essa semente do orgulho em sua mente, até que a mesma seja erradicada pelo Espírito de Deus.[13]

Somos todos pecadores

Em uma vertente oposta, a Escritura demonstra  que somos pecadores (Rm 3.23; 6.23) e que necessitamos da graça de Deus.

O pecado é o grande nivelador de toda a humanidade: todos pecaram. Logo, não há lugar para arrogância ou supostas boas obras justificadoras (Rm 3.19-20).[14] Se todos pecaram, isso significa que nós também pecamos. Se todos precisam de salvação, significa que nós também precisamos.

“Pecado não é algo peculiar a uns poucos, senão que permeia o mundo inteiro”, resume Calvino (1509-1564).[15] O pecado nos condena e, ao mesmo tempo, nos impossibilita totalmente de nos salvar a nós mesmos. Que fazer então? Poderemos nos salvar? Qual caminho proposto por Deus?


[1]Martin Buber, O Caminho do homem segundo o ensinamento chassídico, São Paulo: É Realizações, 2011, p. 10.

[2]Para não correr o risco de ser infiel a Descartes, seguem as suas palavras do segundo enunciado: “Dividir cada uma das dificuldades que eu examinasse em tantas parcelas possíveis e quantas necessárias fosse para melhor resolvê-las”. Esta regra é chamada de “divisão ou análise”. O quarto enunciado do mesmo método, consiste em “fazer em toda parte enumerações tão completas e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada omitir” (René Descartes,  Discurso do Método,  São Paulo: Abril Cultural (Os Pensadores, v. 15), 1973, p. 45-46).

[3]O todo pressupõe a sua “divisibilidade” (a capacidade que um todo tem de ser fragmentado quer materialmente, quer idealmente). Chama-se “todo”, aquilo que dispõe de unidade mas, que pode ser subdividido fisicamente (materialmente), ou ao menos idealmente em muitos elementos. Daqui se classificam três modalidades de “todo”: Físico, lógico e moral. a) O todo Físico, Natural ou real é aquele cujas partes essenciais são realmente distintas. Este todo pode ser:  Quantitativo, enquanto composto de partes homogêneas. Ex.: Um bloco de mármore; Essencial, enquanto formando uma essência completa, cuja separação acarretaria a sua desintegração. Ex.: O homem; Potencial, enquanto composto de diferentes faculdades. Ex.: A alma humana enquanto composta de inteligência, vontade e sentimento; Acidental, enquanto composto de partes unidas pelo exterior. Ex.:  Uma mesa, um monte de seixos.         b) O todo Lógico ou Metafísico é aquele em que as partes se distinguem  apenas pela razão, não podendo ser separada concretamente, ela só pode ser feita por intermédio da razão. Esta divisão faz parte do pensamento “a priori”. Exprime-se por uma noção universal, que contém outras a título de partes subjetivas. Assim, o gênero contém suas espécies: A ideia de metal em relação aos diferentes metais (ferro, estanho, cobre, zinco) ou ainda a ideia de animal em relação a animal racional (homem)(embora saibamos que o homem não se limite a isso) e animal irracional (demais animais). c) O todo Moral é aquele cujas partes, atualmente distintas e separadas, são unidas pelo elo moral de um mesmo fim:  uma nação, um exército, uma escola, uma família. É expresso por um conceito coletivo.

[4]“A primeira operação da fé não é louvor e adoração, mas penitência e um espírito quebrantado. Este é realmente um sacrifício que é trazido ao Senhor, pois “os sacrifícios agradáveis a Deus são  espírito quebrantado e coração contrito”. No entanto, a alma não sabe nem percebe isso de imediato. A primeira consciência da nossa vida espiritual é tristeza e dor, e não alegria”  (Abraham Kuyper, The Biblical Doctrine of Election, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1934, p. 17).

[5]“A verdadeira conversão surge da tristeza piedosa, isto e, uma tristeza em harmonia com a vontade de Deus, uma tristeza que, portanto, não é meramente de caráter ético, mas também de caráter religioso, pertence a Deus, sua vontade e sua palavra e ao pecado como pecado até mesmo independente de suas consequências. Ela é requerida por Deus, mas também é dada por Deus como um dom” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 141). “Se Deus nos esmaga com tristeza piedosa, isso é um ato de pura graça. É o seu ato de misericórdia para nos levar à fé e à conversão” (R.C. Sproul, O que é arrependimento? São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2014, p. 43).

[6] “O arrependimento acontece no primeiro dia de nossa vida cristã, e todos os dias após isso” (Stuart Olyott, Jonas – O Missionário bem-sucedido que fracassou,  São José dos Campos, SP.: Fiel, 2012, p. 45). “O espírito quebrantado e o coração contrito são as marcas permanentes da alma crente” (John Murray, Redenção: Consumada e Aplicada, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1993, p. 130). “A vida cristã é na sua totalidade uma vida de arrependimento” (Anthony A. Hoekema, Salvos Pela Graça, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997, p. 137).

[7] Veja-se: Allan M. Harman, Comentário do Antigo Testamento ‒ Salmos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, (Sl 32), p. 155.

[8] “A ilusão mais perigosa de todas é o farisaísmo. Essa é a verdadeira barreira a Jesus Cristo. Toda a rejeição da graça de Deus toma essa forma. Aqueles que recusam o perdão gratuito de Deus por meio de Cristo fazem assim porque acham que não precisam desse perdão. Eles não admitem que são pecadores. Eles negam que estejam desesperadamente perdidos” (Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 79).

[9] Veja-se: P. Andrew Sandlin, Deus decide o que é normal, Brasília, DF.: Monergismo, 2021 (Edição do Kindle), p. 9. Posição 144-1880.

[10] Veja o penetrante comentário de Sproul (1939-2017) a respeito desta visão mundana: R.C. Sproul, Estudos bíblicos expositivos em Romanos, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, (Rm 12.1-2), p. 370).

[11] Abraham Kuyper,  Sabedoria & Prodígios: Graça comum na ciência e na arte,  Brasília, DF.: Monergismo, 2018, p. 54.

[12]Thomas Watson, A Ceia do Senhor, Recife, Pe.: Os Puritanos, 2015, p. 48.

[13]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1,  (Jo 4.9), p. 157.

[14] “Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado” (Rm 3.19-20).

[15]João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 2.2), p. 52.