Um blog do Ministério Fiel
A fé é forjada na crise
A Bíblia é um livro fervoroso. É um livro sobre a realidade. E a realidade, como nós a conhecemos muito bem, é frequentemente brutal e sanguinária. A Bíblia não enfeita esse fato de forma nenhuma, mas descreve a realidade com uma franqueza perturbadora. Grande parte das Escrituras foi escrita durante tempos brutais e sanguinários por autores em apuros, angustiados, cansados e até deprimidos. E no auge da história bíblica, no coração da mensagem bíblica, está o Filho de Deus morrendo uma morte sanguenta em uma cruz romana brutal.
Então, quando nós abrimos nossas Bíblias, raramente iremos achar uma leitura leve.
Até mesmo no livro de Salmos, essa coleção de poesias espirituais inspiradas, que têm trazido conforto imensurável a um número incalculável de santos através dos séculos, nós frequentemente encaramos temas angustiantes. Em inúmeros salmos, nós lemos os autores lutando com o que significa confiar no Deus que é o tesouro deles enquanto testemunham uma realidade brutal e sanguinária; uma realidade que desafia o entendimento deles ou suas expectativas das promessas e propósitos de Deus.
Esses salmos se encaixam em uma categoria que nós chamamos de salmos de lamento. Em certos salmos de lamento, como o Salmo 10, nós lemos sobre a crise de fé, capturada em verso, de um autor inspirado.
Podemos Dizer isso a Deus?
Nós vemos isso imediatamente no verso de abertura:
Por que, SENHOR, te conservas longe?
E te escondes nas horas de tribulação? (Salmos 10.1)
Isso é algo extraordinário de se dizer a Deus. Poderia um cristão hedonista realmente orar dessa forma?
Por que eu faria essa pergunta desse jeito? Nós do Desiring God acreditamos que a Bíblia ensina uma abordagem na vida que chamamos de hedonismo cristão. Nós vemos na Escritura que um cristão não é alguém que apenas consente intelectualmente às verdades cristãs fundamentais proposicionais. Um cristão ama a Deus com todo seu coração (Mateus 22.37), valoriza Deus como seu maior tesouro (Mateus 13.44-46; Filipenses 3.7-8; Hebreus 11.24-26) e busca a Deus como a fonte do seu maior e mais duradouro prazer (Salmos 16.11). O Deus trino da Bíblia deve ser a grande alegria do cristão (Salmos 43.4). Resumindo em uma frase, cristãos hedonistas acreditam que a Escritura ensina que Deus é mais glorificado em nós quando estamos mais satisfeitos nele.
Nós podemos certamente encontrar muitas orações hedonistas cristãs nos Salmos, como o Salmo 73.25-26,
Quem mais tenho eu no céu?
Não há outro em quem eu me compraza na terra.
Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam,
Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre.
Mas e o Salmo 10, onde o autor lamenta a sua agonizante perplexidade sobre atos injustos, gananciosos e violentos contra pessoas inocentes e indefesas? Ele não se sente apenas perturbado pelos atos perversos que ele testemunhou; ele se sente perturbado porque os maus estão prosperando a partir de seu mal. E Deus, o justo juiz, parece estar deixando isso acontecer. Então, na sinceridade tipicamente bíblica, ele pergunta a Deus: “Por que te escondes em tempos de aflição?”. Se uma pessoa realmente ama, confia e valoriza Deus acima de todas as coisas, ela pode orar assim? Pode alguém que se alegra em Deus alguma vez lamentar a aparente distância de Deus e sua indiferença?
Em resumo, sim. Na verdade, cristãos hedonistas oram a Deus dessa forma em determinados momentos porque ele é nossa “grande alegria”, porque o valorizamos, porque o amamos. E porque, às vezes, os caminhos e tempo de Deus são agonizantemente difíceis de entender. Nós vemos essa dinâmica de tristeza e alegria nas realidades brutais do Salmo 10.
Por que Deus pareceu distante?
Primeiro, nós precisamos entender o que estava perturbando esse salmista. Ele derrama sua angústia:
- “Com arrogância, os ímpios perseguem o pobre e se gloriam da cobiça de sua alma” (Salmo 10.2-3).
- Ele “maldiz o Senhor e blasfema contra ele” (até nega a existência de Deus) (Salmo 10.3-4).
- “A sua boca está cheia de maldição, enganos e opressão” (Salmo 10.7).
- “Trucida os inocentes nos lugares ocultos” (Salmo 10.8).
- “Está de emboscada para enlaçar o pobre: apanha-o e o arrasta com a sua rede” (Salmo 10.9).
Os pobres estão sendo explorados e até abatidos por alguém em uma posição de poder (talvez até mais de uma pessoa) por uma questão de benefício financeiro. As vítimas estão em uma posição de desamparo ou sem defesa e por isso “em seu poder [da pessoa má], lhe caem os necessitados” (Salmo 10.10). Essas seriam ações inexprimíveis, se o silêncio não fosse apenas comportar a injustiça disso tudo. Portanto, como Jeremias, o salmista não pode se calar (Jeremias 4.19).
Como a fé se parece na crise
O salmista se esforça para pôr em palavras a maldade que ele vê. Nós podemos sentir a sua justa ira. Tal opressão horrível e injustiça deveriam deixá-lo (e também a nós) com raiva.
Porém, apesar do salmista endereçar a Deus a sua urgente seriedade, eu não acredito que a sua ira seja direcionada a Deus. Ela é direcionada aos ímpios que estão causando tal destruição. O salmista se volta para Deus com a sua indignação ardente para com os perpetradores do mal e a sua compaixão para com as vítimas porque sua esperança está em Deus para trazer justiça e libertação. É por esse motivo que ele ora.
Nós também testemunhamos, e às vezes somos vítimas, de tais injustiças malignas. Em nosso tempo, bebês não nascidos, inocentes e indefesos são legalmente assassinados, e crianças tão vulneráveis quanto eles, ou adultos desamparados, são traficados para sexo, algo que financia o lucro daqueles que perpetuam as injustiças. Diante de tais coisas, nós não podemos nos calar. Primeiramente e acima de tudo, diante de Deus. Por compaixão pelos aflitos e justa ira para com os perpetradores, nós derramamos nossos corações em lamento a Deus, em quem esperamos (Salmo 43.5) e a partir de quem recebemos esperança (Salmo 62.5).
Aprendendo a clamar na crise
Ainda assim, aquelas linhas iniciais do salmo soam como Deus sendo o recebedor de pelo menos uma parte da ira do salmista:
Por que, SENHOR, te conservas longe?
E te escondes nas horas de tribulação? (Salmo 10.1)
Se isso não é ira, desilusão ou frustração, o que é isso? É colocar em palavras a perplexidade dolorosa de uma crise de fé.
Agora, uma crise de fé não deve ser confundida com um abandono da fé. Quase todos os santos experimentam diferentes tipos de crises de fé, e tipicamente devemos suportar as crises de fé para que a fé cresça e se fortaleça – falaremos mais sobre isso. Mas a evidência mais clara de que o salmista não está abandonando a Deus é a presença desse salmo – o salmista está orando! E em sua oração, ele está fazendo com Deus aquilo que todos nós fazemos com quem amamos e estimamos profundamente, com quem age (ou parece não agir) de formas que não entendemos: ele está honestamente expressando sua confusão e dor.
A alma do salmista está perturbada porque o seu conhecimento do caráter de Deus informado pela Bíblia não parece corresponder à realidade que ele observa. Ele acredita que “Deus é um justo juiz” (Salmo 7.11) que “faz justiça” ao desamparado e vulnerável (Deuteronômio 10.18). Ele vê o opressor ímpio do desamparado prosperar “os seus caminhos em todo tempo” (Salmo 10.5). Por que Deus não para imediatamente essa injustiça está além de seu entendimento. Para ele, é um momento de crise, e ele diz isso a Deus.
Eu acho que está errado, no entanto, assumir que, porque o salmista pergunta o motivo de Deus parecer distante ou escondido, ele está blasfemando contra Deus ou repreendendo a Deus por negligenciar suas responsabilidades. O que ele faz é descrever a experiência dele da realidade – a forma como a situação se apresenta a ele através de seus sentidos finitos. E a razão pela qual ele ora dessa forma é precisamente porque ele se importa profundamente com Deus, porque ele ama e confia em Deus.
Essa é uma resposta cristã fiel para uma crise de fé. Quando nós estamos dolorosamente perplexos pela aparente descontinuidade entre o que sabemos sobre Deus a partir da Escritura e o que observamos no mundo; quando o mistério dos propósitos providenciais de Deus encontra a finitude do nosso entendimento e isso não faz sentido para nós, Deus deseja que clamemos por ele. Ele deseja que clamemos precisamente porque nós o amamos e confiamos nele, até mesmo quando nossa experiência desafia o que acreditamos.
Forjando cristãos hedonistas
O fato de a Bíblia falar com tanta honestidade sobre a realidade é parte de sua qualidade de auto-autenticação; honestidade nua e crua é um sinal de sinceridade e verdade. E o fato de que a Bíblia apresenta a crise de fé do salmista sobre o problema do mal é parte da razão por que os Salmos têm confortado tantas pessoas por tanto tempo; nós também experimentamos tais crises.
Mais cedo ou mais tarde, todo cristão experimenta uma crise de fé – alguns de nós experimentamos numerosas crises. Mas uma crise de fé não significa perda de fé. Na verdade e com frequência, é através de crises de fé que nós aprendemos o que a fé realmente é.
A Escritura está cheia de relatos de santos suportando muitos tipos de crises de fé, onde o Deus que governa a realidade, em toda a sua brutalidade sangrenta, não atende ao entendimento e expectativas dos santos, levando esses santos a sofrer profundamente. O “hall da fé” de Hebreus 11 é revestido com tais santos, que através de crises aprenderam o que realmente significa “[andar] por fé e não pelo que vemos” (2 Coríntios 5.7).
Eu mencionei anteriormente que cristãos hedonistas amam orar o Salmo 73.25-26:
Quem mais tenho eu no céu?
Não há outro em quem eu me compraza na terra.
Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam,
Deus é a fortaleza do meu coração
e a minha herança para sempre.
O que eu não mencionei é que o Salmo 73 é outro relato de crise de fé e a oração dele é parte do fruto dessa crise. Então, quando a sua própria crise chegar, não presuma que a sua fé, amor e alegria se foram, mas que Deus deseja fazê-los crescer na fornalha da aflição. Porque a forja de um cristão hedonista frequentemente ocorre no fogo de uma crise de fé.