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Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste (Parte 2)
O Deus de toda graça, misericórdia e justiça: Harmoniosas perfeições
As Escrituras nos ensinam em forma de fatos e proposições que o nosso Deus é “O Deus de toda graça” (1Pe 5.10). Portanto, bem-aventurados são todos aqueles que vivem como súditos do Reino da graça de Deus.
A graça é uma das gloriosas perfeições da Santíssima Trindade. As Escrituras dizem que a graça é uma:
Perfeição do Pai (Cl 1.2).
Perfeição do Filho (Rm 16.20; Fm 25; Ap 22.21).[1]
Perfeição do Espírito Santo (Hb 10.29).
A graça origina-se em Deus mesmo, tornando-se a fonte de todas as suas bênçãos. Deus é gracioso em si mesmo, independentemente de sua relação conosco. No entanto, a graça só se estabelece em situação relacional.
Por isso, é na relação afetuosa com seu povo que Deus manifesta aquilo que é. Deus se expressa exatamente como é em sua natureza, correspondendo ao seu propósito revelacional nessa dimensão temporal.[2] A graça faz parte da essência de Deus. Graça é o nome bíblico para a bondade ativa de Deus em relação à humanidade.
Baudraz está correto, quando diz: “A graça divina não se separa de Deus, mas é uma relação pessoal que Deus estabelece entre si mesmo e os homens: Ele os encara com favor e com bondade”.[3] (Vejam-se: Ex 34.6; Nm 14.18-19; 2Sm 7.15; Sl 31.16; 33.22; 42.8).[4]
Nossa escala volátil de valores
Uma forma, por vezes natural, de pensar sobre a misericórdia é colocá-la em oposição à justiça. No entanto, este conceito está totalmente distante do ensino bíblico.
Este tipo de raciocínio é-nos naturalmente estranho porque temos, costumeiramente, nossa hierarquia de valores com as suas prioridades próprias que tendem a ser voláteis conforme determinadas circunstâncias.
Assim sendo, ao mesmo tempo em que sustentamos com razão a necessidade de justiça, em outras circunstâncias, quando, por exemplo, nosso filho ou amigo esteja envolvido, é possível, que com a mesma sinceridade anterior sustentemos a necessidade de sermos misericordiosos e acusarmos uma postura diferente de “legalista”.
Somos pecadores e finitos. A finitude não é pecado, no entanto, revela a nossa limitação como criaturas. Esta limitação agravada pelo nosso pecado se expressa em nossas contradições e incoerências. No entanto, somente Deus é perfeito e, por isso, o seu agir se harmoniza de forma perfeita com todos os seus atributos.
A nossa situação deplorável
A graça nos fala de um favor imerecido. A misericórdia realça a miséria daqueles que são olhados com favor da parte de Deus. Portanto, ambos os conceitos se fundem e se completam.
A Palavra de Deus demonstra que todos nós, sem exceção, nos encontramos em um estado deprimente, totalmente dominados pelo pecado, distantes de Deus.[5] Somos carentes da sua misericórdia. Deus nos trata com misericórdia, não debitando em nossa conta a nossa dívida, a qual jamais poderíamos pagar, antes, a inflacionaríamos ainda mais.[6]
No entanto, o pecado nos aprisiona nos dando uma falsa sensação de santificação. Ele nos anestesia produzindo em nós um aparente bem-estar. O fato é que, dominados pelo pecado, não conseguimos enxergar a nossa miséria.
Calvino (1509-1564) escreve com propriedade: “Imaginamos que Deus nos é favorável porque nos tem considerado dignos de seu respeito. A Escritura, porém, por toda parte enaltece sua misericórdia, que pura e simplesmente abole todo e qualquer mérito”.[7]
Necessitamos buscar a Deus diante do trono da sua misericórdia para que possamos ter a bênção da bem-aventurança que começa por nossa reconciliação com ele. Somente assim encontraremos o antídoto para as nossas misérias espirituais.
Misericórdia x merecimento
Misericórdia merecida, portanto, é uma contradição de termos.[8] Da mesma forma, graça obrigatória seria uma negação da graça.
Misericórdia sempre pressupõe a indignidade daquele que a recebe.
Enquanto a graça ressalta a grandeza de Deus em relação aos homens; a misericórdia retrata como o Deus majestoso vem ao nosso encontro, em nossa miséria espiritual, nos perdoando os pecados restaurando-nos à comunhão com Ele por meio de seu Filho, Jesus Cristo.
Contudo, como as palavras são geralmente usadas de forma intercambiável, em nosso texto usaremos os termos graça e misericórdia como sinônimos.
Barth (1886-1968) capta bem o sentido de nossa pecaminosidade e da necessidade do perdão:
Ainda que vivendo como cristãos, vamos aumentando sem cessar nossa dívida e agravando a embrulhada da nossa situação. A dívida cresce de dia em dia. E imagino que à medida que envelhecemos, mais conta nos damos de que não temos possibilidade alguma de cancelar essa dívida. As coisas vão de mal a pior.[9]
O nosso único recurso, portanto, é recorrer à misericórdia gratuita de Deus.[10] Somos carentes da sua misericórdia. Necessitamos buscar a Deus diante do trono da sua misericórdia para que possamos ter a bênção da bem-aventurança que começa por nossa reconciliação com ele.[11] Somente assim encontraremos o antídoto para as nossas misérias espirituais.
Packer (1926-2020) estabelece uma distinção didática:
Há uma diferença entre os termos amor, graça e misericórdia de Deus. O amor significa o seu desejo visível de abençoar aqueles a quem vê, como pessoas que não têm nenhum direito de exigir isto dele; a graça significa o seu desejo visível de abençoar aqueles a quem vê, como pessoas que merecem sua rejeição; a misericórdia significa o seu desejo visível de abençoar aqueles cujo estado ele vê como miserável. O amor expressa a liberdade autodeterminadora de Deus; a graça, o seu favor autogerado e a misericórdia, a sua compaixão.[12]
Por meio do Evangelho Deus revela a riqueza de sua misericórdia em determinar salvar os pecadores, atraindo-os para si.
Evangelho da graça
Quando Paulo se despede dos presbíteros de Éfeso, recapitula aspectos do seu ministério. Fala de seu chamado e os incumbe da responsabilidade de pastorear a Igreja de Deus. Demonstra então, que a sua pregação, durante os três anos nos quais passou com eles, consistiu no anúncio do Evangelho da graça:
24Porém em nada considero a vida preciosa para mim mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério que recebi do Senhor Jesus para testemunhar o evangelho da graça de Deus. (…) 28 Atendei por vós e por todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastoreardes a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue. (…) 32 Agora, pois, encomendo-vos ao Senhor e à palavra da sua graça, que tem poder para vos edificar e dar herança entre todos os que são santificados. (At 20.24,28,32). (Destaques meus).
Paulo apresentou de forma consistente e incansável, a mensagem da graça. Acontece que a graça é um bem que nos incomoda. A salvação é uma declaração de nosso pecado e total incapacidade de resolver o nosso crucial problema. A graça nos alegra e nos humilha. Creio que todos nós já tivemos sentimentos contrastantes referentes à mesma questão.
Barth (1886-1968) é quem melhor retrata este paradoxo:
Nós não amamos viver pela graça; há sempre em nós alguma coisa que se insurge violentamente contra a graça. Nós não amamos receber a graça, nós amaríamos, no máximo, atribuí-la a nós mesmos. A vida humana é feita desse vai-e-vem entre o orgulho e o desespero, que apenas a fé pode eliminar. Se contar consigo mesmo, o homem não pode chegar a ela, uma vez que não podemos, nós mesmos, nos libertar do orgulho e da angústia. Se formos libertos é graças a uma ação que não depende de nós.[13]
O anúncio da graça fala de nosso desespero, de nossa incapacidade e, ao mesmo tempo, do amor gracioso e redentivo de Deus. Sem a consciência do pecado não há sentido para a graça.[14]
Graça é o favor imerecido, manifestado livre, contínua e soberanamente por Deus aos pecadores que se encontravam num estado de depravação e miséria espirituais, merecendo o justo castigo pelos seus pecados (Rm 4.4/11.6; Ef 2.8-9).[15]
O Evangelho é da graça porque nele encontramos o favor gratuito de Deus para com o homem – para com cada um de nós -, que merecia a condenação eterna. O trágico dessa realidade, é que a condenação à qual todos nós estaríamos fadados, é obra ‒ trabalhamos para isso (Rm 6.23). A salvação, é graça.
O Evangelho é a boa nova que consiste na declaração de Deus, de que há perdão para todos os nossos pecados em Cristo Jesus. O Senhor nos tira da condição de “réus”, e nos transporta “para o reino do Filho do seu amor” (Cl 1.13), tornando-nos seus filhos e herdeiros (Rm 8.12-17/Jo 1.12; Gl 3.26), sendo este privilégio uma gloriosa concessão da graça.
Jesus Cristo é a personificação da graça. Ele encarna a graça e a verdade. Nele encontramos o fundamento do que é verdadeiro: Ele é a verdade eterna que valida o que é, desmistificando os nossos padrões equivocados e, por isso mesmo, transitórios de verdade e, também, cumpre as promessas de Deus em graça (Jo 1.17; 14.6).[16]
Jesus Cristo, a graça encarnada
O Evangelho é a graça verbalizada. Jesus Cristo é a causa, o conteúdo e a manifestação da graça de Deus. Falar de Cristo é falar da graça. É por meio do Evangelho que Deus transmite a sua Palavra de graça (At 14.3; 20.24). “O Evangelho é o divulgador da graça”, afirma Pink (1886-1952).[17] A graça nos é ensinada pelo Evangelho (Cl 1.4-6). Por isso, pregar o Evangelho é um “favor” de Deus (Ef 3.8).
Os profetas do Antigo Testamento falavam de uma salvação futura que ocorreria pela graça (1Pe 1.10).[18] Jesus Cristo, a graça de Deus encarnada, veio na plenitude do tempo (Gl 4.4),[19] conforme sua determinação e graça (2Tm 1.9[20]/Jo 1.16; 1Co 1.4; Ef 1.6,7; 2Tm 2.1).
A autoentrega de Jesus pelos pecados dos pecadores eleitos foi um dom da graça que fora profetizada (1Pe 1.10-11/Rm 5.15; Hb 2.9).[21] A pobreza assumida por Cristo revela a riqueza da sua graça (2Co 8.9).[22] Deste modo, ele, somente ele nos dá acesso à graça (Hb 4.14-16), convidando-nos: “Vinde a mim” (Mt 11.28).
Jesus Cristo se encarnou a fim de que Deus pudesse ser justo, e ao mesmo tempo, o justificador daqueles que confiam em Jesus para salvação (Rm 3.26).[23] Ele se tornou para os que creem, em justiça, santificação e redenção (1Co 1.30).[24]
Calvino, considerando o pecado humano e a nossa total inimizade para com Deus, resume a ação reconciliadora de Deus por meio de Jesus Cristo:
Visto que todo homem é indigno de se dirigir a Deus e de se apresentar diante de Sua face, a fim de nos livrar da vergonha que sentimos ou que deveríamos sentir, o Pai celeste nos deu Seu Filho, o nosso Senhor Jesus Cristo, para ser o nosso Mediador e Advogado para com ele, para que, por meio dele, pudéssemos aproximar-nos livremente dele (1Tm 2.5; 1Jo 2.1; Hb 8.6 e 9.15). Com isso nos certificamos de que, tendo tal Intercessor, o qual não pode ser recusado pelo Pai, também nada nos será negado de tudo o que pedirmos em Seu nome (Hb 4.14-16). Seguros também de que o trono de Deus não é somente trono de majestade, mas também de Sua graça, podendo nós comparecer perante ele com toda a confiança e ousadia, em nome do Mediador e Intercessor, para rogar misericórdia e encontrar graça e ajuda, em toda necessidade que tivermos.[25]
[1]Em 2Ts 1.2, a palavra “Graça” é associada a Deus e a Jesus Cristo.
[2] “Deus se revela como ele verdadeiramente é. Seus atributos revelados verdadeiramente revelam sua natureza” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 98).
[3] F. Baudraz, Graça: In: J.J. Von Allmen, dir. Vocabulário Bíblico, 2. ed. São Paulo: ASTE., 1972, p. 157-158.
[4]Em todos esses textos, a palavra hebraica usada é Hesed.
[5]“Todos, sem exceção, são carentes de sua misericórdia” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.6), p. 49).
[6]Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.1), p. 39.
[7]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 3.16), p. 131.
[8]Veja-se: A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: FIEL, 1977, p. 23.
[9] K. Barth, La Oración, Buenos Aires: La Aurora, 1968, p. 76.
[10]Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 6.4), p. 128-129.
[11] “Somos reconciliados com Deus por intermédio da graça de Cristo, seguindo uma única via: recorrendo a sua morte e crendo que, aquele que foi cravado na cruz, é a única vítima sacrificial por meio da qual toda nossa culpa é removida” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 1.29), p. 70).
[12]J.I. Packer, A Redescoberta da santidade, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 62.
[13]Karl Barth, Esboço de uma Dogmática, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, p. 23.
[14] “Onde o pecado não é encarado como pecado, a graça não pode ser graça. Que necessidade de expiação poderiam ter homens e mulheres quando lhes é dito que o seu problema mais profundo é algo menos do que aquilo que a Bíblia ensina explicitamente? O ensino fraco sobre o pecado leva à graça barata e não conduz ao evangelho” (Albert Mohler Jr., O Desaparecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 32). “O desaparecimento do pecado do nosso vocabulário moral é uma das marcas da Idade Moderna – e da moralidade pós-moderna. Nestes dias, a maioria das pessoas acredita ser imperfeita, com espaços para melhorias – mas não pensam em si mesmas como pecadores necessitados de perdão e de redenção” (Albert Mohler Jr., O Desaparecimento de Deus, p. 31).
[15]“Ora, ao que trabalha, o salário não é considerado como favor, e sim como dívida“ (Rm 4.4). “E, se é pela graça, já não é pelas obras; do contrário, a graça já não é graça” (Rm 11.6). “Porque pela graça sois salvos, mediante a fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus; não de obras, para que ninguém se glorie” (Ef 2.8,9).
[16]“Porque a lei foi dada por intermédio de Moisés; a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo” (Jo 1.17). “Respondeu-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6).
[17] A.W. Pink, Os Atributos de Deus, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1985, p. 74.
[18] “Foi a respeito desta salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os quais profetizaram acerca da graça a vós outros destinada” (1Pe 1.10).
[19]“Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei” (Gl 4.4).
[20]“Que nos salvou e nos chamou com santa vocação; não segundo as nossas obras, mas conforme a sua própria determinação e graça que nos foi dada em Cristo Jesus, antes dos tempos eternos” (2Tm 1.9).
[21]“10Foi a respeito desta salvação que os profetas indagaram e inquiriram, os quais profetizaram acerca da graça a vós outros destinada, 11 investigando, atentamente, qual a ocasião ou quais as circunstâncias oportunas, indicadas pelo Espírito de Cristo, que neles estava, ao dar de antemão testemunho sobre os sofrimentos referentes a Cristo e sobre as glórias que os seguiriam” (1Pe 1.10-11). “Todavia, não é assim o dom gratuito como a ofensa; porque, se, pela ofensa de um só, morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos” (Rm 5.15). “Vemos, todavia, aquele que, por um pouco, tendo sido feito menor que os anjos, Jesus, por causa do sofrimento da morte, foi coroado de glória e de honra, para que, pela graça de Deus, provasse a morte por todo homem” (Hb 2.9).
[22]“Pois conheceis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vós, para que, pela sua pobreza, vos tornásseis ricos” (2Co 8.9).
[23]“Tendo em vista a manifestação da sua justiça no tempo presente, para ele mesmo ser justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Rm 3.26).
[24]“Mas vós sois dele, em Cristo Jesus, o qual se nos tornou, da parte de Deus, sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção” (1Co 1.30).
[25]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 101-102.