Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste (Parte 6)

A importância de um sentimento de culpa real

Este post faz parte da série Salmo 32.

MacArthur é cirúrgico:

Culpa não conduz à dignidade e nem à autoestima. A sociedade encoraja o pecado, mas não tolera a culpa produzida por ele.[1]

A verdadeira culpa tem somente uma causa: o pecado. Até que o pecado seja tratado, a consciência lutará para acusar. E o pecado – e não a baixa estima – é o que o Evangelho veio derrotar.[2]

As pessoas querem pecar, mas sem culpa….[3]

O Cristianismo não é uma religião de doença e enfermidade com ênfase mórbida e patológica no pecado. Mesmo sabendo que o Cristianismo não é triste nem melancólico, devemos pontuar que as Escrituras evidenciam de forma franca os nossos pecados para que, buscando o perdão, nos alegremos no Senhor da Glória, rico em misericórdia[4] (Sl 16.11; Gl 5.22; Fp 3.1; 4.4; 1Ts 5.16). A alegria do Espírito é resultado de um coração guiado por Ele.

O Cristianismo trata essencialmente com doentes e, sincera e misericordiosamente apresenta com clareza, sinceridade e compaixão o seu diagnóstico terminal se permanecer distante de Deus. Porém, ao mesmo tempo, apresenta a cura definitiva na expiação de Cristo Jesus.

A cura em Cristo tem sido intensamente demonstrada ao longo da história. A sua verificação está diante de todos por meio da vida da igreja constituída de pecadores enfermos em seus pecados, mas, que foram curados, restabelecidos em Cristo e caminham, por graça, em direção a Deus.

Portanto, não podemos falar de perdão sem considerarmos o pecado. Aliás, sem consciência de pecado não podemos sequer ter uma dimensão clara do que seja o perdão bíblico.

Mohler Jr., coloca bem a questão:

Onde o pecado não é encarado como pecado, a graça não pode ser graça. Que necessidade de expiação poderiam ter homens e mulheres quando lhes é dito que o seu problema mais profundo é algo menos do que aquilo que a Bíblia ensina explicitamente? O ensino fraco sobre o pecado leva à graça barata e não conduz ao evangelho.[5]

Jesus Cristo veio salvar os enfermos, não os supostamente sãos: 31Respondeu-lhes Jesus: Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes. 32Não vim chamar justos, e sim pecadores, ao arrependimento” (Lc 5.31-32).

Considerar-nos sãos quando na realidade estamos em um estado terminal, é algo terrivelmente nocivo a todos nós. O Cristianismo não provoca a doença, nem ensina o “desprezo pelo corpo”, tendo “rancor dos enfermos”, como propalava Nietzsche (1844-1900),[6] antes a diagnostica e apresenta o remédio.

Stott é preciso: “Uma consciência culpada será uma grande bênção somente se nos forçar a voltar para casa”.[7]

Por isso, o sentimento de culpa pode ser uma das bênçãos de Deus para que não nos entreguemos totalmente ao pecado. “A culpa que sentimos como pecadores é legítima, natural e até mesmo apropriada”, conclui MacArthur.[8]

E quanto ao sentimento de culpa resultante de uma interpretação errada dos fatos e de nossa responsabilidade?

Sem dúvida, essa sensação é terrível porque nos culpamos por algo que, na realidade não praticamos, portanto, não somos culpados. Isso, sem dúvida, nos neutraliza colocando um peso imenso sobre nossos ombros. À semelhança de Atlas, sentimo-nos condenados a carregar os céus sobre os nossos ombros, nos destruindo em nossa caminhada produtiva de obediência e louvor a Deus.

Para o sentimento de culpa decorrente de uma interpretação equivocada da realidade, da mesma forma, devemos suplicar a Deus que nos liberte desse sentimento e que nos dê uma compreensão adequada da realidade, amparados na obra de Cristo que nos perdoa de todos os nossos pecados, inclusive deste que, por vezes é decorrente de um julgamento errado a respeito de nossos poderes e por isso, de nossa responsabilidade.

Portanto, esse sentimento pode se constituir no caminho para, por graça, compreendermos que a solução para o nosso problema não está em um simples autoexame, meditações ou técnicas respiratórias, mas no arrependimento sincero e confissão a Deus de nossa culpa.

Algo fundamental para a solução de um problema, é ter uma definição clara e correta sobre ele. Definição é delimitação. A definição, sendo apropriada, nos permite ver o objeto como ele de fato é.[9] A conceituação de Espinosa (1632-1677) nos é orientadora: “A verdadeira definição de cada coisa não envolve nem exprime senão a natureza da coisa definida”.[10]

Deus por meio de sua Palavra nos mostra com objetividade o que somos. Deus nos leva a sério bem como o problema do pecado, da culpa e da condenação humana. Ele não nos é indiferente a despeito de nosso sofrimento gerado como consequência de nossa desobediência.

Poythress está correto ao dizer que o “problema fundamental é o problema do pecado e da culpa (…) Somente quando começamos a ver a magnitude do problema é que desistimos de seguir nossos próprios caminhos, fazer nossas próprias regras e seguir nossos próprios desejos”.[11]

Por isso nós não tratamos primariamente da culpa, mas do que gerou a culpa. O sentimento de culpa sendo verdadeiro, no sentido de que de fato somos culpados, é um sintoma importante que indica a necessidade de sermos tratados espiritual e moralmente.

Além disso, a culpa é de certa forma uma lembrança espiritual e nostálgica daquilo que fomos. Há uma sensibilidade inerente a nós que aponta para o fato de termos sido criados à imagem de Deus mas, que com a queda, essa imagem desfigurada e caricata, tenta com insistência, destruir esses resquícios do nosso Criador que estão impregnados em nossa memória ontológica.[12]

Com a nossa regeneração espiritual, nossa imagem é restaurada e, com ela recuperamos em Cristo aspectos fundamentais do homem criado. Em Cristo recuperamos as dores benditas de uma consciência iluminada pelo Espírito, mas, que ainda lida com o nosso pecado.

Deus não nos trata com paliativos. Por isso, Ele não simplesmente nos “des-culpa” de forma banal e corriqueira. Ele nos perdoa. No perdão de Deus e sua internalização em nossos corações encontramos a solução definitiva para nossa culpa que foi levada por Jesus Cristo sobre a cruz, nos perdoando de todos os pecados. Tudo foi feito pela graça; nada ficou para trás; Ele nos perdoou completa e totalmente.

Portanto, o caminho para a libertação da culpa real, é o arrependimento sincero e a confissão de nossos pecados, reconhecendo a graça de Deus em nossa vida.


[1]John F. MacArthur, Jr., Sociedade Sem Pecado. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 17.

[2]John F. MacArthur, O aconselhamento e a pecaminosidade humana: In: John F. MacArthur, et. al., eds. Introdução ao aconselhamento bíblico: um guia básico dos princípios e prática do aconselhamento, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 130.

[3]John F. MacArthur, Jr., Sociedade Sem Pecado. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 25.

[4] “A verdadeira alegria da vida cristã também depende de um correto entendimento da doutrina”  (D. Martyn Lloyd-Jones, A Vida de Paz,  São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2008, p. 26). “Uma das glórias da mensagem cristã é que ela oferece alegria e dá alegria real. O indivíduo tristonho, desanimado e de cara-amarrada não é bom representante do verdadeiro cristianismo” (David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004,  p. 62).

[5]Albert Mohler Jr., O Desaparecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 32.

[6] Veja-se: F. Nietzsche, O Anticristo, 4. ed. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, © 1985, p. 99-101.

[7]John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Miami: Editora Vida, 1991, p. 88.

[8]John F. MacArthur, O aconselhamento e a pecaminosidade humana: In: John F. MacArthur, et. al., eds. Introdução ao aconselhamento bíblico: um guia básico dos princípios e prática do aconselhamento, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 138. Do mesmo modo, escreveu Stott: “Se os seres humanos pecaram (o que aconteceu), e se são responsáveis por seus pecados (o que são), então são culpados perante Deus. A culpa é dedução lógica das premissas do pecado e responsabilidade. Erramos por nossa própria falta, e, portanto, devemos arcar com a justa penalidade de nosso erro” (John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Miami: Editora Vida, 1991, p. 86).

[9]“Uma definição não arbitrária deve afirmar o conjunto de características singulares compartilhado por todas as coisas do tipo que está sendo definido” (Roy A. Clouser, O mito da neutralidade religiosa: Um ensaio sobre a crença religiosa e seu papel no pensamento teórico, Brasília, DF.: Editora Monergismo, 2020. Edição do Kindle. (Posição 287 de 11450).

[10]Baruch Espinosa, Ética, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 17), 1973, I.8. Escólio 2, p. 91.

[11]Vern S. Poythress, O Senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, em toda a vida e de todo o nosso coração, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 16.

[12]“Ele é a criatura que, inicialmente, foi criada à imagem e semelhança de Deus, e essa origem divina e essa marca divina nenhum erro pode destruir. Contudo, ele perdeu, por causa do pecado, os gloriosos atributos de conhecimento, justiça e santidade que estavam contidos na imagem de Deus. Todavia, esses atributos ainda estão presentes em ‘pequenas reservas’ remanescentes da sua criação; essas reservas são suficientes não somente para torná-lo culpado, mas também para dar testemunho de sua primeira grandeza e lembrá-lo continuamente de seu chamado divino e de seu destino celestial” (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 17-18). “É verdade que ela não foi totalmente extinta; mas, infelizmente, quão ínfima é a porção dela que ainda permanece em meio à miserável subversão e ruínas da queda” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.5), p. 169).