Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste (Parte 7)

A importância do sentimento de culpa para o real arrependimento

Este post faz parte da série Salmo 32.

O sentimento de culpa, nestes casos, é graça! É o Espírito indicando de forma convincente que algo está errado; que transgredimos a Palavra de Deus.

Por exemplo, a sensação indesejada de dor, como quando tocamos distraidamente em um ferro quente, propicia um alerta para evitar um mal maior.[1] O painel do carro[2] que com tanta frequência em nosso país acende indicando problemas na “injeção”, é indesejado, porém, passa a ser um sinal importantíssimo até então imperceptível, de que algo está errado. Em geral, para nossa alegria (não é a “injeção”) e tristeza, é o combustível do posto “confiável” com “bandeira”, que não atende às especificações da mistura, já por si só, bastante generosa… Portanto, a luz vermelha não é o problema. Ela apenas indica que algo está errado.

Mohler escreveu sobre essa questão:

O medo do pecado e de suas consequências leva todos à necessidade da graça de Deus por meio do evangelho de Jesus Cristo. Este é o grande paradoxo da vida cristã. O mundo deseja que fujamos de nossa culpa. A culpa é vista como um inimigo que deve ser morto. Os livros de autoajuda enchem as prateleiras das livrarias porque as pessoas tentam implacavelmente esmagar o sentimento interior de culpa. Para o cristão, porém, a culpa é um presente. Esse sentimento de culpa insaciável e incansável nos leva à única esperança que temos. Os pecadores devem abraçar a culpa infinita em que vivem se quiserem encontrar a graça infinita de Deus. Quando reconhecemos nossa culpa, então, e apenas então, podemos chegar àquela fonte carmesim de esperança, o sangue de Jesus que nos purifica.[3]

Portanto, o sentimento de culpa não é o fim, mas, por vezes, é o meio utilizado por Deus para restringir o mal e nos conduzir, no momento próprio, de volta a Ele pela Palavra.[4]

A nossa consciência, não cauterizada, tem um papel importante nesse processo, de alguma forma nos deixando intranquilos com o nosso pecado (1Tm 4.2; 1Co 4.3-5).[5]

Keller, faz uma útil aplicação:

O fato de Paulo ter a consciência limpa não faz diferença. Observe com atenção o que ele diz no versículo 4: “Minha consciência está limpa, mas isso não me torna inocente”. A consciência dele pode estar limpa — mas Paulo sabe que consciência limpa não faz dele um homem inocente. Hitler talvez tivesse a consciência limpa, mas isso não significa que ele era inocente.[6]

É importante que se diga, que a nossa consciência não é infalível nem é padrão de verdade. Ela pode refletir simplesmente aspectos de nossa educação e tradição. A Palavra de Deus também nos liberta de falsas tradições criadas à revelia e contrária à Palavra. Deste modo, a minha consciência pode estar simplesmente se manifestando por eu agir contra tais tradições e não contra a Palavra. (Rm 14.14, 20-23; 1Co 10.25-29; 1Tm 4.4-5).

Devemos cultivar uma consciência santa – não legalistamente mórbida –, instruída pela Palavra e, por isso mesmo, sensível aos preceitos de Deus. A purificação e lapidação de nossa consciência deve ser saturando com a Palavra a fim de que ela seja inundada pelos ensinos do Senhor.

Packer escreveu magistralmente sobre isso:

Uma consciência educada e sensível é um monitor de Deus. Ela atenta para as qualidades morais do que fazemos ou planejamos fazer, condena a ilegalidade e irresponsabilidade e faz com que nos sintamos culpados, envergonhados e temerosos da futura retribuição que, segundo ela, merecemos quando nos permitimos desafiar seus limites. A estratégia de Satanás é corromper, tornar insensível e, se possível, matar a nossa consciência. O relativismo, materialismo, narcisismo, secularismo e hedonismo do mundo ocidental contemporâneo lhe presta grande ajuda neste sentido. Sua tarefa é ainda mais facilitada pelo modo como as fraquezas morais do mundo foram aceitas na igreja contemporânea.[7]

Uma consciência assim educada e preservada, é nossa aliada na prevenção do mal e de suas tentações (Sl 119.11). A Palavra nos ensina que andar em justiça é uma forma preventiva de nos guardar da corrupção do pecado: “A justiça (tsedaqah) guarda (natsar)  (observar,[8] preservar,[9] seguir[10]) ao que anda em integridade (tom),[11] mas a malícia subverte ao pecador” (Pv 13.6).[12]

Quando seguimos a justiça de Deus, estamos amparados nos seus ensinamentos que são perfeitos, não há contradição neles. A Palavra de Deus, dentro dos limites próprios do revelado, é uma expressão perfeita do que Deus é e do que ele deseja de nós. Desse modo, podemos estar seguros em seus caminhos.

Certamente, uma das formas de nos preservar no caminho da justiça é educar-nos a contentar-nos com o que temos, sem nos deixar fascinar pelo caminho tortuoso, aparentemente fácil e promissor da injustiça: “Melhor é o pouco, havendo justiça (tsedaqah), do que grandes rendimentos com injustiça” (Pv 16.8).

Por sua vez, quando a injustiça é institucionalizada, ela, aparentemente deixa de ser injustiça. Quando os interesses estão acima de princípios, podemos justificar todas as coisas ao nosso alvitre. Quando os fins justificam os meios, significa que os fins foram sacralizados e, por isso mesmo, os meios já estão santificados ou, digamos, perfeitamente racionalizados e legitimados.

Por isso, a Bíblia nos ensina enfaticamente que a justiça que devemos seguir é a de Deus, conforme é-nos ensinada por Jesus Cristo. Devemos saturar o nosso coração com a Palavra para que possamos ter uma consciência teocêntrica; um pensar bíblico.

Há cerca de 30 anos (1993) o premiado colunista norte-americano Charles Krauthammer (1950-2018), comentou de forma tristemente perspicaz, o fato de Katherine Power – que em companhia de 3 outros criminosos, havia assaltado um banco em 1970, culminando com a morte de um policial  (Schroeder) alvejado com um tiro pelas costas, deixando órfãos seus 9 filhos pequenos –, depois de 23 anos foragida, vivendo com outro nome, se apresentou à polícia de Boston.[13] Ela declarou à imprensa que suas atitudes no passado foram “ingênuas e impensadas”. Disse também que sabia que deveria responder a essas acusações do passado para poder viver com total autenticidade no presente. Comenta Krauthammer: “Power veio do frio em busca de ‘autenticidade total’. Não por remorso ou resignação. Não buscando perdão ou arrependimento”. Seu marido, de forma mais específica, disse que “Ela não voltou por causa da culpa. Ele queria sua vida de volta. Ela quer ser íntegra”.[14] Observem que os conceitos de pecado, arrependimento e culpa estão totalmente ausentes. Ela participou de um assalto, da morte de um policial com todos os outros elementos decorrentes e, agora, passados 23 anos, quer voltar à sua autenticidade, sem culpa nem arrependimento. Reassumindo o seu nome e sofrendo a penalidade, ela quer ser ela mesma e ponto. Deseja afirmar a sua autenticidade.  A grande questão é esta. Temos uma terapia sem pecado e sem sentimento de culpa. Nós nos perdoamos e está tudo acabado. Seguida essa linha de raciocínio ela estará curada; recuperou o seu senso do “Eu”.

É natural ao ser humano, quando não consegue eliminar os conceitos de pecado, culpa e arrependimento, tentar retardar o máximo possível a sua aceitação. Quando seus malabarismos terapêuticos se deparam com uma rua sem saída, apelam para, quem sabe, um último recurso: mudança de nomes.

Buscamos agora, não mais o arrependimento de nosso pecado, mas a restauração do nosso eu, a integridade de nosso “self”. Afinal, sentimento de culpa e pecado são expressões criadas pela religião e mais especificamente pelo Cristianismo para nos dominar (Nietzsche). Por isso, precisa ser eliminado.

Isso me faz lembrar a anedota (pelo menos espero que seja) de uma casa de pastel no Rio de Janeiro, propriedade de uma senhora asiática, que vendia pastel de “flango” bastante apreciado. Contudo, ninguém sabia bem a receita. Até que um dia, no horário de pico, a casa cheia de clientes com paladar mais apurado que corriam para usufruírem daquela iguaria – talvez até tentadora a Daniel e seus amigos –, presenciaram aquela talentosa senhora espantando os pombos que ingenuamente para ali tinham afluído, balançando os braços  de forma enérgica dizendo em tom grave e repetitivo, “sai flango”, “sai flango”.

Onde não há padrões, leis e normas, não há espaço para pecado, arrependimento e sentimento de culpa. Também, é necessário que se diga, que não haverá espaço para confissão, graça, expiação, perdão e reconciliação.

Desse modo, mudemos o nome das coisas e assim procedendo, mudaremos a sua essência, pensam. Assim, que venham os “flangos”: “Vem flango”!


[1]Veja-se: Jay E. Adams, Teologia do aconselhamento cristão, Eusébio, CE.: Editora Peregrino, 2016, p. 202-203.

[2]A figura do painel que emprego há algumas décadas, foi inspirada na aplicação feita por Adams (1929-2020) que li ainda no meu tempo de estudante. Veja-se: Jay E. Adams, Conselheiro Capaz,  São Paulo: Fiel, 1977, p. 101-102.

[3]Albert Mohler Jr., O Credo dos Apóstolos: Descobrindo o Cristianismo autêntico em uma era de falsificações, Rio de Janeiro:  Pro Nobis Editora, 2021, p. 200-201.

[4]“Estejamos seguros de que quando Deus nos faz sentir sua mão, de modo a humilhar-nos sob ela, que Deus nos está fazendo um favor especial, e que se trata de um privilégio que ele não concede a ninguém, senão a seus próprios filhos” (Juan Calvino, Bienaventurado el Hombre a Quem Dios Corrige: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 3), p. 49).

[5]“Pela hipocrisia dos que falam mentiras e que têm cauterizada a própria consciência” (1Tm 4.2). “Todavia, a mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós ou por tribunal humano; nem eu tampouco julgo a mim mesmo. 4Porque de nada me argúi a consciência; contudo, nem por isso me dou por justificado, pois quem me julga é o Senhor. 5Portanto, nada julgueis antes do tempo, até que venha o Senhor, o qual não somente trará à plena luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações” (1Co 4.3-5).

[6]Timothy Keller, Ego transformado, São Paulo: Vida Nova,  Edição do Kindle, p. 18.

[7]J.I. Packer, A Redescoberta da santidade,  2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 120.

[8]Sl 119.145.

[9]Sl 31.23; 32.7; 61.7; 64.1.

[10] Sl 119.33.

[11]Integridade (1Rs 9.4; Sl 7.8; 26.1,11; 37.37); sinceridade (Gn 20.5,6; Sl 25.21); pacato (Gn 25.27); ajustar (Ex 26.24). A palavra tom é da mesma de raiz tamiym, tamam: ser completo, estar terminado.

[12]“A consciência é de fato muitíssimo importante, mas ela tem de retornar constantemente à escola da Escritura a fim de receber a instrução  do Espírito Santo. É assim que os crentes se tornam e permanecem cônscios da vontade de Deus” (W. Hendriksen,  Romanos, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, (Rm 12.2), p. 533).

[13]Para mais detalhes, veja-se: https://en.wikipedia.org/wiki/Katherine_Ann_Power  (Consulta feita em 31.05.2022).

[14]http://content.time.com/time/subscriber/article/0,33009,979318,00.html (Quem me chamou a atenção para este fato foi John MacArthur Jr. (Sociedade Sem Pecado, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 16-17).