Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste (Parte 10)

O significado da expressão "pecado"

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Este post faz parte da série Salmo 32.

Bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado (hatã’â)[1] é coberto. (…) Confessei-te o meu pecado (hatã’â) e a minha iniquidade não mais ocultei. Disse: confessarei ao SENHOR as minhas transgressões; e tu perdoaste a iniquidade do meu pecado (hatã’â). (Sl 32.1, 5).\

Davi admite que divagou, errou propositadamente o caminho proposto. Desobedeceu a lei de Deus, alienando-se do seu Senhor. Na realidade, ele acertou no alvo de seu desejo concupiscente; conseguiu o que queria. Porém, distanciou-se totalmente de Deus.

O pecado (hatã’â)[2] pressupõe a existência de um padrão estabelecido que foi simplesmente desconsiderado. Desse modo, errou-se, ficou aquém o alvo proposto por Deus, não pelo transgressor já que ele desejou falhar e, no caso de Davi, prosseguiu em seu pecado de forma mais ardilosa e vil.[3]

Portanto, pecado consiste no desvio daquilo que é agradável a Deus; distanciar-se do caminho, desviar-se da obediência devida a Deus.

Essa é a principal palavra usada para descrever o sentido do pecado: errar o alvo ou o caminho.[4] A ênfase não está no fato de que somos pecadores, mas, nos atos pecaminosos que temos cometido.[5]

O pecado (hatã’â), na maioria das ocorrências da palavra,[6] é compreendido como uma atitude consciente e, por isso, responsável, que consiste em uma alienação de Deus e uma violação da relação com outros homens.[7] É um andar errante. Enfatiza-se a ideia de que toda má ação é um fracasso ou seja: deixar de alcançar o objetivo que Deus tem para os seus filhos.[8]

Pecar é um erro desqualificante. “A imagem é como saltar para alcançar uma barra e ser desqualificado ou fracassar em realizar isso”.[9] Este é um termo mais amplo do que o anterior (pesha’).[10]

Notemos que o salmista primeiramente quebra a sua aliança com Deus. Agora, consequentemente, desvia-se cada vez mais do propósito de Deus.

Temos aqui um avanço progressivo e desviante que o afasta cada vez mais do alvo proposto pelo Senhor. No princípio parece um pequeno desvio; quase uma rua paralela na qual podemos fazer a conversão quando quisermos. No entanto, a verdade é outra; nos deparamos com retas concorrentes e, ao seguirmos pelo seu itinerário, estaremos cada vez mais distantes.

Em geral, quando assim agimos não temos de modo imediato a percepção do quanto estamos nos afastando. Sem a Palavra como referência, perdemos quase que totalmente o senso de direção e, portanto, dos marcos estabelecidos por Deus.

Essa percepção torna-se difícil por dois motivos interligados: Abandonamos o contato com a Palavra e, consequentemente, com Deus e os seus ensinamentos e, começamos a ter uma sensação de bem-estar e satisfação.

Aliás, esta é uma característica do pecado, dar-nos a impressão de que o nosso desvio é um atalho para a realização dos nossos propósitos. Assim, pensamos e talvez até verbalizemos para nós mesmos: “Deixemos que os outros tolos sigam aquela estrada; eu tenho um atalho esperto que vai me conduzir com maior satisfação, menor esforço, rapidez e, portanto, eficiência”.

Assim pensando e procedendo, com os enganosos precoces frutos que indicam que estamos no atalho certo, não percebemos com facilidade, o quanto nos distanciamos de Deus e do seu propósito para nós. No entanto, as consequências virão.

Comumente, a nossa busca pelo caminho de volta ocorre quando as coisas começam a dar errado; o atalho revelou-se um atoleiro ou um caminho por demais pedregoso. Talvez até tenhamos alcançado o que desejávamos, porém, descobrimos que os nossos sonhos conquistados se tornaram em pesadelo. Os seus acenos sedutores impulsionados pela nossa fértil imaginação pecaminosa, idealizaram uma vida que descobrimos agora, dista e destoa bastante do real. Esse choque de realidade pode ser terrível e destruidor se Deus em sua misericórdia não nos amparar.

Muitas vezes em meio a essas angústias buscamos paliativos que podem aliviar temporariamente os sintomas, mas, trazem outros efeitos colaterais tão ou mais danosos que os anteriores. Esse labirinto de angústias é totalmente instransponível ao homem.

O caminho de saída nunca é encontrado porque, na realidade, não é acessível ao homem; faltam-lhe referências e um ponto de apoio sólido. Ele está totalmente perdido. Isso, até que Deus por sua misericórdia, às vezes, por meio de dolorosas experiências, como foi o caso de Davi, nos atraia para si, nos colocando no caminho de volta; ao reinício de nossa caminhada de fé e obediência.

Davi tem consciência de que todos somos pecadores. Contudo, isto não serve de desculpas para a prática do pecado. Ele, envergonhado, pede a Deus que não olhe para o seu pecado: “Eu nasci na iniquidade, e em pecado (heṭ’) me concebeu minha mãe. (…) Esconde o rosto dos meus pecados (heṭ’) e apaga todas as minhas iniquidades” (Sl 51.5,9).

Em outro contexto, considerando a misericórdia do Senhor, dá graças a Deus porque Ele não nos trata segundo as nossas faltas: “Não nos trata segundo os nossos pecados (heṭ’), nem nos retribui consoante as nossas iniquidades” (Sl 103.10). Certamente todos temos que dar graças a Deus por isso.

No próximo post continuaremos explorando a questão da real gravidade do pecado.

 

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[1]Forma feminina de (חטא) (hêṭ’).

[2](hatã’â). Pecado consiste no desvio daquilo que é agradável a Deus; errar o alvo, desviar-se da obediência devida a Deus. Esta é a principal palavra usada para descrever o sentido do pecado: errar o alvo ou o caminho. Um erro desqualificante.

[3]“A ideia central é que Deus tem um padrão, ou objetivo, ao qual Ele espera conformidade, e qualquer desvio em relação a esse padrão constitui falha e, portanto, resulta na desaprovação de Deus” (Eugene H. Merrill, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Shedd Publicações, 2009, p. 222).

[4]Cf. G. Herbert Livingston, hãtã’: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, [p. 450-453], p. 450.

[5]Cf. Jay E. Adams, Teologia do Aconselhamento Cristão, Eusébio, CE.: Editora Peregrino, 2016, p. 208.

[6]Exceções: Lv 4.2; 5.15; Nm 15.28.

[7]Veja-se: Alex Luc, Ht’: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, [p. 85-91], p. 87.

[8]Cf. Robert B. Girdlestone, Synonyms of the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (1897), Reprinted, 1981, p. 76-77.

[9]Bruce K. Waltke, James M. Houston e Erika Moore, Os Salmos como adoração cristã: um comentário histórico, São Paulo: Shedd Publicações, 2015, p. 494.

[10]Cf. G. Herbert Livingston, hãtã’: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 450.