Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste (Parte 11)

Este post faz parte da série Salmo 32.

3) Iniquidade (2,5)[1] 

O sentido da palavra  (‘ãwõn), é de perverter, distorcer, envergar algo que é reto. A principal ideia está associada ao ato consciente, frequente e intencional de fazer o que é errado.[2] Quando se aplica à lei significa “cometer uma perversão”, “infringir”;  distorcer o caminho certo. O seu emprego costumeiro se refere genericamente à pluralidade de nossos pecados, quer diretamente contra Deus, quer envolvendo os homens e a sociedade em geral (Lv 16.22; Nm 14.34; 1Sm 3.13-14; 20.1,8; 25.24; 2Sm 3.8; 22.24; 1Rs 17.18; Is 1.4; 53.6; Jr 11.10).[3]

Como temos demonstrado, a queda trouxe consequências desastrosas à imagem de Deus refletida no homem. Após a queda, mesmo o homem não regenerado continua sendo imagem e semelhança de Deus (aspecto metafísico):[4] Apesar de o pecado ter sido devastador para o homem e para a criação em geral, Deus não apagou a sua “imagem”, ainda que a tenha corrompida,[5] alienando-o, assim, de sua identidade divina original.

 O pecado de nossos primeiros pais desestruturou o aspecto ético da imagem de Deus no homem. [6] O homem se corrompeu.  A nossa vontade, como agente de nosso intelecto,[7] agora, é oposta à vontade de Deus.[8] O propósito divino de santidade para nós foi contraposto pelo desejo pecaminoso do homem de seguir seu próprio caminho à revelia de Deus e de seus mandamentos. A vontade humana, tornou-se totalmente avessa à vontade de Deus.[9]

A Confissão de Westminster (1647), capítulo IV, seção 2, declara:

Depois de haver feito as outras criaturas, Deus criou o homem, macho e fêmea, com almas racionais e imortais, e dotou-os de inteligência, retidão e perfeita santidade, segundo a sua própria imagem, tendo a lei de Deus escrita em seus corações e o poder de cumpri-la, mas com a possibilidade de transgredi-la, sendo deixados à liberdade de sua própria vontade, que era mutável. Além dessa escrita em seus corações receberam o preceito de não comerem da árvore da ciência do bem e do mal; enquanto obedeceram a este preceito, foram felizes em sua comunhão com Deus e tiveram domínio sobre as criaturas.

A imagem que agora refletimos estampa mais propriamente o caráter de satanás.[10] O homem está eticamente sob o domínio dele.[11]

A sua visão e prática tornaram-se tortuosas, desfocalizadas. Quando pecamos passamos a ter uma visão tortuosa em todas as nossas relações; perdemos a verdadeira dimensão da realidade. Mesmo os nossos afetos não passam imunes a isso. Este é o sentido da depravação total.[12]

Calvino escreve com propriedade:

Não teremos uma ideia adequada do domínio do pecado, a menos que nos convençamos dele como algo que se estende a cada parte da alma, e reconheçamos que tanto a mente quanto o coração humanos se têm tornado completamente corrompidos.[13]

Retornando ao Salmo 32, vemos que, ao que parece, a culpa é a principal consequência subjetiva deste pecado. Aliás, pecado, culpa e consequência, estão associados.[14] Isso, serve como demonstração de que a quebra do padrão divino, que é perfeito, traz necessariamente consequências danosas.[15]

As três palavras analisadas (pesha’), (hatã’â) e (‘ãwõn), não precisam ser interpretadas como três tipos de pecado visto que os sinônimos são soprepostos. Quando Deus nos perdoa, Ele o faz completamente, apagando os nossos pecados, iniquidades e transgressões.

Livingston faz um contraste que pode ser-nos útil: “Enquanto pesha’ significa uma ‘revolta contra um padrão’ e ‘ãwâ significa ‘desviar-se de um padrão’ ou ‘torcer o padrão’, hãtã’ significa ‘errar o alvo’, ‘ficar aquém do padrão’.”[16]

Davi que primeiramente quebrou a aliança, desviando-se cada vez mais do propósito de Deus, agora avança em infringir a Lei, pervertendo-a.

É muito natural o homem buscar justificativas para os seus atos iníquos. Há um processo de racionalização malévolo por meio do qual elaboramos teorias por vezes sofisticadas que pelo menos para nós justificam os nossos atos.

Normalmente esse processo visa acalmar a sua consciência e, por vezes, difundir uma teoria com ar de sapiência, pelos resultados proclamados como bem-sucedidos. Os ímpios, por vezes,  dão-nos a impressão de obterem sucesso em sua prática iníqua. A superficialidade, o marketing intenso e o nosso desejo apressado por novidades, tornam-nos receptores e difusores de tais teorias e comportamentos.

Como isso nem sempre é suficiente, procuramos também persuadir os outros da integridade e necessidade de nossos atos pecaminosos que, nesse caso, não são apresentados como tais, antes, como necessários, ousados, modernos e inteligentes.

 A aparente tranquilidade de Davi durante os doze meses que o separam de seus atos pecaminosos e a advertência do profeta Natã soa-me como algo estranho. De alguma forma ele conseguiu equacionar a culpa de seu pecado em sua mente e coração durante aquele período, entregando-se, como diz Calvino, a uma profunda letargia espiritual.[17]  Todavia, a Palavra de Deus é eficaz no seu propósito de mostrar a nossa infração, tirar a nossa consciência de sua letargia pecaminosa e, nos restaurar à comunhão com Deus.

 

Referências 

[1] Duas vezes no verso 5.

[2] Veja-se: Willem A. VanGemeren, Psalms: In: Frank E. Gaebelein, gen. ed. The Expositor’s Bible Commentary, Grand Rapids, MI.: Zondervan, 1991, v. 5, (Sl 32.1-2), p. 271.

[3]Vejam-se: Carl Schultz e Bruce K. Waltke, ‘ãwâ: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, [p. 1085-1088], p. 1086-1087.

[4]Podemos também chamar de aspecto “lato”, “estrutural” ou “formal”. (Para uma visão panorâmica do uso destes termos, veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 84-88,101).

[5]Vejam-se: João Calvino, As Institutas, I.15.4; II.1.5; Juan Calvino, Breve Instruccion Cristiana, Barcelona: Fundación Editorial de Literatura Reformada, 1966, p. 13; João Calvino, Efésios, São Paulo: Paracletos, 1998, (Ef 4.24), p. 142; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.5), p. 169; v. 2, (Sl 62.9), p. 579.

[6]Podemos também chamar de aspecto “estrito”, “funcional” ou “material”. (Para uma visão panorâmica do uso destes termos, veja-se: Anthony A. Hoekema, Criados à Imagem de Deus, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 84-88,101). “Ele é a criatura que, inicialmente, foi criada à imagem e semelhança de Deus, e essa origem divina e essa marca divina nenhum erro pode destruir. Contudo ele perdeu, por causa do pecado, os gloriosos atributos de conhecimento, justiça e santidade que estavam contidos na imagem de Deus. Todavia, esses atributos ainda estão presentes em ‘pequenas reservas’ remanescentes da sua criação; essas reservas são suficientes não somente para torná-lo culpado, mas também para dar testemunho de sua primeira grandeza e lembrá-lo continuamente de seu chamado divino e de seu destino celestial” (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 17-18). Vejam-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 51.5), p. 431-432; John Calvin, Commentaries on the Epistle of James, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996, (Calvin’s Commentaries, v. 22), (Tg 3.9), p. 323; As Institutas, I.15.8; II.2.26,27; Hermisten M.P. Costa, João Calvino 500 anos: introdução ao seu pensamento e obra, São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 211ss.; W. Gary Crampton; Richard E. Bacon, Em Direção a uma Cosmovisão Cristã, Brasília, DF.: Monergismo, 2010, p. 27; Herman Dooyeweerd, No Crepúsculo do Pensamento, São Paulo: Hagnos, 2010, p. 260-261; François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 591; Emil Brunner, Dogmática: A Doutrina Cristã da Criação e da Redenção, São Paulo: Fonte Editorial, 2006, v. 2, p. 88; Cornelius Van Til, Epistemologia Reformada, Natal, RN.: Nadere Reformatie Publicações, 2020, p. 30, E-book  Posição  448 de 715.

[7]Ver: James M. Boice, O Evangelho da Graça, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 111. Agostinho (354-430), comentando o Salmo 148, faz uma analogia muito interessante: “Como nossos ouvidos captam nossas palavras, os ouvidos de Deus captam nossos pensamentos. Não é possível agir mal quem tem bons pensamentos. Pois as ações procedem do pensamento. Ninguém pode fazer alguma coisa, ou mover os membros para fazer algo, se primeiro não preceder uma ordem de seu pensamento, como do interior do palácio, qualquer coisa que o imperador ordenar, emana para todo o império romano; tudo o que se realiza por meio das províncias. Quanto movimento se faz somente a uma ordem do imperador, sentado lá dentro? Ao falar, ele move somente os lábios; mas move-se toda a província, ao se executar o que ele fala. Assim também em cada homem, o imperador acha-se no seu íntimo, senta-se em seu coração; se é bem e ordena coisas boas, elas se fazem; se é mau, e ordena o mal, o mal se faz” (Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, (Patrística, 93), 1998, v. 3, (Sl 148.1-2), p. 1126-1127).

[8] “Pecado consiste num alcance ilícito de incredulidade, uma afirmação da autonomia humana de conhecer a moralidade à parte de Deus” (Bruce K. Waltke, Gênesis, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, (Gn 2.17), p. 103).

[9]Veja-se: João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 8.7), p. 267.

[10]“Moral e espiritualmente, o caráter do homem estampa a imagem de Satanás, e não a de Deus. Ora, é precisamente isso o que a Bíblia quer dizer quando fala sobre o homem caído no pecado como ‘filho do diabo’. (Jo 8.44; Mt 13.38; At 13.10 e 1Jo 3.8)” (J.I. Packer, Vocábulos de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 1994, p. 67). “Tampouco é absurdo dizer que a imagem em parte se perdeu e em parte se conservou, e que no mesmo sujeito há a imagem de Deus e a do diabo em diferentes aspectos” (François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 588).

[11]Cf. Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 3, 190.

[12]“Assim como o pecado original se estende por toda a humanidade, ele se estende também por toda a pessoa. Ele exerce influência sobre toda a pessoa, sobre a mente e a vontade, o coração e a consciência, a alma e o corpo, sobre todas as capacidades e poderes de uma pessoa” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 3, p. 123).

[13]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 51.5), p. 431.

[14] Veja-se: Carl Schultz e Bruce K. Waltke, ‘ãwâ: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, [p. 1085-1088], p. 1087.

[15] Veja-se: G. Quell, a(marta/nw, etc.: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 1, [p. 267-286], p. 277, 279-280.

[16] G. Herbert Livingston, hãtã’: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, [p. 450-453], p. 451.

[17] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, p. 421.

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.