Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste – (parte 19)

A disciplina misericordiosa e pedagógica de Deus

A disciplina misericordiosa e pedagógica de Deus  por intermédio das Escrituras, conduz-nos arrependidos de volta a Ele. Isso é doloroso e, ao mesmo tempo, tão grandioso que o salmista confessa a bem-aventurança desse processo educativo: “Antes de ser afligido[1] andava errado, mas agora guardo a tua palavra (…). Foi-me bom ter passado pela aflição, para que aprendesse os teus decretos” (Sl 119.67,71).

“Deus, ao afligir-nos, quer submeter-nos a si mesmo, sim, para nosso benefício e para nossa salvação”, comenta Calvino.[2] De fato, com a disciplina do Senhor podemos aprender a sua Palavra, nos alegrando, posteriormente, pela “aflição pedagógica” de Deus: “Alegra-nos por tantos dias quantos nos tens afligido, por tantos anos quantos suportamos a adversidade” (Sl 90.15).[3]

A misericórdia de Deus nos assiste nos disciplinando para o nosso aperfeiçoamento.

A mão de Deus sobre Davi era extremamente pesada; contudo, era um peso pressionado com amor. A disciplina de Deus mostra por um lado a sua insatisfação com o pecado. Por outro, devido a ação do seu Espírito, leva o homem arrependido, à correção de seus atos pecaminosos.

“A disciplina tem seu fundamento teológico na aliança que Yahweh estabelece com Seu povo”, comenta Gilchrist.[4] Devemos enfatizar que toda a relação de Deus com o seu povo ampara-se nas justas e amorosas prescrições do Pacto da Graça. “Ele [Deus] trata com mais severidade os que o servem do que os réprobos”, interpreta Calvino.[5]

Essa consciência deve propiciar um sentimento de verdadeira humildade:  “Não há outro modo de obtermos consolação quando nos vemos em aflições, senão lançando de nós toda obstinação e orgulho e submetendo-nos humildemente à disciplina divina”, afirma Calvino.[6]

Quando os crentes, em sua fraqueza cedem à tentação, podem cair em sérios e terríveis pecados. Nesta condição, incorrem na ira de Deus, entristecendo o seu Santo Espírito e, por isso, entre as consequências de seus atos voluntários, não encontram paz em seus corações, até que por meio da disciplina de Deus tornam a Ele arrependidos, voltando a usufruir as bênçãos da comunhão com o Senhor.

Diz os Cânones de Dort:

A lamentável queda de Davi, Pedro e outros santos, descrita na Sagrada Escritura, demonstra isto. Por tais pecados grosseiros, entretanto, eles causam a ira de Deus, se tornam culpados da morte, entristecem o Espírito Santo, suspendem o exercício da fé, ferem profundamente suas consciências e algumas vezes perdem temporariamente a sensação da graça. Mas quando retornam ao reto caminho por meio de arrependimento sincero, logo a face paternal de Deus brilha novamente sobre eles” (V.4-5).

A igreja precisa se valer de pastores fiéis e sábios para exercerem esta atividade com firmeza e amor, amparando-se no ensino das Escrituras, a fim de que o irmão faltoso, por graça, volte à comunhão com Deus.

Escreve o apóstolo:

24 Ora, é necessário que o servo do Senhor não viva a contender, e sim deve ser brando para com todos, apto para instruir, paciente, 25 disciplinando com mansidão os que se opõem, na expectativa de que Deus lhes conceda não só o arrependimento para conhecerem plenamente a verdade, 26 mas também o retorno à sensatez, livrando-se eles dos laços do diabo, tendo sido feitos cativos por ele para cumprirem a sua vontade” (2Tm 2.24-26).

A Igreja é uma comunidade de pecadores que foram regenerados pelo Espírito (Tt 3.5), que foram santificados em Cristo Jesus (1Co 1.2). Por isso, ela deve zelar pela sua pureza. A disciplina (formativa e corretiva) visa preservar a santidade da Igreja.[7]

A omissão por parte da igreja constituída em disciplinar o faltoso é um erro grave, com consequências que podem ser desastrosas. Além disso, ela se coloca sob o juízo de Deus (Ap 2.14-15; 2.19-20).[8] Por outro lado, a atitude do faltoso após a disciplina é responsabilidade pessoal dele diante de Deus.

No livro de Apocalipse, encontramos a declaração explícita de Jesus Cristo à Igreja de Laodiceia: “Eu repreendo e disciplino a quantos amo. Sê, pois, zeloso, e arrepende-te” (Ap 3.19).

Por isso, Paulo recomenda a Timóteo que pregue a Palavra, porque ela de fato é útil para a correção: “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina” (2Tm 4.2).

Em outro lugar, o apóstolo insiste com Tito para que repreenda os falsos mestres a fim de que eles tenham uma fé sadia: “Portanto, repreende-os severamente para que sejam sadios na fé” (Tt 1.13).

Do que analisamos neste tópico, podemos extrair algumas lições:

a) A essência e gravidade do pecado consistem no fato de que Ele é primeira e essencialmente contra Deus, Aquele que é Santo e Majestoso. O pecado é tão catastrófico e danoso que somente Deus pode tratá-lo adequadamente. Ele o fez na cruz.[9]

b) Todos estamos sujeitos ao pecado que nos circunda. As Escrituras não ocultam o fato de que diversos servos piedosos caíram gravemente.[10] Sem a revelação bíblica do pecado, da sua vileza, alcance e penetração, jamais poderíamos ter uma visão correta de quem nos tornamos.

c) A luta contra o pecado continuará por toda a nossa vida, portanto, a necessidade de uma vida de arrependimento e súplica por perdão.

d) A Palavra de Senhor é útil para evidenciar o nosso erro, mostrando-nos o paradigma definitivo que é Cristo Jesus.

e) Deus nos deu a sua Palavra para, entre outras coisas, nos guiar, consolar e corrigir. A repreensão do Senhor indica a nossa não conformidade com a sua Palavra e revela também o seu amor por nós. Devemos, portanto, nos entristecer com o nosso pecado e nos alegrar com a repreensão amorosa do Senhor. A repreensão de Deus, conforme as Escrituras, visa a nossa restauração espiritual.

Recorro mais uma vez às pertinentes observações de Calvino:

Porque a Deus não Lhe basta ferir-nos com sua mão, a menos que também nos toque interiormente com Seu Espírito Santo. (…) Até que Deus nos toque no mais profundo de nosso interior, é certo que não faremos nada senão dar coices contra Ele, cuspindo mais e mais veneno; e toda vez que nos punir rangeremos os dentes, e nada mais faremos senão atacá-Lo. (…) Então vocês veem como Deus mostra Sua justiça cada vez que pune os homens, ainda que tal punição não seja uma solução para sua emenda.[11]

f) Devemos pregar a Palavra, entendendo que Deus convence o mundo, agindo pelo Espírito por intermédio da Palavra. Deste modo, a força de nossa argumentação não está em nossa sabedoria, mas, sim, em pregar a Palavra com fidelidade e autoridade. Por isso, Paulo fala ao jovem Tito: “Dize estas cousas; exorta e repreende também com toda a autoridade. Ninguém te despreze” (Tt 2.15).

g) Por inferência, podemos também dizer que o critério de correção de nossos filhos deve estar sempre fundamentado nos princípios bíblicos, visto ser a Escritura útil para o ensino e repreensão.

h) Finalmente, a disciplina visa honrar o nome de Deus por meio de Sua Igreja, a qual Ele comprou com o seu próprio sangue (At 20.28).

Armstrong comenta:

Se fracassarmos em honrar o glorioso nome de Cristo negligenciando a responsabilidade de disciplinar os irmãos caídos, então o respeito do mundo por nós diminuirá também. Ao longo do tempo, os membros da igreja irão perder a confiança nela. (…) Quando o comportamento ético falha em honrar a Deus, tanto o nome dele quanto seus ensinamentos são “blasfemados” (1Tm 6.1), e o caminho da verdade é “infamado” (2Pe 2.2).[12]

 

[1] A palavra hebraica (‘ãnãh) tem o sentido de “aflito”, “oprimido”, com o sentimento de impotência, consciente de que o seu resgate depende unicamente da misericórdia de Deus. Esta palavra é contrastada com o orgulho, que se julga poderoso para resolver todos os seus problemas, relegando Deus a uma posição secundária, sendo-Lhe indiferente. ‘ãnãh apresenta também a ideia de ser humilhado por outra pessoa: (Gn 16.6; 34.2; Ex 26.6; Dt 22.24,29; Jz 19.24; 20.5).

[2]Juan Calvino, Bienaventurado el Hombre a Quem Dios Corrige: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 3), p. 53.

[3]“…. os crentes são açoitados, não para com isso satisfazerem à ira de Deus, nem para pagarem o que é devido ao juízo que Ele lhes impõe, mas a fim de aproveitarem a oportunidade para arrependimento e para retorno ao bom caminho” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.5), p. 177).

[4] Paul R. Gilchrist, yãsar: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 632.

[5]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 90.11), p. 438.

[6]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 1999, v. 2, (Sl 38.6-8), p. 182.

[7]Veja-se: Confissão de Westminster, XXX.3.

[8]À Igreja de Pérgamo: 14Tenho, todavia, contra ti algumas coisas, pois que tens aí os que sustentam a doutrina de Balaão, o qual ensinava a Balaque a armar ciladas diante dos filhos de Israel para comerem coisas sacrificadas aos ídolos e praticarem a prostituição. 15 Outrossim, também tu tens os que da mesma forma sustentam a doutrina dos nicolaítas” (Ap 2.14-15). À Igreja de Tiatira: 19 Conheço as tuas obras, o teu amor, a tua fé, o teu serviço, a tua perseverança e as tuas últimas obras, mais numerosas do que as primeiras. 20 Tenho, porém, contra ti o tolerares que essa mulher, Jezabel, que a si mesma se declara profetisa, não somente ensine, mas ainda seduza os meus servos a praticarem a prostituição e a comerem coisas sacrificadas aos ídolos” (Ap 2.19-20).        Veja-se: John Armstrong, Chorar pelos que erram e os caídos erguer: In: John MacArthur, et. al. Avante, Soldados de Cristo: uma reafirmação bíblica da Igreja, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 92-93.

[9] “O pecado é tão terrível, tão sórdido e tão vil que nada pode tratá-lo satisfatoriamente, senão o sangue de Cristo” (D.M. Lloyd-Jones, O supremo propósito de Deus: Exposição sobre Efésios 1.1-23, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 160).

[10]“Não é questão de julgar alguém por um ou dois ou três fatos, pois, às vezes acontece que os mais santos caem grosseiramente em pecado” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.4), p. 104).

[11]Juan Calvino, Bienaventurado el Hombre a Quem Dios Corrige: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 3), p. 48.        (Vejam-se também: João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.17), p. 204; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 79.1), p. 250).

[12]John Armstrong, Chorar pelos que erram e os caídos erguer: In: John F. MacArthur Jr., et. al. Avante, Soldados de Cristo: uma reafirmação bíblica da Igreja, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 94.

 

Por: Hermisten Maia. ©️ Voltemos Ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e revisor: Vinicius Lima.

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