Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste – (parte 20)

A confissão de pecados que é sincera

O silêncio do salmista após os seus pecados e a aparente situação tranquila, não era de paciência, mas sim de ocultamento do pecado. Nesses casos o silêncio pode ocultar superficialmente, mas não pode trazer paz, curar e restabelecer relações.

Certamente Deus não se agrada do pecado nem do silêncio do pecador acomodado em sua situação.

O silêncio do salmista era um sentimento “que se põe entre a paciência e a obstinação, e que se alia tanto ao vício quanto à virtude”, interpreta Calvino[1]

Como vimos, há formas sutis de tentar nos eximir intelectualmente de pecados cometidos: Racionalização, apelando para a culpa dos outros, da sociedade, da cultura, das pressões, enfim, das diversas circunstâncias da vida.

Uma outra forma, que por vezes nos parece bíblica, mas não é, consiste em admitir a nossa dificuldade, sendo sincero no reconhecimento de nossas fraquezas mas, sutilmente, apelando para nosso  temperamento, genética, educação de nossos pais, cultura, meio em que vivemos, má influência, circunstâncias, etc. Na realidade, nada se sucede daí. Ou seja: Amanhã teremos os mesmos argumentos para justificar ou atenuar nossos pecados. Isso não é confissão!

A única forma bíblica de lidar com o pecado cometido é reconhecê-lo como tal, confessar a Deus e, quando for o caso, ao ofendido, e mudar de atitude. A confissão visa sempre à reconciliação.[2]

A confissão só se torna genuína se, além de verdadeira em sua essência, for precedida pelo arrependimento sincero, caracterizado por uma nova disposição mental e comportamental. Isso é obra do Espírito.

Quando confessamos os nossos pecados  reconhecemos que estamos de acordo com o que Deus diz em sua Palavra a respeito de nossos atos. Concordamos sinceramente diante de Deus que merecemos a sua justa disciplina, ainda que supliquemos por sua misericórdia.[3]

Como vimos, a confissão de Davi foi antecedida pelo confronto com a Palavra de Deus por meio do profeta Natã. Arrependido, confessa Davi: “Pequei contra o Senhor” (2Sm 12.13).

Por mais empedernido que esteja o coração humano, a Palavra de Deus é poderosa para conduzir os homens ao arrependimento.

O arrependimento e a consequente confissão, ainda que depois de cerca de um ano, foi antecedida por uma reflexão sincera e por uma decisão corajosa. Este salmo demonstra esta realidade. A Parábola do Filho Pródigo revela processo semelhante.

A confissão é o transpirar doloroso e, por vezes, ofegante, de uma alma arrependida.

Na confissão sincera temos a gestação em nós de nossa paz com Deus, propiciada pelos atos eternos e amorosos da Trindade bendita.

É esta certeza, do caminho aberto por Jesus Cristo, que nos enche de confiança em nosso retorno ao Senhor. Berkhof (1873-1957) comenta que  “o crente que está realmente cônscio do seu pecado sente no íntimo uma compulsão que o impele a confessá-lo e a buscar a consoladora segurança do perdão”.[4]

João escreve: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça” (1Jo 1.9).

Portanto, algo de fundamental importância é o reconhecimento e a confissão de nosso pecado.

Neste salmo encontramos lições preciosas sobre isso. Podemos destacar as palavras usadas no verso 5:

a) Confessei-te (yada’)[5] (“conhecer”, “pensar”, “reconhecer”, “discernir”) o meu pecado (hatã’â)” (Sl 32.5).

b) “Disse: confessarei (yadah)[6] (“confessar”, “dar graças”, “agradecer”) ao SENHOR as minhas transgressões (pesha’)” (Sl 32.5).

Ambas comportam vários significados literais e figurados. (yadah) tem também o sentido de “declarar”, “confirmar”, “homologar”. Isso independe do teor da declaração; podendo, portanto, ser uma confissão de fé ou de pecado,[7] envolvendo a ideia de reconhecimento, especialmente de louvor.[8] Uma das ideias preponderantes é o de “confessar ou declarar a glória de Deus”.[9]

É por isso que (yadah) é traduzida muitas vezes por: a) Render graças: (Sl 7.17; 57.9; 107.1,8,15,21,31; 118.19,21, 28, 29; 119.7); b) Dar graças (Sl 30.4,12; 35.18; 52.9; 106.47; Is 12.1,4); c) Louvar (Sl 6.5; 9.1;28.7; 30.9; 42.5,11; 43.4-5; 44.8; 45.17; 49.18; 54.6; 67.3 (2 vezes); Is 25.1); d) Glorificar (Sl 18.49); e) Celebrar (Sl 33.2); f) Confessar (os pecados) (Lv 16.21; 1Rs 8.33,35; Ed 10.1; Ne 1.6; 9.2-3; Sl 32.5; Dn 9.4,20); g) Confessar (o nome de Deus) (2Cr 6.24,26).

No Salmo 32.5, o salmista declarou diante de Deus o seu pecado. Ele não mais tentou escondê-lo ou amenizá-lo. Não há eufemismos em nossa confissão sincera.

Davi pinta com cores reais as suas faltas: “pecado” (hatã’â); “iniquidade” (‘ãwõn) e “transgressões” (pesha’).

Os dois verbos que empregou para a sua confissão, estão no hiphil, indicando, que ele mesmo, que cometeu o pecado, o confessou, como se pode ver no versículos abaixo:

Confessei-te (yada’) o meu pecado (hatã’â) e a minha iniquidade (‘ãwõn) não mais ocultei (kâsâh).[10] Disse: confessarei (yadah) ao SENHOR as minhas transgressões (pesha’); e tu perdoaste a iniquidade (‘ãwõn) do meu pecado (hatã’â) (Sl 32.5).

“Pois eu conheço (yada’) as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim” (Sl 51.3).

Confesso (nâgad)[11] a minha iniquidade (‘ãwõn); suporto tristeza por causa do meu pecado” (Sl 38.18).

O caminho proposto por Deus em sua misericórdia é o arrependimento e a confissão. Deus perdoa a todos aqueles que arrependidos, sinceramente o procuram.

Não encobri-lo; Deus cobre

Conforme já vimos, o pecado de Davi só foi perdoado quando ele o confessou a Deus, deixando de tentar encobri-lo.

Ele diz que não mais ocultou (kâsâh) o seu pecado (Sl 32.5). Ao mesmo tempo reconhece a bem-aventurança de ter o seu pecado “coberto”: 1Bem-aventurado aquele cuja iniquidade é perdoada, cujo pecado é coberto (kâsâh)[12] (…) 5 Confessei-te o meu pecado e a minha iniquidade não mais ocultei (kâsâh) (Sl 32.1,5).

Aqui temos uma diferença significativa: A tentativa de esconder o pecado não resolve o problema.

Deus mesmo declara:

Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas transgressões (pesha’) por amor de mim. (Is 43.25).

Desfaço as tuas transgressões (pesha’) como a névoa, e os teus pecados como a nuvem; torna-te para mim, porque eu te remi. (Is 44.22).

Quem, ó Deus, é semelhante a ti, que perdoas a iniquidade e te esqueces da transgressão (pesha’) do restante da tua herança? O SENHOR não retém a sua ira para sempre, porque tem prazer na misericórdia. (Mq 7.18).

Confissão e benevolência: ação de graças

A confissão sincera é um ato de benevolência de Deus que inclina o nosso coração ao arrependimento e à confissão. Quando, por graça, assim fazemos, em gratidão rendemos graças a Deus pela sua justiça e por sua graça. “A ideia de ‘confissão’ era ambivalente, pois, ao reconhecer-se justo o julgamento, confessava-se o extravio e era dado a esta declaração um tom de louvor a Deus”, comenta Von Rad (1901-1971).[13]

No salmo, Davi não declara a natureza exata do seu pecado, visto que o mais importante para ele era demonstrar e ensinar a alegria do perdão de Deus.

A confissão nunca termina em si mesma. Ela é precedida pelo arrependimento e seguida por um novo desejo e comportamento.

Salomão nos ensina: “O que encobre (kâsâh) as suas transgressões (pesha’) jamais prosperará; mas o que as confessa (yadah) e deixa (‛âzab)[14] alcançará misericórdia” (Pv 28.13).

A nossa verdadeira prosperidade está na obediência a Deus. O salmista descrevendo o homem fiel diz ser ele bem-aventurado: “Ele é como árvore plantada junto a corrente de águas, que, no devido tempo, dá o seu fruto, e cuja folhagem não murcha; e tudo quanto ele faz será bem-sucedido (tsaleah) (Sl 1.3).

 

[1]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.3), p. 45. “O ânimo do homem é vacilante, e hesita entre a confissão de sua fraqueza e a audácia da presunção” (Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulus, 1997, v. 1, Sl 31, “II. Sermão ao Povo”, p. 348).

[2] Cf. Jay E. Adams, Teologia do Aconselhamento Cristão, Eusébio, CE.: Editora Peregrino, 2016, p. 296.

[3] Veja-se: Jay E. Adams, Teologia do Aconselhamento Cristão, Eusébio, CE.: Editora Peregrino, 2016, p. 295.

[4]L. Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 519.

[5]A LXX traduz (Sl 32.5 – “confessei”) por γνωρίζω, “fazer conhecido”, “revelar”, “declarar”, “desvendar”.

[6]A LXX traduz (Sl 32.5 – “confessarei”) por Ἐξαγορεύσω “prometer”, “confessar”, “glorificar”.

[7] Cf. J.B. Torrance, Confissão: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 1, p. 314.

[8] Cf. Leslie C. Allen, Ydl: Willem A. VanGemeren, gen. editor. New International Dictionary of Old Testament Theology & Exegesis, Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1997, v. 2, p. 405.

[9]“Louvor é uma confissão ou afirmação de quem Deus é do que faz” (Ralph H. Alexander, Yãdâ: In: R. Laird Harris, et. al. eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 595). “A ação de graças acompanha o louvor, pois quando alguém declara os atributos e obras de Deus, não pode deixar de ser agradecido por isso. O louvor conduz regularmente à ação de graças” (Ralph H. Alexander, Yãdâ: In: R. Laird Harris, et. al. eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, p. 595). “No Antigo Testamento, a confissão frequentemente se reveste do caráter de louvor, quando o crente, agradecido, declara o que Deus fez pela redenção de Israel ou pela sua própria alma. (…) A confissão pode levar o crente a reconsagrar-se a Deus, a entoar-Lhe hinos de louvor, a oferecer-Lhe sacrifício de regozijo, e infunde no crente o desejo de falar aos outros sobre a misericórdia de Deus e de Identificar-se com os outros crentes na adoração ao Senhor” (J.B. Torrance, Confissão: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 1, p. 314). Vejam-se: Otto Michel, In: G. Friedrich; G. Kittel, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1982, v. 5, p. 204; D. Furst, Confessar: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 1, p. 465-466.

[10](kâsâh) tem o sentido de “envolver”, “encobrir”, “ocultar”, “submergir” (Sl 78.53); morar (Pv 10.6,11); reter (Pv 10.18);

[11] O sentido básico é de “declarar”, “publicar”, “anunciar”, “manifestar, “expor”.

[12] Para um estudo mais detalhado da palavra hebraica, vejam-se: R. Laird Harris, Kasa: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 736-737; W.R. Domeris, Ksh: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, p. 674-677.

[13]Gerhard Von Rad, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: ASTE, (1973)(1986), v. 1, p. 343.

[14] A palavra tem o sentido de “desamparar” (Sl 9.10; 10.14; 22.1; 27.9-10). O que Deus não faz conosco – nos desamparar – devemos fazer com o pecado. Não devemos dar suporte a ele.

 

Por: Hermisten Maia. ©️ Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e revisor: Vinicius Lima.

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