Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste – (parte 24)

O sentido bíblico de entendimento (parte A)

O Sentido bíblico de entendimento (8-9)

“Não sejais como o cavalo ou a mula, sem entendimento (biyn), os quais com freios e cabrestos são dominados; de outra sorte não te obedecem” (Sl 32.9).

Aqui há uma possível mudança de personagem. Até o verso 7 vemos o salmista narrando o seu pecado e a maravilhosa graça perdoadora de Deus. Dois caminhos viáveis para explicar essa mudança: É possível que o salmista, após narrar sua dramática experiência de pecado acompanhada pela alegria do perdão, exorta os seus ouvintes a não cometerem pecado, antes a seguirem a instrução de Deus. Se assim for, Davi estaria cumprindo o que prometera ao Senhor: “Ensinarei aos transgressores (pesha’) os teus caminhos, e os pecadores (chatta) se converterão a ti” (Sl 51.13).

Outra possibilidade, é interpretar como Deus falando diretamente a todos os homens, os instruindo e advertindo a partir do pecado do salmista. Creio que as duas opções são razoáveis e não alteram em essência a mensagem do salmo.

Deus deseja que o seu povo seja instruído e sábio. Deus é sábio em sua própria natureza, propósito e ação. A sabedoria de Deus, assim como sua majestade, santidade, justiça e bondade permeiam toda a sua obra. (Sl 8,19).

Ele deseja produzir em seus servos aspectos do seu caráter. A sabedoria consiste em subordinar a nossa vontade aos preceitos de Deus, reconhecendo neles o caminho de uma vida com sábio discernimento na presença de Deus. “Ser sábio é dominar a arte do viver diário por intermédio do conhecimento da Palavra de Deus e sabendo aplicá-la em toda situação”, conclui MacArthur.[1] A sabedoria, portanto, consiste em escolher os melhores meios para alcançar o melhor fim, em harmonia com a vontade revelada de Deus.[2]

Mas, comecemos por analisar alguns aspectos do entendimento indicado por Deus por meio do salmista.

Percepção e organização mental da realidade

Uma das coisas maravilhosas que Deus concedeu ao ser humano de forma bastante especial, é a capacidade de autoconsciência, perceber a realidade, permitindo assim, interpretar e organizar as sensações.[3] Sem esta capacidade teríamos apenas noção da cor verde ou amarela, perfume suave ou intenso, som fraco ou forte, contudo não teríamos as condições de identificar determinado objeto, como por exemplo: cor de uma laranja, perfume de uma rosa, som de um violino, etc. Enquanto os órgãos sensoriais (paladar, olfato, tato, audição e visão) nos fornecem qualidades de sensação, a nossa percepção organiza sínteses mentais.

Aliada à percepção, temos a capacidade de discernir as coisas, que nos permite separar, distinguir, discriminar. Chamamos isso de discernimento.

A importância da definição

A definição é um instrumento ideal para isso. Definir, segundo o sentido etimológico[4] é delimitar.

A definição procura determinar a compreensão da ideia, circunscrevendo a sua abrangência, indicando todos os seus elementos constitutivos. Como todo conceito possui um conteúdo, a definição nada mais é do que a determinação da natureza deste conteúdo.[5] A definição se propõe a nos fazer ver com maior clareza o objeto analisado, o assunto do qual tratamos. A “indefinição” acarreta uma série de omissões e equívocos,[6] justamente por não termos claro diante de nós o objeto do qual estamos tratando ou, em que sentido nos aproximamos de cada ideia.[7]

Entender para discernir

Algo natural ao ser humano é o desejo de entender para poder discernir a realidade, interpretando o mundo à sua volta e as situações às quais todos estamos sujeitos.

As Escrituras nos falam sobre isso. Há até o lugar para preceitos que envolvam o discernimento em nossa etiqueta:             “Quando te assentares a comer com um governador, atenta bem[8] (bîyn) para aquele que está diante de ti” (Pv 23.1). Ou seja: dê atenção ao governador que está diante de ti, não simplesmente à comida servida.

Salomão designa de inteligente o homem com discernimento que busca a sabedoria: “A sabedoria é o alvo do inteligente (bîyn), mas os olhos do insensato vagam pelas extremidades da terra” (Pv 17.24).

O homem inteligente não se perde em distrações sem foco, sem objetivo, antes, concentra seus esforços em alcançar a sabedoria – a capacidade de utilizar bem os recursos de que dispõe –, mantendo-a diante de seus olhos. Por vezes, múltiplos sonhos que se sobrepõem nos tiram os pés da realidade nos conduzindo por vários e etéreos caminhos de forma inconsequente e inconstante.

Sabedoria está em entender o seu caminho

Salomão também afirma que sabedoria consiste em discernir o nosso caminho: “A sabedoria do prudente é entender (bîyn) o seu próprio caminho, mas a estultícia dos insensatos é enganadora” (Pv 14.8).

Aplicando este princípio ao campo espiritual podemos ilustrar com Jó, que não conseguindo discernir o seu suposto pecado, pede a Deus que o faça compreender o seu erro: “Ensinai-me, e eu me calarei; dai-me a entender (bîyn) em que tenho errado” (Jó 6.24).

Continua: “Há iniquidade na minha língua? Não pode o meu paladar discernir (bîyn) coisas perniciosas?” (Jó 6.30).

No Salmo 32.9, Deus usa figuras fortes para falar da obtusidade daqueles que não atentam para a sua instrução: “Não sejais como o cavalo[9] ou a mula (pered),[10] sem entendimento (bîyn), os quais com freios e cabrestos são dominados; de outra sorte não te obedecem” (Sl 32.9).[11]

Isaías: O boi e o jumento

Por meio de outra analogia, Deus recorre à figura de outros animais para falar da ignorância culposa do povo. Referindo-se a Israel diz: “O boi conhece o seu possuidor, e o jumento (chămôr), o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende (bîyn) (Is 1.3).

Ele toma dois animais difíceis de trato: o boi e o jumento. Mostra que a obtusidade, a teimosia e a dificuldade de condução destes animais dão-se pela sua própria natureza; no entanto, assim mesmo, eles sabem reconhecer os seus donos, aqueles que lhes alimentam. O homem, por sua vez, como coroa da criação, cedendo ao pecado, perdeu totalmente o seu discernimento espiritual; já não reconhecemos nem mesmo o nosso criador; antes lhe voltamos as costas e prosseguimos em outra direção.[12]

Deus deseja que lhe obedeçamos voluntariamente com entendimento. Aliás, a nossa obediência é resultante de nosso discernimento espiritual (Sl 32.9).

O discernimento que Deus deseja que tenhamos nada tem a ver com a glória e honrarias humanas. O salmista resume esta verdade: “O homem, revestido de honrarias (yeqar) (preciosidades, ostentação), mas sem entendimento (bîyn), é, antes, como os animais, que perecem” (Sl 49.20).

O sentido de entendimento

Mas o que significa entendimentono texto que estamos analisando?

O verbo (bîyn)[13] apresenta a ideia de um entendimento, fruto de uma observação demorada, que nos permite discernir para interpretar com sabedoria e conduzir os nossos atos.[14] “O verbo se refere ao conhecimento superior à mera reunião de dados. (…) Bîyn é uma capacidade de captação julgadora e perceptiva e é demonstrada no uso do conhecimento”, interpreta Goldberg (1923-2002).[15]

No próximo artigo desenvolveremos este assunto.

 

[1]John MacArthur, Adotando a Autoridade e a Suficiência das Escrituras. In: John MacArthur, ed. ger., Pense Biblicamente!: recuperando a visão cristã do mundo, São Paulo: Hagnos, 2005, p. 39.

[2] Veja-se: J.I. Packer, O Conhecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2014, p. 91-99 (Edição de 1980, p. 87-96).

[3]“A percepção permite que um organismo receba informação do ambiente e converta a informação sensorial recebida em experiência organizada. (…) Tradicionalmente, a palavra (…) percepção refere-se mais estritamente à maneira pela qual o indivíduo organiza e interpreta a informação sensorial recebida” (Samuel Pfromm Netto, Psicologia: introdução e guia de estudo, São Paulo; Brasília: EDUSP; CNPQ., 1985, 10-4). Para uma discussão mais detalhada sobre o emprego da palavra, ver: Percepção: In: Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 722-726.

[4]As palavras gregas correspondentes são: o(/roj = “termo”, “limite” e o(rismo/j = “delimitação”, “acordo”, “tratado”.

[5] Do ponto de vista lógico, a ideia é igual a sua definição. A definição lógica consiste de fato em delimitar exatamente a compreensão de um objeto, ou, em outros termos, em dizer o que uma coisa é. Daí o princípio: “A definição é a noção desenvolvida e (…) a noção é a definição condensada” (L. Liard, Lógica, 9. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979, p. 25).

[6] Em uma entrevista concedida em 1991, o cientista Thomas Kuhn (1922-1996) queixando-se do uso excessivo e inadequado da expressão “paradigma”, que marca o seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, admite que no livro não definira “paradigma” tão rigorosamente como deveria” (John Horgan, O Fim da Ciência: uma discussão sobre os limites do conhecimento Científico, 3. reimpressão, São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 64).

[7]Condillac (1715-1780) assim expressou esta questão: “A necessidade de definir é apenas a necessidade de ver as coisas sobre as quais se quer raciocinar e, se fosse possível ver sem definir, as definições se tornariam inúteis” (E.B. de Condillac, Lógica ou Os Primeiros Desenvolvimentos da Arte de Pensar, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 27), 1973, p. 121).

[8]A Contemporary English Versions traduz por “aja da melhor maneira”. English Standard Version: “observe criteriosamente”; Geneva Bible (1587) e King James Version: “considere diligentemente”.

[9] As Escrituras chamam atenção apenas para a força do cavalo, não para a sua suposta inteligência (Sl 33.17; 147.10).

[10]A mula ou o mulo é gerado do cruzamento do cavalo com a jumenta ou do jumento com a égua; entretanto, ele é estéril, não podendo reproduzir-se. “As mulas são valiosas pelo fato que combinam a força do cavalo com a resistência e o passo firme do jumento, além de ter o vigor extra característico dos híbridos” (G.S. Cansdale, Mula: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 2, p.1075).

[11]“O açoite é para o cavalo, o freio, para o jumento, e a vara, para as costas dos insensatos” (Pv 26.3)

[12]Jones explora com vivacidade a analogia do texto. Veja-se: D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus, não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 43-46.

[13] O substantivo é (bîynâh).

[14](bîyn) permite diversas traduções (ARA): Acudir (Sl 5.1) (No sentido de considerar); Ajuizado (Gn 41.33,39); Atentar (Dt 32.7,29; Sl 28.5); Atinar (Sl 73.17; 119.27); Considerar (Jó 18.2; 23,15; 37.14); Contemplar (Sl 33.15); Cuidar (Dt 32.10); Discernir (1Rs 3.9,11; Jó 6.30; 38.20; Sl 19.12); Douto (Dn 1.4); Ensinar (Ne 8.7,9); Entender/entendido/entendimento (Dt 1.13;4.6; 1Sm 3.8; 2Sm 12.19; 1Rs 3.12;1Cr 15.22; 27.32; 2Cr 26.5; Ed 8.16; Ne 8.2,3,8,12; 10.28; Jó 6.24;13.1; 15.9; 23.5; 26.14; 28.23; 32.8,9; 42.3); Fixar no sentido de pensar detidamente (Jó 31.1); Inteligência (Dn 1.17); Mestre (no sentido de expert) (1Cr 25.7,8); Penetrar (com o sentido de discernir) (1Cr 28.9; Sl 139.2); Perceber (Jó 9.11;14.21; 23.8); Perito (Is 3.3); Procurar (Sl 37.10); Prudentemente (2Cr 11.23); Reparar (1Rs 3.21); Revistar (procurar atentamente) (Ed 8.15); Saber/Sabedoria (Ne 13.7; Pv 14.33); “Sisudo” em palavras (1Sm 16.18); Superintender (por ter maior conhecimento) (2Cr 34.12). A LXX geralmente emprega a palavra Suni/hmi para traduzir o verbo hebraico. Suni/hmi envolve a ideia de reunir as coisas, analisá-las, tentando chegar a uma conclusão através de uma conexão das partes. (*Mt 13.13,14,15,19,23, 51; 15.10; 16.12; 17.13; Mc 4.12; 6.52; 7.14; 8.17,21; Lc 2.50; 8.10; 18.34; 24.45; At 7.25 (duas vezes); 28.26,27; Rm 3.11; 15.21; 2Co 10.12; Ef 5.17). Paulo instrui aos efésios: “….Vede prudentemente como andais, não como néscios, e, sim, como sábios, remindo o tempo, porque os dias são maus. Por esta razão não vos torneis insensatos, mas procurai compreender (Suni/hmi) qual a vontade do Senhor” (Ef 5.15-17).

[15]Louis Goldberg, Bîn: In: Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 172.

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.