Salmo 32: A Misericórdia que nos assiste – (parte 29)

Os aspectos da instrução de Deus a partir do termo hebraico (parte A)

Vimos que o objetivo de Deus para nós é que diferentemente do cavalo e da mula, tenhamos entendimento, discernimento em nosso pensar e agir. No Salmo 32.8 Davi emprega três palavras para falar de como Deus nos ensina. Ou seja, Deus nos instrui para que tenhamos o discernimento ao qual Ele vai se referir no verso 9, Analisemos isso:

 

Deus nos instrui

 

                        “Instruir-te-ei (sâkal)[1]  e te ensinarei o caminho que deves seguir; e, sob as minhas vistas, te darei conselho” (Sl 32.8).

 

A palavra aqui traduzida por “instrução”, é traduzida também por “entendimento” (Gn 3.6; Sl 14.2; 53.2; 2Cr 30.22[2]); “inteligência” (Jr 3.15); “atentar” (Sl 106.7); “prudência” (1Sm 18.5; Sl 2.10; 94.8; 111.10; Is 52.13); “êxito” (1Sm 18.14,15,30; 2Rs 18.7); “discernimento” (Sl 36.3); acudir (Sl 41.1).

 

A “Instrução” se refere “à ação de, com a inteligência, tomar conhecimento das causas. (…) Designa o processo de pensar como uma disposição complexa de pensamentos que resultam numa abordagem sábia e bastante prática do bom senso. Outra consequência é a ênfase no ser bem-sucedido”, interpreta Goldberg.[3]

 

Analisemos alguns aspectos da instrução de Deus a partir do termo hebraico.

 

                  a) A fonte da instrução está em Deus

 

            1) O modelo desta instrução viva temos de forma perfeita em Jesus Cristo. Por intermédio de Isaías Deus fala que o Messias que viria mais de 700 anos depois dessas palavras, agiria com esse discernimento: “Eis que o meu Servo procederá com prudência (śâkal); será exaltado e elevado e será mui sublime” (Is 52.13).

 

2) É Deus mesmo quem nos instrui. No entanto, curiosamente, nossos primeiros Pais que tinham a presença contínua de Deus com eles, rejeitaram a instrução divina, preferindo a sabedoria que supostamente viria da árvore no Jardim do Éden.

 

Narra Moisés: “Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos olhos e árvore desejável para dar entendimento (sâkal), tomou-lhe do fruto e comeu e deu também ao marido, e ele comeu” (Gn 3.6).

 

Assim consumou-se o pecado de Adão e Eva. Eles desejavam o sucesso por seus próprios meios, mas, conheceram o fracasso por serem guiados simplesmente por suas sensações em oposição à ordem divina.

 

O entendimento proposto por Deus nunca pode começar por um ato de falta de entendimento que se concretize em desobediência à sua Palavra.  A fé brota da Palavra, não de nosso pensamento ou sensações.

 

O entendimento deve começar pela obediência aos seus preceitos e, ele amadurece no processo de aprendizado da obediência.

 

Em outras palavras, aprendendo a obedecer obedecendo. E, enquanto obedecemos a Deus, vamos nos afeiçoando à sua instrução e experimentando os seus frutos em nossa vida.

 

Temos o exemplo perfeito em Cristo que, como registra Hebreus, “embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu” (Hb 5.8).[4] Portanto, adquiro maior conhecimento de Deus e de sua Palavra quando, ainda que não entenda perfeitamente em toda a sua extensão e intensidade, sigo as suas instruções e me mantenho atento aos seus ensinamentos me desviando de caminhos que são opostos ao que Deus claramente nos dá a conhecer.

 

Calvino conclui corretamente que, “a fé, quando é conduzida à obediência a Deus, mantém nossas mentes fixas em sua palavra”.[5]

 

A atitude de Adão e Eva, diferentemente, revelou falta de entendimento que se agravaria na concretização consumada deste comportamento carente de fé em Deus. Esse quadro de desobediência só seria revertido definitivamente por meio da obediência perfeita de Cristo, nosso Senhor.[6]

 

Aqui temos também outra lição preciosa para nós que muitas vezes tendemos a trocar a instrução de Deus por outra, estranha à sua Palavra. Esta é uma tendência normal do homem pecador. Portanto, todos nós sem exceção estamos, ainda que por vezes de modo sutil, dispostos a substituir o Criador pela criatura (Rm 1.25),[7] criando e cultuando a deuses afeitos aos nossos desejos e circunstâncias.

 

3) Deus mesmo diz que daria líderes ao reino de Judá que os conduziria com inteligência: “Dar-vos-ei pastores[8] segundo o meu coração, que vos apascentem com conhecimento e com inteligência (sâkal) (Jr 3.15).

 

4) Por outro lado, ainda por intermédio de Jeremias sabemos que o fracasso de Judá estava no fato dos príncipes (pastores) se desviarem da instrução do Senhor: “Porque os pastores se tornaram estúpidos e não buscaram ao SENHOR; por isso, não prosperaram (sâkal), e todos os seus rebanhos se acham dispersos” (Jr 10.21).[9] A genuína prosperidade está associada ao agir com discernimento e inteligência. Essa inteligência é verdadeira quando decorre da obediência a Deus e à sua Palavra.

 

5) Os judeus no deserto erraram justamente por não atentarem para a instrução de Deus: “Nossos pais, no Egito, não atentaram (sâkal) às tuas maravilhas; não se lembraram da multidão das tuas misericórdias (hesed) e foram rebeldes junto ao mar, o mar Vermelho” (Sl 106.7).

 

[1]Vejam-se: William Gesenius, Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament, 3. ed. Michigan: WM. Eerdmans Publishing Co. 1978, 789-790; Louis Goldberg, Sakal: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1478-1480; Robert B. Girdlestone, Synonyms of the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (1897), Reprinted, 1981, p. 74, 224-225.

[2] Neste texto aparece tanto o verbo (śâkal) como o substantivo sekel, evidenciando o profundo conhecimento que os levitas tinham do serviço do Senhor: “Ezequias falou ao coração de todos os levitas que revelavam (sekel) bom entendimento (śâkal) no serviço do SENHOR; e comeram, por sete dias, as ofertas da festa, trouxeram ofertas pacíficas e renderam graças ao SENHOR, Deus de seus pais” (2Cr 30.22).

[3]Louis Goldberg, Sakal: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p 1478.

[4]“Se desejamos que a obediência de Cristo nos seja proveitosa, então devemos imita-la” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.9), p. 138).

[5]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Parakletos, 1999, v. 2, (Sl 38.10), p. 184.

[6]“Ele [Jesus Cristo] tornou-se o Autor de nossa salvação, visto que se fez justo aos olhos de Deus, quando remediou a desobediência de Adão através de um ato contrário de obediência” (João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 5.9), p. 137-138).

[7]20Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; 21porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. 22Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos 23 e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis. 24 Por isso, Deus entregou tais homens à imundícia, pelas concupiscências de seu próprio coração, para desonrarem o seu corpo entre si; 25pois eles mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a criatura em lugar do Criador, o qual é bendito eternamente. Amém!” (Rm 1.20-25).

[8] Na Antiguidade o nome pastor é empregado de forma literal e figurada. Esta metáfora é bastante usada para sacerdotes, príncipes e reis no Antigo Testamento, por vezes, indicando a sua infidelidade (2Sm 5.2; Jr 3.15; 23.1-4; 25.32-38; Ez 34.1-9; Zc 11.17; 13.7). A metáfora era associada ao governante como aquele que deve cuidar, guiar e proteger os que estão sob o seu comando. Tal utilização não se restringia à Palestina.

Conforme atesta Homero, esse é um emprego comum também entre os gregos, que por vezes se refere aos líderes como “pastor do povo”:

“Pois já eu com homens mais valentes que vós me dei — e nunca esses me desconsideraram. De resto nunca homens assim eu alguma vez verei: homens como Pirítoo e Driante, pastor do povo; Ceneu e Exádio e o divino Polifemo” (Homero, Ilíada, São Paulo: Companhia das Letras (Penguin), [s.d.]. I.260-264).

“Por seu lado se levantaram e obedeceram ao pastor do povo os reis detentores de cetro; e por seu lado se apressava o povo” (II.85-86).

“Por seu lado se levantaram e obedeceram ao pastor do povo os reis detentores de cetro; e por seu lado se apressava o povo” (II.104-105).

“Assim falou Tersites, insultando Agamêmnon, pastor do povo” (II.243)

“Mas ele encontrava-se junto das naus recurvas, preparadas para o alto-mar, encolerizado contra Agamêmnon, pastor do povo, filho de Atreu” (II. 771-773).

[9] O sentido de prosperar aparece também de forma positiva em Jr 23.5 (ARA: “agirá sabiamente”). King James: “prosper”. No entanto, a tradução de ARA parece ser a mais correta (Ver: Robert B. Girdlestone, Synonyms of the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (1897), Reprinted, 1981, p. 224).

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.