Senhor e Rei que sustenta a criação

A ordem na Criação e a ciência moderna

No Salmo 19 o salmista escreve:

 

2Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela conhecimento a outra noite.

3 Não há linguagem, nem há palavras, e deles não se ouve nenhum som;

4 no entanto, por toda a terra se faz ouvir a sua voz,

e as suas palavras, até aos confins do mundo. Aí, pôs uma tenda para o sol,

5 o qual, como noivo que sai dos seus aposentos, se regozija como herói, a percorrer o seu caminho.

6 Principia numa extremidade dos céus, e até à outra vai o seu percurso;

e nada refoge ao seu calor. (Sl 19.2-6).

 

O salmista ainda que não saiba explicar a ordem da Criação, sabe que o Deus Criador, o majestoso Senhor estabeleceu uma ordem que se sucede porque foi assim que Ele a fez e preserva continuamente. Deste modo o escritor sagrado pode falar da sucessão de dia e dia; noite e noite (v. 2) e o sol que, percebido fenomenologicamente, percorre um caminho pré-estabelecido de uma extremidade a outra do céu mantendo o seu calor: há um testemunho constante e permanente (vs. 4-6).[1]

A compreensão cristã de ordem na criação foi de fundamental importância para o desenvolvimento da ciência. Como sabemos, os pressupostos dos cientistas são de grande relevância na elaboração científica. Tentar negar a existência de pressupostos em nome de uma suposta “neutralidade” seria uma postura pueril e inútil.[2]

Schaeffer (1912-1984), por exemplo, nos chama a atenção para o fato de que “a ciência moderna em seus primórdios foi o produto daqueles que viveram no consenso e cenário do cristianismo”.[3] À frente, acrescenta: “A mentalidade bíblica é que deu origem à ciência”.[4]

Alhures, Schaeffer seguindo Alfred Nort Whitehead (1861-1947), diz: “A ciência moderna surgiu porque estava cercada por uma estrutura de referências cristãs”.[5] Do mesmo modo Plantinga: “A moderna ciência empírica ocidental se originou e floresceu no seio do teísmo e não surgiu em nenhum outro lugar do planeta”.[6]De fato, independentemente da fé professada pelo cientista, a sua formação, consciente ou não, era cristã. As suas pressuposições teístas – que obviamente orientavam as suas pesquisas – “já vinham no leite materno”.[7] O pressuposto da criação divina foi um incremento fundamental à ciência moderna.[8] Hooykaas (1906-1994) conclui o seu brilhante livro usando uma metáfora: “Podemos dizer (…) que, embora os ingredientes corporais da ciência possam ter sido gregos, suas vitaminas e hormônios foram bíblicos”.[9]

Entre os Puritanos, o estudo científico, juntamente com o teológico e literário era amplamente estimulado. “Os Puritanos abraçaram o estudo das artes tão completamente como o da ciência”, informa Ryken.[10]

McGrath em suas abalizadas pesquisas, afirmou que: “Em anos recentes, surgiu um crescente corpo de obras acadêmicas sustentando que a contribuição decisiva para o aparecimento das ciências naturais não veio do cristianismo em geral, mas do protestantismo, em particular”.[11]

O fato é que o princípio cristão de coerência da realidade resultante de sua compreensão de que toda ela parte de um Deus infinito e pessoal que não se confunde com a criação e, que se revela, trazia como pressuposto a busca de compreensão dos fenômenos naturais visto que o mundo é possível de compreensibilidade. Estes elementos contribuíram para a busca de entendimento e sistematização dos fenômenos naturais. “A ciência moderna não poderia ter surgido sem a Bíblia”, conclui Veith Jr.[12]

O que se depreende, é que a ciência moderna, que teve a sua gênese no século XVII em “toda a Europa”,[13] não estava em princípio dissociada da fé cristã.

Kuyper resume isso:

 

Somente quando há fé na conexão orgânica do Universo, haverá também a possibilidade para a ciência subir da investigação empírica dos fenômenos especiais para o geral, e do geral para a lei que governa acima dele, e desta lei para o princípio que domina sobre tudo.[14]

 

Todos os impérios estão sob o seu poder

Assim, não há poder nesse mundo que não esteja sob o controle de Deus. Todos os reinos e impérios estão sob à preservação e domínio de Deus: “O SENHOR frustra os desígnios (etsah) das nações e anula os intentos (machashabah) dos povos” (Sl 33.10). Esse é o nosso Pai.

Algumas aplicações sobre o Deus criador e preservador

  1. Não há vida fora e à revelia de Deus. Ele nos mantém em bondade e amor. Sejamos-lhe gratos. A nossa obediência é a mais fiel expressão de adoração.
  2. Não vivemos em um mundo com leis mecânicas inflexíveis. As leis são expressões da forma ordinária de Deus preservar e dirigir a criação. Confiemos em Deus. Ele é o Senhor de toda a realidade.
  3. O nosso Senhor não dorme nem cochila. Ele tem sempre sob o seu cuidado a criação e, em especial a sua Igreja. Não há força capaz de nos atingir sem a permissão e controle de Deus (Sl 121.1-8).
  4. Precisamos de estudantes que levem a sério seus estudos tendo como ponto de partida a existência de Deus e o seu cuidado com a criação. Somente assim poderemos ter uma ciência integral, considerando a exuberância da criação, mas, sabendo que há um Deus que criou e preserva todas as coisas.
  5. Disposição para trabalhar. A certeza do cuidado de Deus não pode servir de pretexto para as pessoas se acomodarem em seus trabalhos – exercendo a sua função sem dedicação, responsabilidade e criatividade – contando de forma irreverente e sacrílega com a “providência de Deus”; antes, implica o desejo de trabalhar, usando os recursos que Deus nos tem concedido, rogando, ao mesmo tempo, a bênção de Deus para o nosso trabalho.
  6. Humildade. Mesmo trabalhando arduamente, sabemos que é Deus quem nos dá o pão. É Ele quem provê a nossa subsistência. É o Senhor quem nos propicia, de forma muitas vezes imperceptível, as condições para que exerçamos os nossos talentos, ou, em outras circunstâncias, Ele inclina o coração de outras pessoas para nos socorrer nos momentos de maior carência. O nosso sustento, seja de que modo for, vem do Senhor, a quem oramos de forma consciente: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje”.

Salomão, o rei mais sábio e rico de toda a história de Israel, dá o seu testemunho:

 

Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam;

se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela.

Inútil vos será levantar de madrugada, repousar tarde, comer o pão que penosamente granjeastes;

aos seus amados ele o dá enquanto dormem. (Sl 127.1-2).

 

À arrogante igreja de Corinto, Paulo escreve: “Pois quem é que te faz sobressair? e que tens tu que não tenhas recebido? e, se o recebestes, por que te vanglorias, como se o não tivesses recebido?” (1Co 4.7).

Tiago, por sua vez, nos lembra de que “toda boa dádiva e todo dom perfeito é lá do alto, descendo do Pai das luzes” (Tg 1.17).

Assim, a nossa atitude deve ser de humildade diante de Deus e do nosso próximo, visto que tudo que temos e somos provêm da misericórdia de Deus (1Co 15.10; 2Co 3.5).

Esse Senhor e Rei que preserva e mantém a criação, é o nosso Pastor que cuida pessoal e amorosamente de nós. Ele supre as nossas necessidades, muitas delas nem ainda percebidas. De fato, sendo assim, nada nos faltará.

 

Clique AQUI para ver os demais artigos da série!
Clique AQUI para conhecer os excelentes livros de Hermisten Maia pela Editora Fiel.


[1] “O texto é claramente metafórico, e não mitológico: o sol não é uma divindade nem um espírito, mas é simplesmente comparado a alguém que mora em uma tenda. A literatura de Isaías também compara os céus a uma tenda (Is 40.22), uma vez mais enfatizando o poder de Deus, capaz de estender os céus como cortina” (Anthony Tomasino, Ohel: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 293).

[2]Veja-se: Hendrik van Riessen, Enfoque Cristiano de la Ciencia, p. 19ss; 53,54,58. A “neutralidade” é impossível tal qual a “objetividade” completa, no entanto, deve ser buscada. Gilberto Freyre expressou bem isto, ao dizer: “A perfeição objetiva nas Ciências do homem ou nos Estudos Sociais talvez não exista. Mas o afã de objetividade pode existir. É a marca do historiador intelectualmente honesto. E sua ausência, o sinal do intelectualismo desonesto” (Gilberto Freyre, na Apresentação da obra de Davi Gueiros Vieira, O Protestantismo, A Maçonaria e a Questão Religiosa no Brasil, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 9).  “Até cientistas fazem suposições epistemológicas, metafísicas e éticas importantes. Eles assumem, por exemplo, que o conhecimento é possível e que a experiência sensorial é confiável (epistemologia), que o universo é regular (metafísica) e que os cientistas devem ser honestos (ética). Sem essas suposições, que os cientistas não podem verificar dentro dos limites de sua metodologia, a investigação científica seria logo arruinada” (Ronald H.  Nash, Cosmovisões em Conflito: escolhendo o Cristianismo em um mundo de ideias,  Brasília, DF.: Monergismo, 2012, p. 33). “Não há algo que possa ser chamado de método epistemológico neutro. Sempre pressupomos certa visão de realidade antes de perguntar como investigá-la” (Michael Horton, Doutrinas da fé cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2016, p. 53).

[3]Francis A. Schaeffer, A morte da razão, São Paulo: ABU; FIEL, 1974, p. 29. Um dos grandes cientistas do século XX, W. Heisenberg (1901-1976), atesta a ligação da física moderna com Bacon, Galileu e Kepler: “A física moderna não é mais do que um elo na longa cadeia de acontecimentos que se iniciaram com a obra de Bacon, Galileu e Kepler e das aplicações práticas das ciências da natureza nos séculos XVII e XVIII” (Werner Heisenberg, Páginas de reflexão e autorreflexão, Lisboa: Gradiva, 1990, p. 52). “O trabalho científico do presente século seguiu essencialmente o método descoberto e desenvolvido por Copérnico, Galileu e seus sucessores nos séculos XVI e XVII” (Werner Heisenberg, Páginas de reflexão e autorreflexão, Lisboa: Gradiva, 1990, p. 80-81).

[4] Francis A. Schaeffer, A morte da razão, São Paulo: ABU; FIEL, 1974, p. 31. Trata desse assunto mais detalhadamente em alguns livros e artigos. Veja-se: Hermisten M.P. Costa, Introdução à cosmovisão Reformada: um desafio a se viver responsavelmente a fé professada, Goiânia, GO.: Cruz, 2017, p. 376-390.

[5]F. A. Schaeffer, A Igreja no Final do Século XX, 2. ed. (revista), Brasília, DF., Sião, 1988, p. 12. Veja-se: F.A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem: Uma Perspectiva Cristã da Ecologia, 2. ed. Rio de Janeiro: JUERP., 1976, p. 51.

[6] Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?  São Paulo: Vida Nova, 2018, p. 237. À frente continua:Foi a Europa cristã que abrigou, alimentou e promoveu a ciência moderna. Foi ali, e apenas ali, que ela surgiu. Todos os grandes nomes do início da ciência moderna (…) criam firmemente em Deus” (Alvin Plantinga, Ciência, Religião e Naturalismo: onde está o conflito?, p. 238).

[7]James W. Sire, O universo ao lado, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 28.

[8]Veja-se: Eugene M. Klaaren, Religious origins of modern science, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1977.

[9]R. Hooykaas, A religião e o desenvolvimento da ciência moderna, Brasília, DF.: Universidade de Brasília, 1988, p. 196.

[10]Leland Ryken, Santos no mundo, São José dos Campos, SP.: FIEL, 1992, p. 178.

[11]Alister E. McGrath, A revolução Protestante, Brasília, DF.: Editora Palavra, 2012, p. 368. À frente, continua: “As novas estratégias hermenêuticas promovidas pelos primeiros protestantes foram de importância fundamental no estabelecimento das condições que tornaram possível o aparecimento da ciência moderna” (Alister E. MacGrath, A revolução Protestante, p. 369).

[12]Gene Edward Veith, Jr., De todo o teu entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 23. “A ciência moderna surgiu dentro de uma cultura impregnada pela fé cristã. Esse fato histórico, por si só, já é sugestivo. Foi a Europa cristianizada – e nenhum outro lugar – que se tornou o berço da ciência moderna” (Nancy R. Pearcey; Charles B. Thaxton, A alma da ciência, São Paulo: Cultura Cristã, 2005, p. 19). Vejam-se também: Nancy Pearcey, Verdade Absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural, Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2006, p. 39; Hermisten M.P. Costa, O Deus que fala: um estudo do Salmo 19, Goiânia, GO.: Edições Vila Nova, 2016.

[13]Paolo Rossi, O Nascimento da ciência moderna na Europa, Bauru, SP.: EDUSC, 2001, p. 9.

[14]Abraham Kuyper, Calvinismo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002, p. 123. Vejam-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 623ss.; Alister E. MacGrath, A Revolução Protestante, Brasília, DF.: Editora Palavra, 2012, p. 368-369.

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.