Um blog do Ministério Fiel
Senhor e Rei que cuida de nós
No pão de cada dia Deus demonstra seu cuidado
O Pão nosso
O cuidado de Deus sobre nós soa como tão “natural” que na maioria das vezes nem percebemos. Em geral, o que nos parece rotineiro, não mais percebemos, exceto quando, por algum motivo percebemos algo “anormal”, como uma frente fria no verão, uma onda de calor no inverno ou, nós que acordamos costumeiramente tão bem pela manhã, em determinado dia nos sentimos indispostos… Nesses casos, tendemos a pensar sobre a exceção − “a jaca que comi ontem à noite não me fez bem”, “as estações do ano estão mudando”, “o aquecimento global tem bagunçado o nosso ecossistema”, etc. −, sem que antes tivéssemos parado para refletir e agradecer sobre o funcionamento das coisas dentro de uma “rotina” agradável e ou costumeira a nós.
Quando Deus nos fornece ordinariamente o sustento por meio de nosso trabalho, Ele está nos mantendo e preservando. Talvez esse não seja um pensamento natural. No entanto, quando fazemos a Oração do Senhor estamos declarando essa confiança de que tudo provém de Deus.
Está implícita nesta oração a certeza da providência de Deus, bem como a necessidade de estarmos sempre atentos a este fato, certos de que o Senhor cuida de nós dia após dia (Sl 37.25).[1]
Calvino está correto ao dizer: “A maior de todas as misérias é o desconhecimento da providência de Deus; e a suprema bem-aventurança é conhecê-la”.[2] Sem dúvida, ter consciência da origem genealógica de nossa provisão é motivo para nos alegrar e cultuar a Deus, cultivando assim um espírito de gratidão e dependência.
Pão se refere a todas as nossas necessidades
Como é óbvio, o “pão” aqui – que era a “comida principal de Israel”[3] – significa a nossa comida em geral (1Sm 20.34; Lc 15.17), bem como todas as nossas necessidades físicas (Dt 8.3/Mt 4.4/Lc 4.4).[4] Portanto, o “pão” deve ser entendido, neste contexto, como sendo tudo aquilo que é necessário à nossa vida: alimento, saúde, lar, esposa, filhos, bom governo, paz, vestuário, bom relacionamento social, etc.[5]
Aprendemos, de forma decorrente, que Deus não menospreza o nosso corpo. Ele não desconsidera as nossas necessidades vitais. Jesus nos ensina a orar também por elas. Deus cuida do homem inteiro; considera-nos como de fato somos, seres integrais, que têm carências próprias que precisam ser supridas. Portanto, corpo e alma são alvos do cuidado mantenedor de Deus.
Labor e confiança em Deus
O nosso labor cotidiano não nos deve levar a confiar nele, mas, em nosso Senhor. Por outro lado, a confiança no suprimento de Deus não deve nos inspirar à ociosidade e letargia supostamente como atestado de fé mas, que na realidade, consiste em tentação a Deus.
Calvino escreve com discernimento:
Os fiéis, em contrapartida, embora vivam uma vida laboriosa, seguem sua vocação com mentes serenas e tranquilas. Assim, as mãos dos fiéis não são ociosas, mas a sua mente descansa na quietude da fé, como se estivessem dormindo.[6]
No deserto, Deus desafiou o povo a aprender essa lição por meio do maná que lhes era concedido diariamente. Antes mesmo de Deus promulgar o quarto mandamento, Ele ensinou o povo a utilizar bem o seu tempo e a confiar nele.[7] O texto Sagrado registra a instrução divina:
Eis que vos farei chover do céu pão, e o povo sairá, e colherá diariamente a porção para cada dia, para que eu ponha à prova se anda na minha lei ou não. Dar-se-á que, ao sexto dia, prepararão o que colherem, e será dois tantos do que colhem cada dia. (Ex 16.4-5).
Alguns homens, mais “previdentes”, tentaram ir além da ordem divina, guardaram o maná para o dia seguinte. Resultado: deu bicho, apodreceu e fedeu (Êx 16.20).[8] O desafio de Deus era para que o povo, manhã após manhã, renovasse a sua confiança nele, aprendendo a descansar nas suas promessas, sabendo que Deus não falharia, como escreveu Pedro: “Lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, porque ele tem cuidado de vós” (1Pe 5.7). Somos intimados a descansar em Deus, confiantes de que “assim como nosso Pai nos nutriu hoje, ele não falhará amanhã”, ensina Calvino.[9]
O Catecismo de Heidelberg (1563), comenta esta petição em forma de oração:
Digna-te suprir todas as nossas necessidades corporais, a fim de que, por esse motivo reconheçamos que és a única fonte de tudo o que é bom, e que sem tua bênção nem nosso cuidado e trabalho, nem os teus dons podem proporcionar-nos qualquer bem. Consequentemente, que retiremos a nossa confiança de todas as demais criaturas e a ponhamos somente em ti.[10]
Total dependência
Todos os homens por mais ricos que sejam, dependem, entre outras coisas, de solo, água, clima e saúde do corpo. Todos estão sujeitos ao estado geral da economia, juntamente com outros fatores sociais, políticos, etc. Esses fatos indicam o quanto dependemos de Deus, o senhor do universo, daquele que tem o domínio sobre todas as coisas.
“Do alto de tua morada regas os montes; a terra farta-se do fruto de tuas obras. Fazes crescer a relva para os animais e as plantas para o serviço do homem, de sorte que da terra tire o seu pão”, diz o salmista (Sl 104.13-14).
Como vimos, Paulo dá uma interpretação teológica a esta manifestação provedora de Deus, dizendo: “Contudo não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo os vossos corações de fartura e de alegria” (At 14.17).
Dessa maneira, pedir a Deus que nos dê o pão significa recorrer à sua graça, para que nos sustente e não nos deixe perecer. Nesta oração, está implícita a certeza de que a vida pertence a Deus. O cientista pode fazer uma semente sintética, porém, ela não poderá crescer e frutificar, porque não tem vida. E mesmo que conseguisse, a origem da vida ainda estaria em Deus que lhe teria permitido chegar a esse invento condicionado ao poder do Criador.
Tudo que temos e somos provém dele, por isso a ele oramos: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”.
Calvino (1509-1564), comentando essa passagem, escreveu:
Por esta petição nos entregamos a seu cuidado e nos confiamos à sua providência, para que nos dê alimento, sustente e preserve. Pois o Pai boníssimo não desdenha tomar sob sua proteção e guarda nem mesmo nosso corpo, para que a fé nos exercite nessas coisas diminutas, enquanto dele esperamos tudo, inclusive uma simples migalha de pão e uma gota de água.[11]
Outro aspecto precioso, é que a Oração do Pai Nosso nos mostra a importância de orarmos em comunhão, comunitariamente: “Pai nosso”. E, uns pelos outros, cientes de nossas carências e pecaminosidade: “O pão nosso”, “perdoa-nos as nossas dívidas”. De fato, a oração nos aproxima de Deus e, também do nosso próximo, sendo, portanto, um ato fundamental e vital da comunidade cristã.[12]
A Oração do Senhor realça de forma vívida o nosso privilégio (filiação, manutenção, perdão), responsabilidade (santificar o nome de Deus, perdoar, interceder), carências recíprocas (manutenção, perdão, sustento em meio às tentações e proteção do mal) e nossa dimensão escatológica (Vontade divina multidimensional, vinda do Reino). O Pai Nosso é a oração dos filhos; daqueles que conhecem seu Pai e sabem que podem confiar nele: Nada nos faltará!
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[1]“Fui moço e já, agora, sou velho, porém jamais vi o justo desamparado, nem a sua descendência a mendigar o pão” (Sl 37.25).
[2] João Calvino, As Institutas, I.17.11.
[3] F. Merkel, Pão: In: Colin Brown, ed. ger. O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, p. 444.
[4] Veja-se: a brilhante análise de Barth. (Karl Barth, La Oración, Buenos Aires: La Aurora, 1968, p. 68ss.).
[5] “Aqui agora consideramos o pobre cesto de pão, as necessidades de nosso corpo e da vida temporal. É palavra breve e simples, mas também abrange muito. Pois quando mencionas e pedes ‘o pão de cada dia’, pedes tudo o que é necessário para que se tenha e saboreie o pão cotidiano, e, por outro lado, também pedes que seja eliminado tudo o que o impede. Deves, por conseguinte, abrir e dilatar bem os pensamentos, não só até o forno ou a caixa da farinha, mas até o vasto campo e a terra toda que produz e nos traz o pão de cada dia e toda sorte de alimentos. Porque se Deus não o fizesse crescer, não o abençoasse e conservasse no campo, jamais tiraríamos pão do forno e nenhum teríamos para pôr na mesa.
“Para sumariá-lo em breves palavras: esta petição quer abranger quanto pertence a toda esta vida no mundo, porque apenas por isso necessitamos de pão cotidiano. Agora, à vida não pertence apenas que o corpo tenha alimento, vestuário e outras coisas necessárias, mas também que seja de tranquilidade e em diário comércio e trato e toda sorte de atividades; em suma, tudo o que se refere às relações domésticas e vizinhais, ou civis e políticas. Pois onde houver obstáculos quanto a essas duas partes, de forma que relativamente a elas as coisas não andem como deveriam andar, aí também está obstaculizado algo que é necessário à vida, de sorte que não se pode conservá-la por tempo dilatado” (M. Lutero, Catecismo Maior: In: Os Catecismos, São Leopoldo; Porto Alegre, RS.: Concórdia; Sinodal, 1983, §§ 72-73, p. 467). Veja-se também: John Calvin, Commentary on a Harmony of the Evangelists, Matthew, Mark, and Luke, Grand Rapids, Michigan: Baker, (Calvin’s Commentaries, v. 16/1), 1981, p. 323-324.
[6] João Calvino, Salmos, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, v. 4, 2009, (Sl 127.2), p. 379.
[7] Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: Tempo para o Senhor, Tempo de Alegria Nele (II): In: Fides Reformata, São Paulo: Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 4/1 (1999), p. 133-134.
[8]“Eles, porém, não deram ouvidos a Moisés, e alguns deixaram do maná para a manhã seguinte; porém deu bichos e cheirava mal. E Moisés se indignou contra eles” (Êx 16.20).
[9]João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO.: Editora Logos, 2003, Cap. 24, p. 67.
[10] Catecismo de Heidelberg, Pergunta 125. Vejam-se também: Perguntas 26-28.
[11]João Calvino, As Institutas, III.20.44.
[12]Veja-se: Eugene H. Peterson, O pastor contemplativo: voltando à arte do aconselhamento espiritual, Rio de Janeiro: Textus, 2002, p. 17,52-53.