Um blog do Ministério Fiel
Senhor e Rei que preserva a sua criação
Não somente o criador, mas também o sustentador de todas as coisas
Pelo fato de Deus ser o Todo-Poderoso, Ele pode determinar livremente as suas ações, o que de fato faz, manifestando tal poder nos seus decretos.[1]
Deus eternamente tem diante de si uma infinidade de possibilidades de “decisões” sobre todas as coisas. Entretanto, ele “decidiu”[2] fazer do modo como fez por seus próprios motivos, sem que haja a possibilidade de influência de ninguém, nem de anjos, nem de homens, visto que nenhum deles havia sido ainda criado e, também, porque Deus não necessita de conselhos (Is 40.13,14; Rm 11.33-36).[3] O plano de Deus é sempre o melhor, porque foi ele quem sábia, santa, gloriosa e livremente o definiu.
Desse modo, podemos dizer que as coisas que são, existem por decisão de Deus. Somente Ele como Criador que é, pode também preservar todas as coisas. Bavinck (1854-1921), de forma sumária afirma: “Sem Ele, não há existência nem propriedade. Somente Ele tem autoridade absoluta. Sempre e em toda parte Ele decide”.[4]
Deus não somente criou o universo e, portanto, é o seu proprietário, mas, também o sustenta. Deus é o Senhor criador e preservador, conduzindo a realidade de forma teleológica de maneira que os fins estabelecidos por Ele mesmo se consumem por meio das causas secundárias conforme as suas propriedades e, no caso do ser humano, de acordo com o uso de sua livre agência.
Portanto, o Senhor não renunciou a sua criação, antes, a mantém sob o seu cuidado. É no exercício contínuo de seu poder, por exemplo, que as leis que regulam o universo foram criadas e são preservadas.
Desse modo, não há autonomia em nenhuma criatura fora de Deus. Diversos salmos revelam essa compreensão:
Tu, SENHOR, preservas os homens e os animais. (Sl 36.6).
Reina o SENHOR. (…) Firmou o mundo, que não vacila. (Sl 93.1).
Dizei entre as nações: Reina o SENHOR. Ele firmou o mundo para que não se abale e julga os povos com equidade. (Sl 96.10).
No Salmo 65 lemos que Deus mantém a criação (Sl 65.6) e o controle sobre as estações,[5] a natureza e os povos (Sl 65.7). Duas possíveis ameaças para o homem estão sob o controle de Deus: O mar bravio e o tumulto das gentes:
6 que por tua força consolidas os montes, cingido de poder; 7 que aplacas o rugir dos mares, o ruído das suas ondas e o tumulto das gentes. 8 Os que habitam nos confins da terra temem os teus sinais; os que vêm do Oriente e do Ocidente, tu os fazes exultar de júbilo. 9 Tu visitas a terra e a regas; tu a enriqueces copiosamente; os ribeiros de Deus são abundantes de água; preparas o cereal, porque para isso a dispões, 10 regando-lhe os sulcos, aplanando-lhe as leivas. Tu a amoleces com chuviscos e lhe abençoas a produção.11 Coroas o ano da tua bondade; as tuas pegadas destilam fartura, 12 destilam sobre as pastagens do deserto, e de júbilo se revestem os outeiros. 13 Os campos cobrem-se de rebanhos, e os vales vestem-se de espigas; exultam de alegria e cantam. (Sl 65.6-13). (Destaques meus)
Deus cumpriu a sua promessa que fizera no deserto:
A terra que passais a possuir é terra de montes e de vales; da chuva dos céus beberá as águas; terra de que cuida o SENHOR, vosso Deus; os olhos do SENHOR, vosso Deus, estão sobre ela continuamente, desde o princípio até ao fim do ano. (Dt 11.11-12).
Além do poder de Deus manifesto, todos esses sinais são entendidos como manifestações da bondade de Deus (Sl 65.11).
Semelhante interpretação é dada por Paulo pregando em Listra: “Não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo os vossos corações de fartura e de alegria” (At 14.17).
Aqui é oportuna a pergunta: O que entendemos por preservação?
Preservação (conservatio, sustentatio ou preservatio) é a contínua operação do poder de Deus, pela qual Ele sustenta e conserva todas as coisas contingentes – a criação – a fim de que esta possa cumprir ordenadamente o propósito para o qual foi criada.
Preservação é o ato contínuo de Deus de sustentar a existência do que Ele mesmo criou. A própria efemeridade das coisas depende de Deus que as trouxe à existência. Sem a criação e preservação de Deus, nada existe. O que existe e enquanto existe é pelo poder de Deus.
A matéria não é autônoma
Isto significa que a criação de Deus não tem poderes em si mesma para autoexistir. Se assim não fosse, a matéria seria autônoma, qualidade que pertence única e exclusivamente a Deus. Sem a sustentação do Senhor, o universo inteiro, tudo o que existe fora de Deus deixaria de existir.
O escritor de Hebreus registra: Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando (fe/rw) todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas. (Hb 1.3).
A criação cumpre o seu propósito
A ideia de “sustentação” no texto (= “levar”, “carregar”), além de preservação, é a de fazer com que as coisas sigam o seu rumo, o seu propósito determinado por Deus;[6] “encerra a ideia de controle ativo e deliberado da coisa que se carrega de um lugar a outro”, conclui Grudem.[7]
Turretini (1623-1687) interpreta corretamente:
Se foi glorioso para Deus criá-las, não deve ser-lhe inconveniente velar por elas. Não só isso: como as criou, assim ele se obriga a conservá-las e continuamente, uma vez que jamais abandona sua obra, senão que está perpetuamente presente com ela, para que não mergulhe outra vez na nulidade.[8]
O descanso em contentamento: transição da criação para preservação
As Escrituras registram que Deus após ter criado todas as coisas: nos céus e na terra; no sétimo dia, descansou da obra da criação.[9] Deus completou o que iniciou.[10] Temos então, a conclusão de sua obra criativa e, a santificação do sétimo dia (Gn 2.2-3).[11]
A palavra sábado não ocorre na narrativa de Gênesis, contudo, é-nos dito posteriormente em linguagem antropomórfica: “Porque, em seis dias, fez o SENHOR os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso, o SENHOR abençoou o dia de sábado (shãbbath) e o santificou” (Ex 20.11). À frente, isso é reafirmado, dizendo que nesta ocasião Deus “descansou, e tomou alento” (Ex 31.17).
Van Dyke, escreve com precisão: “Deus não descansa da fadiga, mas em contentamento pela realização completada”.[12] De fato, Ele concluiu seus atos criativos que visam adornar o mundo em seu estado primeiro.[13] Aqui temos a transição da criação para a preservação divina.[14]
Deus cria e preserva todas as coisas. Ele continuou preservando e sustentando a sua obra, como sempre o faz.[15] Do mesmo modo, o povo de Deus, juntamente com todos os seus, seguindo o seu Criador, deve tomar alento nesse dia (Ex 23.12)[16] e rememorar o que pôde fazer em suas múltiplas relações durante a semana, reconhecendo em suas conquistas e progressos a graça de Deus.
A criação não pode ser considerada separadamente de Deus
A natureza como a criação em geral não pode ser considerada separadamente de Deus, pois deste modo ou ela tornar-se-ia o centro de todas as coisas (idolatria) ou, sendo menosprezada, tornar-se-ia apenas um detalhe cósmico o qual o homem poderia usar a seu bel-prazer com objetivos egoístas e, portanto, destruidores.
É por isso que é impossível uma genuína ecologia divorciada da teologia bíblica. A questão “ecológica” é, antes de tudo, uma questão teológica.[17]
Sem a preservação de Deus nada mais existiria; tudo teria voltado ao nada, à não-existência. Por isso, podemos afirmar sem nenhum constrangimento, que até mesmo Satanás e os seus anjos, são alvos da bondade mantenedora de Deus. sem a sustentação divina, eles voltariam ao nada, que é a ausência do ser. (Vejam-se: Dt 33.12, 25-28; 1Sm 2.9; Ne 9.6; Jó 33.4/Jó 34.14-15/Sl 104.29; 145.14,15; At 17.28; Cl 1.17; Hb 1.3).
O socorro de Deus para com os seus servos, é uma forma de preservação: Gn 28.15; Ex 14.29,30; Dt 1.30,31; Sl 91.3,4,7,9,10,14;[18] 121.3,4,7,8; Is 40.11; 41.9-15; 43.2; Lc 21.18; 1Co 10.13; 1Pe 3.12; Ap 3.10.[19]
No próximo post, trataremos mais especificamente como Deus cuida de nós.
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[1]Veja-se: Confissão de Westminster (1647), Capítulo III.
[2] Reconheço que a palavra decisão não é a melhor, pois, pressupõe a ideia de algo anterior à decisão; no entanto, não disponho de outra melhor. A ideia é que eternamente Deus sempre teve diante de si as escolhas e eternamente as fez livre e soberanamente. (Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 246).
[3]“33Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! 34 Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? 35 Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? 36 Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.33-36).
[4] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 235.
[5]“Cada primavera é como uma visita divina” (F.B. Meyer, Joyas De Los Salmos, 2. ed. Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, v. 1, (Sl 65.9), p. 68). Do mesmo modo Ryken: “Sempre que sentamos para degustar uma boa refeição, estamos sendo servidos pela sua providência” (Philip Ryken, Quando os problemas aparecem, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2018, p. 23).
[6] “Ele sustenta o universo, não como Atlas que suporta um peso morto sobre seus ombros, senão como aquele que leva todas as coisas até a meta prefixada” (F.F. Bruce, La Epistola a los Hebreos, Buenos Aires: Nueva Creacion, 1987, (Hb 1.3), p. 7).
[7] Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, 1999, p. 248. “Sustentar é usado no sentido de cuidar e de conservar toda a criação em seu próprio estado. Ele percebe que tudo se desintegraria instantaneamente se não fosse sustentado por sua munificência” (João Calvino, Exposição de Hebreus, (Hb 1.3), p. 36).
[8]François Turretini, Compêndio de Teologia Apologética, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 627.
[9] Notemos que Deus cessou a obra da criação, não de preservação (Jo 5.17). “O termo em si (descansou) não significa ociosidade, inatividade completa. Significa parar de fazer alguma coisa, ficar livre da mesma. Humanamente falando, isso pode ser dito de Deus em relação à sua obra criadora” (Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: tempo para o Senhor, tempo de alegria nele (II): In: Fides Reformata, Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 4/1 (1999), p. 133). Ver também: Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: tempo para o Senhor, tempo de alegria nele: In: Fides Reformata, Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper, 3/2 (1998), p. 156).
[10]“Deus está enfatizando nesta passagem que, sendo um Deus fiel, Ele completa o que começa” (Gerard Van Groningen, O Sábado no Antigo Testamento: tempo para o Senhor, tempo de alegria nele: In: Fides Reformata, 3/2 (1998), p. 163). Do mesmo modo: Geerhardus Vos, Teologia Bíblica do Antigo e Novo Testamentos, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 174.
[11]Cf. C.F. Keil; F. Delitzsch, Commentary on the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, [s.d.], v. 1, (Gn 2.1-3), p. 68.
[12]Fred Van Dyke, et. al., A Criação Redimida, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 86. Do mesmo modo, Kidner: “É o repouso da realização cumprida, não da inatividade, pois Ele nutre o que cria” (Derek Kidner, Gênesis: introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1979, (Gn 2.1-3), p. 50).
[13]“Deus sustenta o mundo por seu poder, governa-o por sua providência, nutre e propaga todas as criaturas, ele está sempre em atividade. (…) Se Deus apenas afastasse sua mão sequer um pouquinho, todas as coisas pereceriam imediatamente e se dissolveriam em nada. (…) Deus só é corretamente reconhecido como o Criador do céu e terra quando sua perpétua preservação lhe é atribuída” (John Calvin, Commentaries on The First Book of Moses Called Genesis, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, (Calvin Commentarie’s) 1996 (Reprinted), v. 1, (Gn 2.2), p. 103-104). Vejam-se também: João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 2002, v. 3, (Sl 104.29), p. 628-629; St. Agostinho, Comentário ao Gênesis, São Paulo: Paulus, 2005 (Coleção Patrística; 21), IV.12, p. 133-135; Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 604.
[14] “Seu poder não cessou, mesmo no sétimo dia, no governo do céu e da terra e de todas as coisas que criara, pois do contrário em seguida se desfariam. De fato, o poder do Criador e a virtude do Onipotente e do Mantenedor é causa da subsistência de toda a criatura” (St. Agostinho, Comentário ao Gênesis, São Paulo: Paulus, 2005 (Coleção Patrística; 21), IV.12, p. 133).
[15] “Deus não descansou literalmente, Ele simplesmente terminou a sua obra de Criação. Se Ele tivesse descansado, tudo o que Ele havia feito nos primeiros seis dias teria se desintegrado. Deus não se cansa; Ele esteve tão ativo no sétimo dia como estivera nos outros seis – sustentando tudo que Ele havia feito” (John F. MacArthur, Jr., Deus: face a face com sua Majestade, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2013, p. 97).
[16]“Seis dias farás a tua obra, mas, ao sétimo dia, descansarás; para que descanse o teu boi e o teu jumento; e para que tome alento o filho da tua serva e o forasteiro” (Ex 23.12).
[17]Veja-se: Fred van Dyke, et. al. A Criação Redimida, São Paulo: Cultura Cristã, 1999, p. 90ss. Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem, passim. Sobre o panteísmo moderno, ver, em especial, o segundo capítulo, intitulado: “Panteísmo: O Homem é semelhante ao capim”, p. 17ss.
[18] “Neste Salmo (Salmo 91) somos ensinados que Deus vigia sobre a segurança de seu povo e jamais o abandona nos momentos de perigo. São exortados a avançar pelo meio dos perigos na confiança de sua proteção. A verdade inculcada é de uma grande utilidade prática, pois embora muitos falem tanto da providência divina e confessem crer que Deus exerce uma vigilância especial sobre seus próprios filhos, poucos são aqueles que realmente se dispõem a confiar-lhe sua segurança” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 2002, v. 3, (Sl 91), p. 444).
[19] Esses assuntos relacionados à Criação e Preservação, discuto com mais vagar em meu livro, O homem no teatro de Deus: providência, tempo, história e circunstância, Eusébio, CE.: Peregrino, 2019, p. 117-142.