Justo é o Senhor

A justiça é inerente ao conceito de Deus

O nome Yehovah denota o poder livre e soberano e a auto-existência de Deus: Deus existe por si só, não dependendo de ninguém, em toda e qualquer circunstância. O seu poder eterno emana de si mesmo, que é a sua fonte inesgotável. Deus mesmo disse a Moisés: “Eu Sou o que Sou” (Ex 3.14).

A justiça é inerente ao conceito de Deus no Antigo Testamento, bem como ocupa um lugar central em todas as relações humanas. O padrão que deve reger nossas relações é o princípio de justiça estabelecido na Lei de Deus.[1]

Sobre isso escreveu Von Rad (1901-1971):

 

Dentre os conceitos que designam as relações vitais do homem, o conceito de tzedâkâh [justiça] é o mais importante e o mais central de todo o Antigo Testamento. Constitui o critério das relações entre o homem e Deus, dos homens entre si, até nas disputas mais insignificantes, do homem com os animais e do homem com o ambiente natural em que ele se move. O tzedâkâh pode, simplesmente, ser apontada como o valor supremo da vida e o fundamento em que repousa toda a existência ordenada.[2]

Justo em si mesmo

 Deus é justo em sua própria essencialidade, mantendo-se contrário a toda e qualquer violação da sua santidade. A ira de Deus é uma expressão da sua justiça diante do pecado que consiste na quebra de sua Lei revelada.[3]

A Escritura nos ensina que Deus é justo em si mesmo. É absolutamente justo e, por isso mesmo, justo em suas relações. A natureza santa de Deus é a lei, e, é a partir dela que todas as demais leis devem ser avaliadas. O padrão da justiça de Deus é-nos revelado nas Escrituras.[4]

O salmista exaltando a Deus que se revela na natureza e na Palavra, canta: “Os juízos do SENHOR (Yehovah) são verdadeiros e todos igualmente, justos (tsadaq)” (Sl 19.9).

Juízo discernidor

O Senhor é justo em todas as suas expressões. Em seu juízo tem diante de si um conhecimento imediato, abrangente, exaustivo e criterioso de todas as coisas. Ele tem um conhecimento claro e distinto de toda a realidade porque, toda a realidade, em última instância, existe sob o seu poder criador e preservador:

 

4O SENHOR está no seu santo templo; nos céus tem o SENHOR seu trono; os seus olhos estão atentos, as suas pálpebras sondam (bahan) (= examinar, testar provar) os filhos dos homens. 5O SENHOR põe à prova (bahan) ao justo e ao ímpio; mas, ao que ama a violência, a sua alma o abomina. (Sl 11.4-5/Sl 7.10; 17.3; 66.10; 139.23; Pv 17.3).

Deus conhece as coisas como são

Deus conhece as coisas como elas de fato são, porque é Ele quem as preserva. O seu critério de “avaliação” é minucioso, completo e verdadeiro.[5]

A verdade revelada nas Escrituras é a realidade como Deus a percebe. Deus percebe as coisas como são. Somente Deus, e mais ninguém, tem um conhecimento objetivo da realidade. As coisas são como são porque de alguma forma Deus as sustenta.

Deus percebe as coisas como são. Somente Deus, e mais ninguém, tem um conhecimento objetivo da realidade. As coisas são como são porque de alguma forma Deus as sustenta.

Antes de atribuirmos valor à verdade, ela já o tem porque foi Deus quem a criou e lhe confere significado. A verdade é uma expressão de Deus em si mesmo e na Criação. Deus é a verdade, opera por meio da verdade e nos conduz à verdade. A graça de Deus opera pela verdade e, nesta verdade que foi ouvida e compreendida, frutificamos (Cl 1.6).

Nessa certeza, ora o salmista:

8O SENHOR julga os povos; julga-me, SENHOR, segundo a minha retidão e segundo a integridade que há em mim.

9 Cesse a malícia dos ímpios, mas estabelece tu o justo; pois sondas (bahan) (examinar, testar provar) a mente e o coração, ó justo Deus. (Sl 7.8-9).

 

Deve ser dito logo de início que Davi não reivindicava a sua impecabilidade, contudo, considerava-se limpo e, por isso, injustiçado em relação às acusações que lhe faziam (Sl 7.8). Como sabemos, nenhum de nós retrata de forma perfeita a justiça de Deus, portanto, não há um justo sequer (Rm 3.9-12/Sl 14.1-3).[6]

Dificuldade humana em julgar

Uma das difíceis tarefas que enfrentamos é a de julgar. Diariamente, talvez sem perceber, exercemos a nossa capacidade de julgar. Quando, por exemplo, escolhemos a roupa com a qual vamos trabalhar, se vamos levar agasalho ou não, se é melhor fazer determinadas tarefas pela manhã ou deixá-las para mais tarde, ler essas notas ou deixar para depois ou mesmo, fazer outra atividade, etc.

Em certa ocasião, como tinha que ajudar meu filho a fixar alguns armários em sua loja, me vesti mais à vontade ao me dirigir à padaria para tomar o meu café matinal. Antes disso só minha devocional. Enquanto caminhava, começou a chuviscar. Um chuvisco indeciso, é verdade. Contudo, depois de caminhar uns 150 metros, não tive dúvida. Voltei ao Seminário, peguei o guarda-chuva, calcei a bota própria até para neve, e fui feliz tomar o meu café. Fui e voltei sem abrir o guarda-chuva. Julguei mal. A única neve que vi, foi a de espuma do “lava a jato” perto do Seminário.

Paixões interferem em nossos juízos

Contudo, nem todas as nossas escolhas são tão rotineiras como as mencionadas acima. Além de nossas paixões que obstruem a visão mais objetiva da realidade e, consequentemente de nossos juízos, um dos agravantes para nós é que mesmo estando com o desejo puro e honesto de sermos justos, faltam-nos elementos; não temos todas as informações, somos enganados pelas pequenas e, paradoxalmente, intensas impressões que temos; não conseguimos ter uma visão mais ampla da realidade ou mesmo, clara do que temos.

Ilustro: Em certa ocasião (janeiro de 2010) assisti a uma reportagem na qual a Polícia Civil de SP prendeu uma gangue que iludia as pessoas com a possibilidade de ganhar dinheiro localizando a bolinha dentro de uma das três forminhas que o “jogador” manipulava em um tabuleiro improvisado (Na realidade, vi essa prática “desportiva” pela primeira vez no centro de São Paulo em 1985). Em determinado momento, um senhor que fora preso, foi entrevistado e ele disse que era aposentado, estava de passagem indo comprar remédio; aquilo tudo era um engano. Por alguns segundos fiquei solidário com aquele senhor, até que a reportagem exibiu uma gravação que o mostrava durante dias seguidos sendo um dos agentes da gangue. Percebi logo o meu equívoco e como o meu sentimento me enganou. (E olha que eu nem ainda era aposentado!).

Deus nos conhece perfeita e completamente. No seu juízo, discerne o que pode haver de mais oculto em nosso coração. Enfatizamos: Davi não se julgava sem pecado, contudo, inocente das acusações que lhe fizeram. Por isso, pede a Deus que o julgue “segundo a minha retidão e segundo a integridade que há em mim” (Sl 7.8).

Os atributos de Deus se completam em um todo perfeito e harmonioso. Ilustremos: Se o Senhor fosse apenas soberano, misericordioso, amoroso, etc., poderia, em seu julgamento, se tornar injusto pela incapacidade de discernir as particularidades e os princípios envolvidos em cada caso. Nem sempre conseguimos ser justos ainda que pretendamos.

Algumas vezes cometemos injustiças pela nossa precipitação, falta de informações ou, ainda que não faltem tais elementos, podemos ser conduzidos ‒ e como somos, pela nossa passionalidade. Quão difícil é entender a nossa condição de suspeição para decidir determinadas questões. Como é difícil ser justo quando os nossos interesses, ainda que não necessariamente escusos, estão em jogo.[7]

Por outro lado, como é fácil atribuir motivações santas aos nossos interesses e preocupações enquanto as motivações dos outros, aos nossos olhos tão perspicazes, estão sempre mescladas e manchadas daquilo que podem ser, na realidade, um exalar de nossos desejos ocultos. Tendemos a condenar nos outros os desejos que, com frequência, são nossos, mas, que não ousamos admitir. Os nossos juízos sobre os outros podem ser, com facilidade, uma expressão de nossas próprias falhas e valores equivocados e disfarçados.

No entanto, quando falamos do juízo de Deus, podemos dizer como Davi: “Deus é justo juiz” (Sl 7.11).

Como conhecemos a realidade?

Sem pretender ser enfadonho, avancemos um pouco mais em nossa digressão: O modo como conhecemos a realidade?

Tendemos a pensar que o conhecimento que temos é natural, no sentido de que todos percebem como percebemos; por isso, a impressão equivocada, quase um senso comum,  de que a nossa forma de ver, perceber e interpretar a realidade é mais óbvia e, portanto, comum.

Descobrimos a ilusão dessa percepção quando começamos a conversar com pessoas a respeito de temas que nos parecem óbvios. Não precisamos ir muito longe. Basta fazê-lo com nossos filhos. Já de início, para surpresa nossa, descobrimos que a nossa percepção estava equivocada a respeito de termos uma visão comum…

A nossa forma de conhecer é sempre mediata. Conhecemos através de intermediações. Ilustremos:

A nossa miopia proporciona uma imagem embaçada das coisas; a surdez, que é naturalmente progressiva com o passar dos anos, não nos permite identificar determinados sons, por isso podemos fazer uma audiometria para verificar isso.

O nosso paladar apresenta gostos diferentes conforme o que ingerimos antes.

O aroma dos pratos amplamente apreciados pode nos causar enjoo se estivermos com problema de fígado.

Se estivermos com dormência em nossas mãos, certamente teremos dificuldade de identificar a aspereza ou textura do que tocamos.

Conjunção dos órgãos dos sentidos

Por isso é que a conjugação de nossos órgãos dos sentidos nos proporciona uma capacidade maior de compreensão, ainda que limitada.

Por exemplo: É mais compreensível conversar com a pessoa diante de si do que simplesmente por telefone ou Zap.

A nossa visão pode ser confirmada ou não conforme a possibilidade de tocar no objeto. A aparência pode ser contraposta ao aroma. Por isso podemos dizer: “Meu filho come com os olhos”; “a comida está feia, mas, está gostosa”; “o aroma não é agradável, porém, o sabor sim”.

Devemos perceber também que, quando dirigimos, além de nossas mãos e pés para dar direcionamento ao veículo, lemos a realidade com os nossos olhos e nossos ouvidos. A visão é o principal meio nesse processo, porém, a audição nos auxilia em muito, especialmente no que concerne ao que está fora de nosso alcance visual. Alguns carros trazem um sensor que procura nos ajudar a dirigir acendendo uma luz quando há algum objeto estranho no “ponto cego”. Outros trazem ainda, sensores auditivos para reforçar a nossa visão do objeto; por isso, temos sensores dianteiros e traseiros em diversos carros.

Desse modo, a nossa compreensão passa por diversas variáveis entre as quais apenas destaquei as sensoriais. E as mediações das visões que temos ou que nos são dadas pelo meio em que vivemos? Não posso seguir aqui essa linha de argumentação, porém, é oportuna a observação de Sowell:

 

Seria bom poder dizer que poderíamos prescindir completamente de visões e lidar somente com a realidade. Porém essa pode ser a visão mais utópica entre todas. A realidade é muito complexa para ser compreendida por qualquer mente. Visões são como mapas que nos guiam através de um emaranhado de complexidades desconcertantes.[8]

 

Algumas vezes cometemos injustiças pela nossa precipitação, falta de informações ou, ainda que não faltem tais elementos, podemos ser conduzidos ‒ e como somos, pela nossa passionalidade. Quão difícil é entender a nossa condição de suspeição para decidir determinadas questões. Como é difícil ser justo quando os nossos interesses, ainda que não necessariamente escusos, estão em jogo.[9] Por outro lado, como é fácil atribuir motivações santas aos nossos interesses e preocupações enquanto as motivações dos outros, aos nossos olhos tão perspicazes, estão sempre mescladas e manchadas daquilo que pode ser, na realidade, um exalar de nossos desejos ocultos.

Tendemos a condenar nos outros os desejos que, com frequência, são nossos, mas, que não ousamos admitir. Os nossos juízos sobre os outros podem ser, com facilidade, uma expressão de nossas próprias falhas e valores equivocados e disfarçados.

Conforme a cidade na qual o juiz vive, o fato de ser solteiro ou casado, ter filhos ou não, ser muito jovem ou mais maduro, ser um religioso “praticante” ou não, homem ou mulher, considerar o assunto de extrema relevância ou não etc., todos estes elementos podem interferir em sua sentença.

O fato é, que se assim não fosse, como explicar os pareceres tão divergentes tratando da mesma matéria, sob a perspectiva das mesmas leis, por parte dos juízes em várias instâncias e até mesmo do Supremo Tribunal Federal, a mais alta instância do poder judiciário brasileiro?

Os seus padrões, por mais objetivos que sejam refletem aspectos também de sua formação e vivência. Não estamos imunes a estes elementos antropológicos, sociais, culturais, educacionais, geográficos e ideológicos.

Podemos ter um conhecimento adequado da matéria a ser avaliada, contudo, os meus critérios podem se revelar bastante flexíveis conforme aspectos de minha personalidade, interesse e circunstâncias.

No entanto, quando falamos do juízo de Deus, podemos dizer como Davi: “Deus é justo juiz” (Sl 7.11).

Isto significa, entre inúmeras outras coisas, que ninguém pode manipular a Deus ou suborná-lo com orações e oferendas. Ele é santo, soberano e justo.

Nada está oculto diante do Senhor: “O além e o abismo estão descobertos perante o SENHOR; quanto mais o coração (lebh) dos filhos dos homens!” (Pv 15.11).

 

Clique AQUI para ver os demais artigos da série!
Clique AQUI para conhecer os excelentes livros de Hermisten Maia pela Editora Fiel.


[1]“Na Lei de Deus nos é apresentado um padrão perfeito de toda a justiça que pode, com razão, ser chamada de vontade eterna do Senhor. Deus condensou completa e claramente nas duas tábuas tudo o que Ele requer de nós. Na primeira tábua, com uns poucos mandamentos, Ele prescreve qual é o culto agradável à Sua majestade. Na segunda tábua, Ele nos diz quais são os ofícios de caridade devidos ao nosso próximo. Ouçamos a Lei, portanto, e veremos que ensinamentos devemos tirar dele e, similarmente, que frutos devemos colher dela” (João Calvino, Instrução na Fé, Goiânia, GO: Logos Editora, 2003, Cap. 8, p. 21).

[2]Gerhard Von Rad, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: ASTE, 1986 (Reedição), v. 1, p. 353. Veja-se:  A.H. Leitch, Justiça: In: M.C. Tenney, org. ger., Enciclopédia da Bíblia, São Paulo: Cultura Cristã, 2008, v. 3, p. 807.

[3]“Intimamente relacionada com a santidade de Deus está a sua ira, a qual é, de fato, a sua reação santa ao mal” (John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Miami: Vida, 1991, p. 93). “Ira e furor do Senhor não são perturbação da mente e sim força vindicativa, inteiramente justa, pois serve-o submissa toda a criação.  (…) A ira de Deus, portanto, é a comoção da alma, conhecedora da lei de Deus, ao ver o pecador transgredir a mesma lei” (St. Agostinho, Comentário aos Salmos, São Paulo: Paulinas, 1997, (Patrística, 9/1), v. 1, (Sl 2.4), p. 26).

[4]Veja-se Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 77-78.

[5] Do mesmo modo: Jr 11.20; 12.3; 20.12.

[6]9Que se conclui? Temos nós qualquer vantagem? Não, de forma nenhuma; pois já temos demonstrado que todos, tanto judeus como gregos, estão debaixo do pecado; 10como está escrito: Não há justo, nem um sequer, 11não há quem entenda, não há quem busque a Deus; 12todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer” (Rm 3.9-12).

[7] “Não há nada mais difícil do que pronunciar juízo com total imparcialidade, de modo a evitar a demonstração de favoritismo injusto, ou dar margem a suspeitas, ou deixar-se influenciar por notícias desfavoráveis, ou ser excessivamente radical, e em toda causa nada considerar senão a matéria em mãos. Só quando fechamos nossos olhos a considerações pessoais é que podemos pronunciar um juízo equitativo” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 5.21), p. 153).

[8]Thomas Sowell, Conflito de visões: origens ideológicas das lutas políticas, São Paulo, É Realizações, 2012, p. 17.

[9] “Não há nada mais difícil do que pronunciar juízo com total imparcialidade, de modo a evitar a demonstração de favoritismo injusto, ou dar margem a suspeitas, ou deixar-se influenciar por notícias desfavoráveis, ou ser excessivamente radical, e em toda causa nada considerar senão a matéria em mãos. Só quando fechamos nossos olhos a considerações pessoais é que podemos pronunciar um juízo equitativo” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos, 1998, (1Tm 5.21), p. 153).

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.