O Senhor é justo juiz de toda terra

Seu governo é sobre tudo e todos

Juízo universal

Um recurso de retórica muito comum, ainda que eticamente indesejável, é incluir o “nós” onde só se tem certeza do inseguro “eu”, que busca em um discurso abrangente a sustentabilidade qualificativa que não tem em si. O raciocínio é mais ou menos o seguinte: “nós” vale mais do que “eu”, ainda que a essência da narrativa ou/e proposição seja a mesma.

Desse modo, falamos em nome de pessoas que não nos autorizaram a representá-las em nossa fala – se é que endossariam nossa perspectiva − e, também, não temos autoridade para isso, exceto a concedida pelo nosso despropositado e pretensioso eu.

Outra forma ideológica discursiva é a generalização indevida como estratégia para conferir força ao argumento.

Assim, falamos: “Hoje ninguém mais pensa dessa forma”; “Todos sabemos”; “Pesquisas têm demonstrado”; “A ciência já provou”, esse ou aquele pensamento “está totalmente ultrapassado”, etc.

Saindo dessas construções ideológicas, podemos retornar ao terreno sólido das Escrituras.

Senhor que governa

As Escrituras declaram com insistência que Deus é Rei. O fato é que como Deus é o Senhor Criador de todas as coisas (Rei), também governa sobre todo o universo (Reina). Não há aqui generalizações, presunção ou hipérboles. Nada veio à existência de forma independente de Deus e nada subsiste sem a preservação de Deus.

Deste modo, a manifestação do seu juízo será sobre todos os povos. Ninguém será julgado simplesmente pelos padrões da sua cultura;[1] antes a Palavra também é o critério de Deus para julgar a cultura.[2] Aqui não há nenhum tipo de relativismo[3] e subjetivismo.[4] A Lei de Deus permanece extensiva e permanentemente: sobre todos os povos e para sempre.

Boice (1938-2000) resume:

Quando perguntamos o que é certo, o que é moral, respondemos à questão não apelando para algum padrão moral independente, como se pudesse haver um padrão para qualquer coisa separado de Deus, e sim apelando para a vontade e natureza do próprio Deus. O certo é o que Deus é e revela para nós.[5]

 

“O Senhor (Yehovah) julga os povos” (Sl 7.8). Deus julga a todos os povos porque, na realidade, todo o universo, toda a criação, visível e invisível, lhe pertencem e estão sob a sua preservação, cuidado e senhorio. Deus não é indiferente à sua criação. Deus não está ocioso nem inerte.[6]

O juízo de Deus é universal. Ele é independente. O seu juízo não é uma pretensão megalomaníaca; antes, é a manifestação santa e justa de seu governo. Ele é o Senhor.  Por isso, tem autoridade e autonomia para fazê-lo.

Não há nada no mundo que possa presumir autonomia ou independência em relação a Deus. Tudo pertence a Ele.  Deus é o legítimo proprietário de todas as coisas.

Eventos e Providência

A mão poderosa de Deus rege todos os acontecimentos. Deus dirige a história fazendo com que todas as coisas contribuam para o bem do seu povo, da sua Igreja (Rm 8.28). O propósito de Deus é que cada vez mais nos assemelhemos a Cristo.

Lloyd-Jones (1899-1981) interpreta:

Toda nação da terra está sob a mão divina, porque não há poder neste mundo que, em última instância, não seja por Ele controlado. (…) Deus é o Senhor da história. (…) Ele começou o processo histórico, controla-o, e por-lhe-á um fim. Jamais devemos perder de vista este fato decisivo.[7]

 

O salmista inspirado por Deus afirma que Deus “administra (julga) os povos com retidão” (Sl 9.8).

Bavinck escreve de modo esclarecedor e confortador:

 A doutrina da providência não é um sistema filosófico, mas uma confissão de fé, a confissão de que, apesar das aparências, nem Satanás, nem  o ser humano, nem qualquer outra criatura, mas somente Deus – mediante seu poder Todo-Poderoso e presente em toda parte – preserva e governa todas as coisas. Essa confissão pode nos salvar tanto de um otimismo superficial que nega os mistérios da vida quanto de um pessimismo arrogante que se desespera deste mundo e do destino humano.[8]

 

 Ele tem o controle de todas as coisas. É o Senhor não só de Israel, mas, também, de todos os povos. E como não poderia deixar de ser, o controle universal de Deus é com retidão. Isso indica que um dos aspectos de sua soberania ligado diretamente a nós, é o seu soberano e bondoso governo sobre a história.

O juízo de Deus envolve todas as esferas, tanto na forma de amplitude (extensividade) como de intensidade (profundidade). (Sl 130).

“Como grande Rei, o Senhor serve como o tribunal de apelação em questões civis para todos os oprimidos, isto, não somente para os oprimidos de Israel”, interpreta Bosma.[9]

Nada lhe é estranho ou indiferente. O sofrimento de seu povo não lhe passa desapercebido ou alheio ao seu santo controle.

Nessa certeza o salmista se conforta: “Pois o necessitado não será para sempre esquecido, e a esperança dos aflitos não se há de frustrar perpetuamente” (Sl 9.18/Sl 10.12-18).

No alegre e agradecido cântico de Ana, há a declaração do governo de Deus sobre “as extremidades da Terra”: “Os que contendem com o SENHOR são quebrantados; dos céus troveja contra eles. O SENHOR julga (diyn) as extremidades da terra, dá força ao seu rei e exalta o poder do seu ungido” (1Sm 2.10).

Não há problemas de competência e jurisdição

A Palavra enfatiza o domínio de Deus sobre todos os povos; todas as nações da Terra. Por isso, podemos dizer com o salmista: “Ele julga (diyn) entre as nações” (Sl 110.6). O juízo pertence a Ele como Senhor de toda terra: “Ele mesmo julga o mundo” (Sl 9.8).

O Senhor da História conduz a história para o seu glorioso fim: “O Senhor da história será o Juiz do mundo inteiro”, conclui Lloyd-Jones.[10]

Deus exerce ativamente o seu poder sobre o mundo e os homens, dirigindo a História para a realização do seu propósito eterno. O salmista, nessa certeza, louva ao Senhor: “Ele é o SENHOR, nosso Deus; os seus juízos permeiam toda a terra” (Sl 105.7).

Perigo da arrogância epistemológica-teleológica

Contudo, conforme já ilustramos, em alguns momentos, a sucessão dos eventos históricos pode nos deixar perplexos. É muito difícil para nós entender a história,[11] quer no âmbito internacional, como foi o caso de Habacuque, ou mesmo pessoal, como nos parece a situação vivida pelos salmistas (Sl 10,73). Sem falar do perigo de praticarmos uma certa arrogância epistemológica-teleológica que nos induziria a estabelecer precipitadamente nexos, conexões e propósitos entre fenômenos dos quais temos pouco conhecimento além de não termos fundamentação bíblica segura.

Na realidade, talvez ninguém escape dessa tentação em algum  grau e momento de sua vida. Nossas indagações tornam-se mais contundentes diante de situações adversas para as quais não encontramos pistas para a sua explicação.

Observe que não estamos falando simplesmente da macro história; refiro-me até mesmo à dificuldade que por vezes temos de entender a nossa própria história de vida. As adversidades pelas quais passamos, doenças, desemprego, crise financeira, incompreensão, calúnias, crises familiares, etc.

Muitas vezes pensamos que as coisas estão indo mal e, quando imaginamos que chegamos ao fim do poço, elas ainda pioram. Nessas situações tendemos a nos angustiar profundamente.

Nem sempre a nossa fé triunfa em nossas angústias

Com frequência não nos é possível compreender a nossa situação de dor e sofrimento. Mais ainda: nem sempre nos parece possível manter a nossa fé em Deus nas angústias. Não estou dizendo que perdemos a fé. O que percebo é que o difícil é manter a nossa fé subjetivada: crer e viver; comportar-se e responder em consonância com essa fé.

A nossa fé nem sempre triunfa de modo existencial durante as nossas tribulações. É por isso que nos parece fundamental exercitar a nossa teologia de forma existencial durante os embates da vida. A genuína teologia fundamentada nas Escrituras, orientará as nossas orações e nos conduzirá, pelo Espírito, em confiança à Palavra.

Devemos ter a firme convicção de que mesmo administrando a história por meio de homens, Deus continua no controle sobre todos os povos e o faz, com retidão. A sua reta vontade prevalecerá sempre.

Governo reto: o mal sob o governo de Deus

Deus governa por direito com retidão, equidade e de forma suave. Os solavancos na história devem-se à rebeldia do homem que deseja subverter o justo governo de Deus. Daí, muitas vezes, às guerras, fome, pestes, epidemias, exploração e injustiças sociais. O governo de Deus é suave e justo.

Calvino comenta:

Deus se assenta supremo, mesmo quando os ímpios triunfam em seus sucessos, ou quando os justos são tripudiados sob os pés da insolência, e que vem o dia quando arrancará o cálice dos prazeres das mãos de seus inimigos e alegrará o coração de seus amigos, livrando-os de suas mais profundas angústias.[12]

 

Não pensemos que o mal não esteja sob o governo soberano de Deus dentro de seus propósitos eternos.

O mundo não está entregue à própria sorte. Deus o governa. Ainda que não percebamos a todo momento sinais desse governo, podemos descansar seguros, certos de que a esperança do aflito não se há de frustrar para sempre.[13] O para sempre é dentro de uma perspectiva totalmente humana.

Na realidade, pela ótica divina, que é a verdadeira, a esperança do aflito, depositada nas promessas de Deus nunca se frustra. Podemos nos frustrar com os nossos sonhos e anseios, porém, nunca com as promessas de Deus.

Os seus retos e santos juízos permeiam toda a Terra. Nada ficará de fora.

Caráter missionário

Como a realeza de Deus sobre todas as coisas é um fato, há na visão dos salmistas a certeza de que o seu juízo também é sobre toda a criação, adquirindo um caráter temporal e escatológico. O nosso Deus não é de uma cultura, de um povo, das montanhas, das florestas, dos mares ou dos ares, antes é o Rei sobre todas as coisas, visíveis e invisíveis. Como tal, juiz de todas as nações.

Essa certeza era parte integrante do caráter missionário da Igreja mesmo no Antigo Testamento, testifica o salmista: “Reina o SENHOR. Ele firmou o mundo para que não se abale e julga (diyn) os povos com equidade” (Sl 96.10). “Na presença do SENHOR, porque vem, vem julgar a terra; julgará o mundo com justiça e os povos, consoante a sua fidelidade” (Sl 96.13/Sl 98.9).[14]

Comentando o Salmo 96, Calvino sustenta que:

O salmista está exortando o mundo inteiro, e não apenas os israelitas, ao exercício da devoção. Isso não poderia ser efetuado, a menos que o evangelho fosse universalmente difundido como meio de comunicar conhecimento de Deus. (…) O salmista notifica, consequentemente, que o tempo viria quando Deus erigiria seu reino no mundo de uma maneira totalmente imprevista. Ele notifica ainda mais claramente como ele procede, ou, seja: que todas as nações partilhariam do favor divino. Ele convoca a todos a anunciarem sua salvação e, desejando que a celebrassem dia após dia, insinua que ela não era de uma natureza transitória ou evanescente, mas que duraria para sempre.[15]

 

Portanto, esse fato demanda a nossa responsabilidade missional: “… é nosso dever proclamar a bondade de Deus a toda nação”, conclui Calvino.[16]

 

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[1] “No dia em que Deus, por meio de Cristo Jesus, julgar os segredos dos homens, de conformidade com o meu evangelho” (Rm 2.16).

[2] Criticando a acomodação moderna à cultura, Schaeffer (1912-1984) escreveu: “A Bíblia é adaptada à cultura e à sociedade quando, na verdade, deveria julgá-las”  (Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21,  São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 281).“A cultura deve ser constantemente julgada pela Bíblia em vez de a Bíblia ser distorcida para se conformar à cultura ao seu redor” (Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, p. 278).

[3]Para o relativismo ético ou convencionalismo, os conceitos considerados verdadeiros são produtos dos valores de uma época, de uma cultura, de um povo. Assim, toda verdade é relativa às crenças de uma sociedade, época, grupo ou cultura. Deste modo, não existe um código moral universalmente válido, antes, há uma infinidade de códigos com reivindicações semelhantes. A questão, portanto, não é quanto à existência de um código moral, antes, a sua validade universal. Como se pode perceber, o relativismo sempre é contraditório. Como firmar padrões sem premissas que os fundamentem? (Para uma descrição dos tipos de relativismos, vejam-se: David B. Wong, Relativismo Moral: In: Monique Canto-Sperber, org. Dicionário de Ética e Filosofia Moral, São Leopoldo, RS.: Editora Unisinos, 2003, v. 2, p. 490-496; J.P. Moreland; William L. Craig, Filosofia e Cosmovisão Cristã, São Paulo: Vida Nova, 2005, p. 498ss. Uma visão erudita e bem humorada do relativismo cultural mostrando a sua realidade, limites e incompreensões de seus acusadores, encontramos em: Clifford Geertz, Nova Luz Sobre a Antropologia, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 47-67. Para uma avaliação cristã, vejam-se os artigos: Relativismo, Relativismo Cultural e Relativismo Ético. In: Carl Henry, org., Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 507-514; Verdade, natureza da: Norman Geisler, Enciclopédia de Apologética: respostas aos críticos da fé cristã, São Paulo: Editora Vida, 2002, p. 864-867 (especialmente); John Piper, Pense – A Vida da Mente e o Amor de Deus, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2011, p. 133-166.

[4] Para o subjetivismo, a validade da verdade está limitada ao sujeito que conhece e julga. Desta forma, não podemos falar de uma realidade idêntica para todo o ser humano. Toda certeza é pessoal, visto que toda a verdade é subjetiva.

[5]James M. Boice, Fundamentos da Fé Cristã: Um manual de teologia ao alcance de todos,  Rio de Janeiro: Editora Central Gospel, 2011, p. 112.

[6] “Deus nunca está ocioso. Ele nunca está passivamente presente, como mero espectador” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 617). Veja-se: Santo Agostinho, Comentário ao Gênesis, São Paulo: Paulus, 2005 (Coleção Patrística; 21), IV.12, p. 133.

[7] D. Martyn Lloyd Jones, Do temor à fé, Miami: Editora Vida, 1985, p. 21.

[8] Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 631

[9] Carl J. Bosma, Os Salmos: Porta de Entrada para as Nações. Aspectos da base teológica e prática missionária no Livro dos Salmos, São Paulo: Fôlego, 2009, p. 35.

[10]D. M. Lloyd-Jones, Deus o Pai, Deus o Filho, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1997 (Grandes Doutrinas Bíblicas, v. 1), p. 323. Do mesmo modo Stott: “O Deus que é Senhor da história é também o Juiz da história” (John R.W. Stott, A Missão Cristã no Mundo Moderno, Viçosa, MG.: Ultimato, 2010, p. 21).

[11] “A história é ciência do homem e nada do que se refere ao homem é simples. E se uma questão histórica importante nos parece simples, o nosso dever deve ser imediatamente complicá-la, pois, ao vê-la simples, podemos ter a certeza de que a deformamos… Por outras palavras, o papel do historiador não é simplificar o real, é procurar, por trás das aparências da simplicidade, a complexidade das coisas vivas, o corrente, a necessária complexidade da vida” (Lucien Febvre, A Europa: génese de uma Civilização, Lisboa: Teorema, 2001, p. 153).

[12]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 49.1-2), p. 372.

[13] “A fé não deixou de ser confiante. Ela não se baseia em instáveis acasos terrenos, mas no Deus que, apesar de tudo, está no trono. Porém, os golpes terrenos também são reais, e muitas vezes o mundo em que vivemos parece pertencer aos ímpios e maus” (J.A. Motyer, Os Salmos: In: D.A. Carson, et. al., eds. Comentário Bíblico: Vida Nova, São Paulo: Vida Nova, 2009, (Sl 9), p. 746).

[14]“Na presença do SENHOR, porque ele vem julgar a terra; julgará o mundo com justiça e os povos, com equidade” (Sl 98.9).

[15]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 96.1), p. 514-515.

[16]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House Company, 1996 (Reprinted), v. 7, (Is 12.5), p. 403.


Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.