O Senhor do perdão

Um atributo de Deus que muito ressaltamos

Pela graça conhecemos o Deus do perdão! Ele se deu a conhecer fidedigna e adequadamente à nossa compreensão. Aliás, sabemos isso porque Ele mesmo se declara assim de modo compreensivo a nós.

Qual atributo mais ressaltamos em nossas meditações?

Meditar sobre os atributos de Deus é um grande e abençoador privilégio. No entanto, determinados atributos tornam-se subjetivamente mais relevantes para nós em circunstâncias especiais, quer devido ao nosso progresso espiritual, quer, paradoxalmente, ao nosso pecado ou mesmo fraqueza.

Assim, quando nos deparamos com grandes desafios, especialmente, como os servos de Deus no Antigo Testamento, sobressai em nosso coração a certeza do poder de Deus; o Deus da guerra. Quando estamos nós ou alguém de nossa família gravemente enfermo, além da soberania de Deus, clamamos pela sua misericórdia. Ao nos sentirmos continuamente injustiçados, recorremos à justiça de Deus.

Creio que em nossa santificação, sobressai com mais frequência o santo temor diante da majestade gloriosa de Deus. E, assim, tendemos a caminhar em nossa fé sabendo que Deus é tudo isso e muito mais do que possamos pensar.

Um dos atributos de Deus que deve nos acompanhar sempre, é a certeza de que Ele é o Deus perdoador. Ele pode nos perdoar de todos os nossos pecados. Mas, talvez alguém um tanto ingenuamente poderia perguntar: Por que este atributo tende a se sobressair em nossa mente? A resposta é simples. Porque somos pecadores. Temos consciência da necessidade de perdão. Como o ar é essencial à nossa existência física, o perdão é indispensável à nossa vida espiritual.

Nesse particular, Lloyd-Jones (1899-1981) é incisivo: “Se você não compreende que os seus pecados têm que ser perdoados, você não é um cristão”.[1]

Por isso, um alento que perpassa toda a Escritura e, de modo especial nos Salmos, onde temos uma “Anatomia da alma”, é a certeza de que Deus é o Senhor do perdão; é o Deus perdoador.[2]

Quanto maior for a nossa proximidade de Deus, envolvendo um conhecimento de sua pessoa, mais teremos clareza a respeito de nossos pecados e de nossa total incapacidade de nos relacionar em santidade com o Deus santo. Deus é perfeito, nós somos imperfeitos; Ele é santo, nós pecadores; Ele é justo, nós injustos.

Por isso, enquanto tivermos uma ideia vaga da santidade de Deus, do pecado e da maldade intrínseca do coração humano, jamais teremos uma visão adequada do perdão de Deus.

Distância qualitativa entre Deus e nós

Davi, no salmo 25, consciente dessa distância qualitativa e intransponível entre Deus e nós, vai à raiz da questão. O seu problema não consistia num pequeno desvio de comportamento ou apenas em pecados cometidos na sua mocidade. O mal estava abrigado dentro dele; no seu coração. Esta é a realidade de Davi e é a de todos nós: somos essencialmente pecadores.

Ele pecou na mocidade e sabia que, ainda que de forma diferente, continuava pecador, daí suplicar o perdão para todas as suas iniquidades: Por causa do teu nome, SENHOR, perdoa (salach) a minha iniquidade (‘ãwõn), que é grande.(…) Considera as minhas aflições e o meu sofrimento e perdoa (nasa)[3] todos os meus pecados (hatã’â)”[4] (Sl 25.11,18).

Pecado como perversão

Ele se coloca diante de Deus como um iníquo. O sentido da palavra (‘awon) é de perverter, distorcer, envergar algo que é reto, encurvar, entortar.

A principal ideia está associada ao ato consciente, frequente e intencional de fazer o que é errado. Quando se aplica à lei, significa “cometer uma perversão”, “infringir”. Distorcer o caminho certo.

Pecado, transgressão e legitimação

O pecado de nossos primeiros pais desestruturou o aspecto ético da imagem de Deus no homem. O homem se corrompeu e, também, tudo à sua volta. A corrupção foi tão séria e intensa, que o transgredido e pervertido, apresentou o status de normalidade. Quando isso ocorre, se não houver um padrão ou referência diferente, não há saída, já que torna-se impossível enxergar além do que nos domina prazerosamente e é chamado de realidade.

Desse modo, a sua visão e prática tornaram-se tortuosas, desfocalizadas. O gosto pela transgressão passou a caracterizar o homem. Quando pecamos passamos a ter uma visão tortuosa em todas as nossas relações; perdemos a verdadeira dimensão da realidade. Toda a nossa visão a respeito do mundo, da vida e de nós mesmos está distorcida

Mesmo os nossos afetos não passam imunes a isso. Este é o sentido da depravação total.[5]

Ao que parece, a culpa moral é a principal consequência subjetiva deste pecado[6] ainda que não saibamos dar nome a isso e não tenhamos o discernimento claro de seu motivo. No desejo de tentar se livrar desse sentimento, o homem se vale com muito esforço de vários subterfúgios.

É muito natural o homem buscar justificativa para os seus atos iníquos. Há um processo malévolo de racionalização por meio do qual elaboramos teorias por vezes sofisticadas que, pelo menos para nós, justificam os nossos atos.

Como isso nem sempre é suficiente, procuramos também persuadir os outros da integridade e necessidade de nossos atos pecaminosos que, nesse caso, não são apresentados como tais, antes, como necessários, ousados e inteligentes. Pecado, por vezes, recebe o nome de praticidade. O pecador não apenas racionaliza para si o seu pecado; ele deseja conquistar adeptos para a sua visão e prática. Dessa forma, em sua legitimação, desejo que o meu pecado se torne plausível a outras pessoas. Por isso, a constante “explicação” e “justificação” de nossa compreensão e atos.[7]

As nossas racionalizações complementadas por alguns comprimidos podem servir como paliativos durante algum tempo, contudo, não atingem o cerne do problema. Logo, nem de longe têm poder para resolver a questão do pecado e consequentemente da culpa.

Pecado fora de moda

Além disso, a palavra pecado já faz tempo que está fora de moda.[8] Preferimos eufemismos que amenizem o sentido ou, simplesmente, descaracterizem o pecado ou, até mesmo, nos conduza à afirmação de que o chamado pecado é uma virtude. Desse modo, podemos falar como tantos já o fizeram, de “cair para cima”.

Junto a isso, com todo e em geral bem-vindo progresso científico e tecnológico, alguns conceitos são tão bem difundidos em nossa sociedade, que já não os avaliamos, simplesmente os sorvemos como leite materno de uma cultura essencial e sobejamente contaminada desde a sua gravidez pecaminosa no Éden, quando nossos pais desobedeceram a Deus.

Desse modo, cremos por exemplo, que o mal não está em nosso coração, mas, tem causas externas. Assim sendo, devemos tratar de questões externas como se desse modo resolvêssemos todos os nossos problemas: A violência é culpa da sociedade injusta; a gravidez indesejada é pela falta de informação e uma educação sexual mais explícita; a imoralidade é culpa dos meios de comunicação, etc.

Enquanto cultivarmos esses equívocos, vamos lidar com os efeitos e não com as causas. Não podemos nos esquecer de que a sociedade estruturalmente má e os pecados sociais são cometidos pelo homem perfeitamente socializado.

Assim sendo, nos especializamos em paliativos que – como paliativos podem ser importantes −, mas não como soluções definitivas.

Essa é a palavra condenatória de Deus aos sacerdotes e profetas de Israel: “Curam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: Paz, paz; quando não há paz” (Jr 6.14; Jr 8.11).

 

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[1]D.M. Lloyd-Jones, O Supremo propósito de Deus: Exposição sobre Efésios 1.1-23,  São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996, p. 156. Do mesmo modo: Ibidem., p. 227).

[2] Veja-se: Robert B. Chisholm Jr., Perdão e salvação em Isaías 53: In: Darrell L. Bock; Mitch Glaser, O Servo sofredor, São Paulo: Cultura Cristã, 2015, p. 164-165.

[3] A palavra usada para perdão (nasa) tem o sentido de “elevar”, “carregar”, “remover”, ”levar embora”, “remir”, “levantar”, “cobrir”, “livrar”. Este termo que é usado de modo figurado e literal, apresenta de forma metafórica, a ideia de que o pecado cometido foi levantado e carregado (removido) para longe; esquecido. (Gn 18.26; 50.17; Ex 10.17; Jó 11.6; Sl 25.18; 32.1,5; 85.2; Is 2.9; 33.24; 44.21). Para um estudo mais aprofundado do termo hebraico, vejam-se: Victor Hamilton, Ns’: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 3, p. 163-167; Robert B. Girdlestone, Synonyms of the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (1897), Reprinted, 1981, p. 137-138; N.H. Snaith, Forgive, Forgiveness: In: Alan Richardson, ed. A Theological Word Book of the Bible, London: SCM Press, 13. impression, 1975,  p. 85-86.

[4]O pecado (hatã’â) pressupõe a existência de um padrão estabelecido que foi simplesmente desconsiderado. Desse modo, errou-se, ficou aquém o alvo proposto por Deus.

Portanto, pecado consiste no desvio daquilo que é agradável a Deus; distanciar-se do caminho, desviar-se da obediência devida a Deus.

Essa é a principal palavra usada para descrever o sentido do pecado: errar o alvo ou o caminho. (Cf. G. Herbert Livingston, hãtã’: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, [p. 450-453], p. 450).

O pecado (hatã’â), na maioria das ocorrências da palavra (Exceções: Lv 4.2; 5.15; Nm 15.28), é compreendido como uma atitude consciente e, por isso, responsável, que consiste em uma alienação de Deus e uma violação da relação com outros homens. (Veja-se: Alex Luc, Ht’: In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 2, [p. 85-91], p. 87). É um andar errante. Enfatiza-se a ideia de que toda má ação é um fracasso ou seja: deixar de alcançar o objetivo que Deus tem para os seus filhos. (Cf. Robert B. Girdlestone, Synonyms of the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (1897), Reprinted, 1981, p. 76-77).

[5]“Assim como o pecado original se estende por toda a humanidade, ele se estende também por toda a pessoa. Ele exerce influência sobre toda a pessoa, sobre a mente e a vontade, o coração e a consciência, a alma e o corpo, sobre todas as capacidades e poderes de uma pessoa” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 3, p. 123). Veja-se o excelente artigo de MacArthur. (John F. MacArthur, O aconselhamento e a pecaminosidade humana: In: John F. MacArthur, et. al., eds.  Introdução ao aconselhamento bíblico: um guia básico dos princípios e prática do aconselhamento, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 123-141).

[6] Veja-se: Carl Schultz e Bruce K. Waltke, ‘ãwâ: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1087.

[7]Para uma conexão sociológica, vejam-se: Peter L. Berger; Thomas Luckmann, A Construção Social da Realidade, 5. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1983, p. 28 e Peter L. Berger, Rumor de Anjos: A sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural, 2. ed. rev. Petrópolis, RJ.: Vozes, 1997, p. 66-69; Julien Freund, A Sociologia de Max Weber, Rio de Janeiro: Forense, 1980, p. 173.

[8]“O desaparecimento do pecado do nosso vocabulário moral é uma das marcas da Idade Moderna – e da moralidade pós-moderna. Nestes dias, a maioria das pessoas acredita ser imperfeita, com espaços para melhorias – mas não pensam em si mesmas como pecadores necessitados de perdão e de redenção” (Albert Mohler Jr., O Desaparecimento de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 31).

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.