O Senhor que perdoa a transgressão dos rebeldes

Por mais grave que seja a transgressão, sempre haverá perdão

O método de Deus

Deus em sua Palavra utiliza-se de um triplo método para tratar conosco:

1) Realça o nosso pecado a partir da sua santidade, demonstrando que todo pecado é uma afronta a Ele.

2) Demonstra as consequências inerentes ao pecado como resultado do governo de um Deus justo que não é indiferente ao mal.

3) Nos convida ao arrependimento de nossos pecados, confissão e reestruturação do que quebramos, demonstrando o seu prazer em nos perdoar pela graça nos reeducando espiritualmente.

A misericórdia de Deus propicia o perdão. “Quando o pecador se apresenta perante o trono de misericórdia, com sincera confissão, ele encontra a reconciliação divina à sua espera”, exulta Calvino.[1]

A santidade proposta por Deus para seus filhos consiste na harmonia de sua vida e ação com a beleza da santidade eterna de Deus expressa na sua revelação e, perfeitamente, em Jesus Cristo. No entanto, o pecado nos descaracterizou, nos desfigurou como imagem de Deus.

Rebelião contra Deus

Portanto, o grande problema do homem é a sua permanente rebelião contra Deus.[2] Pecado consiste basicamente numa atitude errada para com Deus. “Pecado não é tanto uma expressão do que fazemos quanto uma expressão do nosso relacionamento com Deus”, interpreta Lloyd-Jones.[3]

A Palavra de Deus ao povo de Israel permanece como verdade para todos aqueles que ainda se encontram distantes dele: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados contra mim” (Is 1.2).

Todos, sem exceção, estão nesta situação, até que conheçam, pela fé, salvadoramente a Cristo.

Nem vitimização, nem arrogância

O caminho proposto por Deus é o arrependimento e a confissão. Deus não quer saber de nossas maquiagens e truques espirituais. Deus não é simplesmente de festas e aparências: decotes, brilhos, Peelings, Botox, emoções perpetuadas em closes, e sorrisos fáceis.

Antes, trata com dignidade a nossa indignidade. Trata com santidade e misericórdia o nosso pecado. Deus vai ao cerne da questão, já quase inacessível a nós pelo monte de entulhos que, assimilados pela cultura e manipulados pelo nosso pecado conivente, a sobrepõem.

O fato, portanto, é este: Deus perdoa a todos aqueles que, arrependidos, tristes com o seu pecado, sinceramente o procuram de mãos vazias, sem arrogância ou vitimizações.

Deus mesmo declara: “Eu, eu mesmo, sou o que apago as tuas transgressões (pesha’) por amor de mim” (Is 43.25). “Desfaço as tuas transgressões (pesha’) como a névoa, e os teus pecados como a nuvem; torna-te para mim, porque eu te remi” (Is 44.22).

Deus perdoa a todos aqueles que, arrependidos, tristes com o seu pecado, sinceramente o procuram de mãos vazias, sem arrogância ou vitimizações.

A palavra (pesha’) significa revolta ou recusa a se submeter a uma legítima autoridade (boa ou má); ultrapassando o limite estabelecido; cometer uma fraude. (Ex 22.9; 2Rs 3.7; 8.20; 2Cr 21.8)

Pela ótica do transgressor – que rompe com o poder legítimo –, o que houve foi libertação; uma rebelião que elege um novo senhor que nada mais é do que o nosso ego com as suas inclinações, interesses e desejo de egorreferência. Agora, segundo pensa, assumiu o real controle de sua vida elegendo o seu eu como prioritário em detrimento de qualquer outra relação.

Desse modo, a palavra tem o sentido de rompimento de relacionamento, envolvendo a ideia de abandono de compromissos assumidos; uma quebra intencional de uma norma ou padrão; uma rebelião. Quando se refere a Deus, é uma “afronta ostensiva dos homens à pessoa de Deus”, pontua Luc.[4]

O termo refere-se também à quebra proposital de um pacto e, consequentemente, de uma confiança depositada. É uma subversão intencional e consciente da Lei e do governo de Deus.[5] É como alguém que ergue o punho contra o padrão estabelecido por Deus.[6] É uma provocação aberta, explícita e descarada feita pelo homem a Deus.

A palavra tem um amplo emprego, sendo proveniente da esfera política (2Rs 1.1; 3.5,7; 8.20,22; 2Cr 21.10)[7] englobando o campo jurídico e familiar.

Davi quando poupou a vida de Saul pela primeira vez, mostrou-lhe a orla do seu manto que cortara, dizendo:

 

Olha, pois, meu pai, vê aqui a orla do teu manto na minha mão. No fato de haver eu cortado a orla do teu manto sem te matar, reconhece e vê que não há em mim nem mal nem rebeldia (pesha’), e não pequei contra ti, ainda que andas à caça da minha vida para ma tirares (1Sm 24.11).

 

Rebelião contra Deus

No entanto, o termo se concentra de forma mais intensa na rebelião contra Deus.

Por meio de Isaías, Deus se refere deste modo ao povo de Israel: “Ouvi, ó céus, e dá ouvidos, ó terra, porque o SENHOR é quem fala: Criei filhos e os engrandeci, mas eles estão revoltados (pesha’) contra mim” (Is 1.2).

“O sentido predominante de pesha’ é o de rebelião contra a Lei e a Aliança de Deus, e, por conseguinte, o termo é um substantivo coletivo que denota a totalidade de iniquidades e um relacionamento fraturado”, escreve Livingston (1916-2012).[8]

Esta atitude gera um rompimento entre Deus e o homem. Sem que muitas vezes nos demos conta, a transgressão se constitui em um peso sobre nós. Este é o juízo condenatório de Deus: “A terra cambaleará como um bêbado e balanceará como rede de dormir; a sua transgressão (pesha’) pesa sobre ela, ela cairá e jamais se levantará” (Is 24.20).

Esta é a confissão do povo de Israel: “Porque as nossas transgressões (pesha’) se multiplicam perante ti, e os nossos pecados testificam contra nós; porque as nossas transgressões (pesha’) estão conosco, e conhecemos as nossas iniquidades” (Is 59.12).

Davi, carrega consigo a consciência de ter o seu pecado continuamente presente diante de seus olhos. O sentimento de culpa o corrói: “Pois eu conheço as minhas transgressões (pesha’), e o meu pecado está sempre diante de mim” (Sl 51.3).

A transgressão não é simplesmente um ato isolado. O seu desejo está arraigado no coração. O pecado não está simplesmente aonde vamos – ainda que haja lugares que estimulem mais a combustão pecaminosa –, mas, levamos conosco, para aonde nos dirigimos e nos encontramos.

O próprio Davi reconhece que o desejo de transgredir está no coração do ímpio. Ele alimenta isso no seu coração, no centro vital de sua existência.

A transgressão reflete a falta do temor de Deus: “Há no coração (leb) do ímpio a voz da transgressão (pesha’); não há temor de Deus diante de seus olhos” (Sl 36.1).

Soberba e transgressão

No salmo 19, Davi suplica a Deus: “Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então, serei irrepreensível e ficarei livre de grande transgressão (pesha’) (Sl 19.13).

Há sempre o perigo de nos sentirmos seguros demais, quando nos julgamos autossuficientes; quando supomos poder decidir sozinhos o que vamos fazer sem a orientação de Deus. Obviamente aqui as armadilhas e quedas múltiplas já estão armadas.

A nossa queda se avizinha quando nos julgamos seguros para fazer o que queremos, dando rédeas soltas aos nossos desejos independentemente de Deus e de sua Palavra.

No salmo 51, Davi − escrito após ser confrontado em seu pecado pelo profeta Natã −,  arrependido, confessa que sabe, tem consciência de suas transgressões:

 

Compadece-te de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade (hesed); e, segundo a multidão das tuas misericórdias, apaga as minhas transgressões (pesha’). (…) Pois eu conheço as minhas transgressões (pesha’), e o meu pecado está sempre diante de mim (Sl 51.1,3).

 

O caminho da transgressão é uma loucura que nos faz sofrer: “Os estultos, por causa do seu caminho de transgressão (pesha’) e por causa das suas iniquidades, serão afligidos” (Sl 107.17).

Contudo, quando estamos dominados, enlaçados por um espírito transgressor, não percebemos; antes, vemos sempre ilusoriamente além; um novo passo para a consecução de nossos planos. A transgressão nos enlaça. No exercício desta suposta liberdade prestamos um serviço escravo ao pecado que domina de forma cada vez mais intensa a nossa mente e se manifestará em nossos lábios, nos enlaçando:

 

Pela transgressão (pesha’) dos lábios o mau se enlaça, mas o justo sairá da angústia. (Pv 12.13).

No muito falar não falta transgressão (pesha’), mas o que modera os lábios é prudente. (Pv 10.19).

Na transgressão (pesha’) do homem mau, há laço, mas o justo canta e se regozija. (Pv 29.6).

 

O antídoto contra a transgressão é perseverar no reto caminho do Senhor. Por intermédio de Oséias Deus convoca o povo de Israel ao arrependimento antes que seja tarde demais. Conclui então: “Quem é sábio, que entenda estas coisas; quem é prudente, que as saiba, porque os caminhos do SENHOR são retos, e os justos andarão neles, mas os transgressores (pasha’) neles cairão” (Os 14.9).

O transgressor não sabe andar por caminhos retos; ele gosta da aventura da transgressão, da sinuosidade. O que é reto é uma tentação ao deslize. Como ele carrega dentro de si o desejo pela transgressão, nada que seja justo, reto e puro está imune ao seu desejo de transigir, se rebelar, torcer, contaminar.

Davi suplica: “Livra-me de todas as minhas iniquidades (pesha’); não me faças o opróbrio do insensato” (Sl 39.8).

Na velhice Davi clama pela misericórdia de Deus: “Não te lembres dos meus pecados (hatã’â) da mocidade, nem das minhas transgressões (pesha’). Lembra-te de mim, segundo a tua misericórdia (hesed), por causa da tua bondade, ó SENHOR” (Sl 25.7).

Todas as vezes que conscientemente quebramos a Lei de Deus – desobedecemos a sua Palavra, desconsideramos o seu mandamento −, cometemos transgressão. A rebelião é contra o Senhor que nos instrui por meio de sua Palavra. Nestes casos, o sentimento de culpa é uma manifestação amorosa de Deus para com os seus filhos quando pecam.

Precisamos reconsiderar o nosso caminho, confessar o nosso pecado e suplicar pelo perdão de Deus. Sentimento de culpa, nesses casos, é o sinal da graça. O perdão é a graça plenificada.

O pecado sempre envolve a transgressão de algum mandamento divino. É por isso que todo pecado é primeiramente contra Deus ainda que de forma secundária, envolva o outro. É impossível pecarmos contra nós mesmos, nosso próximo, a natureza e à sociedade em geral, sem pecarmos contra Deus. A nossa ofensa sempre envolve o mandamento de Deus.

Os mandamentos de Deus abrangem toda a realidade e relações. Justamente porque Ele é o Senhor de tudo e, cuida pessoalmente de sua criação, o seu propósito é que a sua imagem refletida no homem se concretize em todas as suas obras.

O pecado consiste na falta de conformidade com a lei de Deus. Por isso a culpa do transgressor.[9] Independentemente das consequências diretas do pecado, ele sempre traz culpa, ainda que o homem dominado por suas paixões tente eliminar esse sintoma que lhe parece misterioso, mas, sabemos, que é resultante do fato de que Deus criou o homem para se relacionar com Ele em santidade.

No entanto, sem diminuir a intensidade da rebelião do homem, o convite do Senhor continua: “Desfaço as tuas transgressões (pesha’) como a névoa, e os teus pecados como a nuvem; torna-te para mim, porque eu te remi” (Is 44.22).

 

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[1]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.5), p. 48.

[2]“O pecado é antes um poder militante diametralmente oposto à vontade divina e seus propósitos” (Gustaf Aulén, A fé cristã, São Paulo: ASTE., 1965, p. 143).

[3]D.M. Lloyd-Jones, O Caminho de Deus, não o nosso, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 25-26.

[4]Alex Luc, Ps‘ In: Willem A. VanGemeren, org., Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, São Paulo: Cultura Cristã, 2011, v. 1, p. 703.

[5]Veja-se: Jay E. Adams, Teologia do Aconselhamento Cristão, Eusébio, CE.: Editora Peregrino, 2016, p. 206-207.

[6]Cf. Bruce K. Waltke; James M. Houston; Erika Moore, Os Salmos como adoração cristã: um comentário histórico, São Paulo: Shedd Publicações, 2015, p. 493.

[7]“Depois da morte de Acabe, revoltou-se ((a$ep) (pesha’) Moabe contra Israel” (2Rs 1.1).

[8] G. Herbert Livingston, Pesha’: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1247.

[9] No Catecismo Maior de Westminster, Perguntas 24 e 25, lemos:

  1. Que é pecado?

Pecado é qualquer falta de conformidade com a lei de Deus, ou a transgressão de qualquer lei por Ele dada como regra, à criatura racional.

Rm 3.23; 1Jo 3.4; Gl 3.10-12.

  1. Em que consiste o pecado desse estado em que o homem caiu?

O pecado desse estado em que o homem caiu consiste na culpa do primeiro pecado de Adão, na falta de retidão na qual este foi criado e na corrupção da sua natureza pela qual se tornou inteiramente indisposto, incapaz e oposto a todo o bem espiritual e inclinado a todo o mal, e isso continuamente: o que geralmente se chama pecado original, do qual precedem todas as transgressões atuais.

Rm 5.12,19 e 5.6, e 3.10-12; Ef 2.3; Rm 8.7-8; Gn 6.1 Tg 1.14-15; Mt 15.19.

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.