O Senhor que remove verdadeiramente a culpa verdadeira

Ele não apenas deixa de lado nossos pecados

Psicologia, autoestima e pregação  

Culpa é um conceito legal e objetivo, resultante de uma condenação pelo fato de ter-se quebrado uma lei ou ordem objetiva.[1] Quem quebra a lei é culpado. Não há genuína culpa sem um padrão, e a sua transgressão. As Escrituras nos ensinam que todos nós como seres responsáveis que somos, tornamo-nos culpados por transgredir  a perfeita lei de Deus (Jo 8.34; Rm 5.12; 6.23; Ef 2.1).[2]

As psicologias − que obviamente, não são más em si −, que invadiram os nossos púlpitos – isso sim é mal em si! –,  em parte pela ausência de pessoas habilitadas para expor as Escrituras com autoridade e integridade, se misturaram com a teologia de tal forma, que conceitos, por vezes, totalmente estranhos à Palavra são difundidos com naturalidade sem que nem ao menos percebamos.

Um dos conceitos propalados nesta psicologização tão popular e, ao mesmo tempo, maléfica, é de que devemos eliminar o sentimento de culpa; vamos à igreja para nos sentir bem.

Outro ensinamento associado a esse, é o da importância de cultivarmos uma elevada autoestima. Por isso, o ensino que ameace ainda que tenuemente o seu superlativo autoconceito, é rejeitado como não edificante, alienante e destruidor. Afinal, participo do culto para sair mais leve e solto, não com tristeza ou pesar, queixa-se de modo frustrante o adepto desse tipo de pensamento.

Sem dúvida, prover recursos que aliviem o sentimento de culpa parecerá sempre bem-vindo, visto que tal sentimento é um incrementador de nossa ansiedade (Pv 28.1).[3]

Calvino denominou essa atitude de orgulho:

 

Desejosos de manter nossa autoestima, levamos muito a sério quando somos desprezados. Essa doença da natureza humana é tão generalizada que cada pessoa deseja que seus vícios agradem a outros. Se alguém nos desaprova por alguma coisa que fazemos ou dizemos, nos sentimos imediatamente ofendidos sem qualquer razão plausível. Que cada um de nós examine a si mesmo, e encontrará essa semente do orgulho em sua mente, até que a mesma seja erradicada pelo Espírito de Deus.[4]

 

Em síntese, devemos mimar a criança que há dentro de nós – o Peter Pan que se nega a amadurecer preferindo cultivar a sua alegria descompromissada[5] –, dizem. Como se a sensação de não termos culpa ou promover um alto conceito de nós mesmos mudasse a realidade do que somos.

Culpa e sentimento de culpa

Enquanto a culpa é objetiva, o sentimento de culpa é subjetivo. É nesta subjetividade que encontramos uma nuance de grande importância. Todos somos culpados mas, nem todos tem o sentimento de culpa. O não sentimento de culpa não nos inocenta.[6]

Por sua vez, nem todo sentimento de culpa é resultado de uma real culpa. Ele pode ser derivado de uma interpretação errada, associada, por exemplo, a usos e costumes aprendidos que não são em si mesmos atos pecaminosos mas, foi assim que você foi educado.[7] Deste modo, quando quebra algum princípio de sua educação, sente-se culpado por um “constrangimento social” (Freud).

Neste caso, o princípio que deve ser aplicado, é examinar biblicamente se o que aprendemos como sendo pecado é de fato pecado. Outro ponto, que Sproul analisa, é a questão da fé e da consciência. Quando agimos sem fé, cometemos pecado porque pecamos contra nossa consciência.[8]

Sproul é bastante contundente:

 

A presença de sentimentos de culpa não indica automaticamente a presença de culpa objetiva com respeito a uma ação específica, mas pode representar a presença da culpa de agir contra a própria consciência. A conclusão é que, toda vez que experimentamos sentimentos de culpa, precisamos parar e perguntar a nós mesmos tão honestamente quanto possível: “Eu transgredi a lei de Deus?”.[9]

 

A culpa psicológica, que pode perdurar pela falsa ideia de pecado ou, pela compreensão equivocada da obra expiatória de Cristo e do completo perdão de Deus, deve ser superada biblicamente.(1Jo 1.9; 3.5; Jo 1.29)[10]

No entanto, a autoestima não irá vencer o genuíno sentimento de culpa resultante de um pecado real. Somente o Evangelho pode nos mostrar o que realmente somos e como podemos nos tornar em Cristo.

Buber (1878-1965), tem um insight muito perspicaz:

 

Se Deus faz essa pergunta [“Onde você está?”], Ele não quer saber algo que ainda não saiba sobre a pessoa; Ele quer provocar alguma coisa nessa pessoa, algo que só pode ser provocado dessa maneira – com a condição de que a pergunta atinja o coração da pessoa, de que a pessoa se permita ser atingida no coração.

 

Adão se esconde para não ter de dar satisfações, para escapar da responsabilidade em relação à própria vida. Dessa maneira, todos os homens se escondem, pois todos são Adão e estão na situação de Adão. Para escapar da responsabilidade por sua vida, a existência é transformada num sistema de esconderijos.[11]

A autoestima não irá vencer o genuíno sentimento de culpa resultante de um pecado real. Somente o Evangelho pode nos mostrar o que realmente somos e como podemos nos tornar em Cristo.

Sentimento de culpa como bênção

É necessário que se diga que o problema humano não é a culpa mas, sim, o pecado. Tendemos a criticar as consequências de nossos atos ignorando que a sequência é decorrente de escolhas nossas. Devemos considerar também, que o sentimento de culpa não é necessariamente resultante do pecado mas, da graça restauradora de Deus que deseja nos conduzir ao arrependimento de nossos pecados.

Por isso, uma das consequências do pecado é a culpa. “Quando Adão e Eva cometeram sua primeira transgressão, a vergonha e a culpa foram sentidas pela primeira vez na história humana”, escreve Sproul (1939-2017).[12] Ele está correto à luz do que escreve Paulo:  “Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável [13] perante Deus” (Rm 3.19).

O pecado não é uma invenção cristã, antes é a realidade do homem após a Queda, quando nossos primeiros Pais desobedeceram a Deus resultando tal ato em vergonha e culpa. 

Culpa e autoestima

MacArthur é cirúrgico:

 

Culpa não conduz à dignidade e nem à autoestima. A sociedade encoraja o pecado, mas não tolera a culpa produzida por ele.[14]

A verdadeira culpa tem somente uma causa: o pecado. Até que o pecado seja tratado, a consciência lutará para acusar. E o pecado – e não a baixa estima – é o que o Evangelho veio derrotar.[15]

As pessoas querem pecar, mas sem culpa….[16]

 

O cristianismo não é uma religião de doença e enfermidade com ênfase mórbida e patológica no pecado. Mesmo sabendo que o cristianismo não é triste nem melancólico, devemos pontuar que as Escrituras evidenciam de forma franca os nossos pecados para que, buscando o perdão, nos alegremos no Senhor da Glória, rico em misericórdia[17] (Sl 16.11; Gl 5.22; Fp 3.1; 4.4; 1Ts 5.16). A alegria do Espírito é resultado de um coração guiado por Ele.

O cristianismo trata essencialmente com doentes e, sincera e misericordiosamente apresenta com clareza, sinceridade e compaixão o seu diagnóstico terminal se permanecer distante de Deus. Porém, ao mesmo tempo, apresenta a cura definitiva na expiação de Cristo Jesus.

A cura em Cristo tem sido intensamente demonstrada ao longo da história. A sua verificação está diante de todos por meio da vida da igreja constituída de pecadores enfermos em seus pecados, mas, que foram curados, restabelecidos em Cristo e caminham, por graça, em direção a Deus.

Portanto, não podemos falar de perdão sem considerarmos o pecado. Aliás, sem consciência de pecado não podemos sequer ter uma dimensão clara do que seja o perdão bíblico.

Mohler Jr., coloca bem a questão:

 

Onde o pecado não é encarado como pecado, a graça não pode ser graça. Que necessidade de expiação poderiam ter homens e mulheres quando lhes é dito que o seu problema mais profundo é algo menos do que aquilo que a Bíblia ensina explicitamente? O ensino fraco sobre o pecado leva à graça barata e não conduz ao evangelho.[18]

 

Jesus Cristo veio salvar os enfermos, não os supostamente sãos: 31 Respondeu-lhes Jesus: Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes.  32 Não vim chamar justos, e sim pecadores, ao arrependimento” (Lc 5.31-32).

Estado terminal

Considerar-nos sãos quando na realidade estamos em um estado terminal, é algo terrivelmente nocivo a todos nós.  O cristianismo não provoca a doença, nem ensina o “desprezo pelo corpo”, tendo “rancor dos enfermos”, como propalava Nietzsche (1844-1900),[19] antes a diagnostica e apresenta o remédio.

Stott é preciso: “Uma consciência culpada será uma grande bênção somente se nos forçar a voltar para casa”.[20]

Por isso, o sentimento de culpa pode ser uma das bênçãos de Deus para que não nos entreguemos totalmente ao pecado e às suas resistentes amarras. “A culpa que sentimos como pecadores é legítima, natural e até mesmo apropriada”, conclui MacArthur.[21]

E quanto ao sentimento de culpa resultante de uma interpretação errada dos fatos e de nossa responsabilidade?

Sem dúvida, essa sensação é terrível porque nos culpamos por algo que, na realidade não praticamos, portanto, não somos culpados. Isso, sem dúvida, nos neutraliza, colocando um peso imenso sobre nossos ombros. À semelhança de Atlas, sentimo-nos condenados a carregar os céus sobre os nossos ombros, nos destruindo em nossa caminhada produtiva de obediência e louvor a Deus.

Para o sentimento de culpa decorrente de uma interpretação equivocada da realidade, da mesma forma, devemos suplicar a Deus que nos liberte desse sentimento e que nos dê uma compreensão adequada da realidade, amparados na obra de Cristo que nos perdoa de todos os nossos pecados, inclusive deste  que, por vezes é decorrente de um julgamento errado a respeito de nossos poderes e por isso, de nossa responsabilidade.

Portanto, esse sentimento pode se constituir no caminho para, por graça, compreendermos que a solução para o nosso problema não está em um simples autoexame, meditações ou técnicas respiratórias, mas no arrependimento sincero e confissão a Deus de nossa culpa.

Algo fundamental para a solução de um problema, é ter uma definição clara e correta sobre ele. Definição é delimitação. A definição, sendo apropriada, nos permite ver o objeto como ele de fato é.[22] A  conceituação de Espinosa (1632-1677) é-nos orientadora: “A verdadeira definição de cada coisa não envolve nem exprime senão a natureza da coisa definida”.[23]

Deus por meio de sua Palavra nos mostra com objetividade o que somos. Deus nos leva a sério bem como o problema do pecado, da culpa e da condenação humana. Ele não nos é indiferente a despeito de nosso sofrimento gerado como consequência de nossa desobediência.

Poythress está correto ao dizer que o “problema fundamental é o problema do pecado e da culpa (…) Somente quando começamos a ver a magnitude do problema é que desistimos de seguir nossos próprios caminhos, fazer nossas próprias regras e seguir nossos próprios desejos”.[24]

Culpa é sintoma: tratemos da causa

Por isso nós não tratamos primariamente da culpa, mas do que gerou a culpa. O sentimento de culpa sendo verdadeiro, no sentido de que de fato somos culpados, é um sintoma importante que indica a necessidade de sermos tratados espiritual e moralmente.

Além disso, a culpa é de certa forma um lembrança espiritual e nostálgica daquilo que fomos. Há uma sensibilidade inerente a nós que aponta para o fato de termos sido criados à imagem de Deus mas, que com a queda, essa imagem desfigurada e caricata, tenta com insistência, destruir esses resquícios do nosso Criador que estão impregnados em nossa memória ontológica.[25]

Com a nossa regeneração espiritual, nossa imagem é restaurada e, com ela recuperamos em Cristo aspectos fundamentais do homem criado. Em Cristo recuperamos as dores benditas de uma consciência iluminada pelo Espírito, mas, que ainda lida com o nosso pecado.

Deus não nos trata com paliativos. Por isso, Ele não simplesmente nos “desculpa” de forma banal e corriqueira. Ele nos perdoa. No perdão de Deus e sua internalização em nossos corações encontramos a solução definitiva para nossa culpa que foi levada por Jesus Cristo sobre a cruz, nos perdoando de todos os pecados. Tudo foi feito pela graça; nada ficou para trás; Ele nos perdoou completa e totalmente.

Portanto, o caminho para a libertação da culpa real, é o arrependimento sincero e a confissão de nossos pecados, reconhecendo a graça de Deus em nossa vida.

A importância dos sintomas

O sentimento de culpa, nestes casos, é graça! É o Espírito indicando de forma convincente que algo está errado; que transgredimos a Palavra de Deus.

Por exemplo, a sensação indesejada de dor, como quando tocamos distraidamente em um ferro quente, propicia um alerta para evitar um mal maior.[26] O painel do carro[27] que com tanta frequência em nosso país acende indicando problemas na “injeção”, é indesejado, porém, passa a ser um sinal importantíssimo até então imperceptível, de que algo está errado. Em geral, para nossa alegria (não é a “injeção”) e tristeza, é o combustível do posto “confiável” com “bandeira”, que não atende às especificações da mistura, já por si só, bastante generosa…. Portanto, a luz vermelha não é o problema. Ela apenas indica que algo está errado.

Mohler escreveu sobre a questão do pecado e de suas consequências:

 

O medo do pecado e de suas consequências leva todos à necessidade da graça de Deus por meio do evangelho de Jesus Cristo. Este é o grande paradoxo da vida cristã. O mundo deseja que fujamos de nossa culpa. A culpa é vista como um inimigo que deve ser morto. Os livros de autoajuda enchem as prateleiras das livrarias porque as pessoas tentam implacavelmente esmagar o sentimento interior de culpa. Para o cristão, porém, a culpa é um presente. Esse sentimento de culpa insaciável e incansável nos leva à única esperança que temos. Os pecadores devem abraçar a culpa infinita em que vivem se quiserem encontrar a graça infinita de Deus. Quando reconhecemos nossa culpa, então, e apenas então, podemos chegar àquela fonte carmesim de esperança, o sangue de Jesus que nos purifica.[28]

 

Portanto, o sentimento de culpa não é o fim, mas, por vezes, é o meio utilizado por Deus para restringir o mal e nos conduzir, no momento próprio, de volta a Ele pela Palavra.[29]

Consciência limpa, significa estar sem pecado?

A nossa consciência, não cauterizada, tem um papel importante nesse processo, de alguma forma nos deixando intranquilos com o nosso pecado (1Tm 4.2/1Co 4.3-5).[30]

Keller (1950-2023), faz uma útil aplicação:

 

O fato de Paulo ter a consciência limpa não faz diferença. Observe com atenção o que ele diz no versículo 4: “Minha consciência está limpa, mas isso não me torna inocente”. A consciência dele pode estar limpa — mas Paulo sabe que consciência limpa não faz dele um homem inocente. Hitler talvez tivesse a consciência limpa, mas isso não significa que ele era inocente.[31]

 

É importante que se diga que a nossa consciência não é infalível nem é padrão de verdade. Ela pode refletir simplesmente aspectos de nossa educação e tradição. A Palavra de Deus também nos liberta de falsas tradições criadas à revelia e contrárias à Palavra. Deste modo, a minha consciência pode estar simplesmente se manifestando por eu agir contra tais tradições e não contra a Palavra. (Rm 14.14, 20-23; 1Co 10.25-29; 1Tm 4.4-5).

Devemos cultivar uma consciência santa – não legalistamente mórbida –, instruída pela  Palavra e, por isso mesmo, sensível aos preceitos de Deus. A purificação e lapidação de nossa consciência deve ser saturada com a Palavra a fim de que ela seja inundada pelos ensinos do Senhor.

Packer escreveu magistralmente sobre isso:

 

Uma consciência educada e sensível é um monitor de Deus. Ela atenta para as qualidades morais do que fazemos ou planejamos fazer, condena a ilegalidade e irresponsabilidade e faz com que nos sintamos culpados, envergonhados e temerosos da futura retribuição que, segundo ela, merecemos quando nos permitimos desafiar seus limites. A estratégia de Satanás é corromper, tornar insensível e, se possível, matar a nossa consciência. O relativismo, materialismo, narcisismo, secularismo e hedonismo do mundo ocidental contemporâneo lhe presta grande ajuda neste sentido. Sua tarefa é ainda mais facilitada pelo modo como as fraquezas morais do mundo foram aceitas na igreja contemporânea.[32]

 

Uma consciência assim educada e preservada, é nossa aliada na prevenção do mal e de suas tentações (Sl 119.11). A Palavra nos ensina que andar em justiça é uma forma preventiva de nos guardar da corrupção do pecado: “A justiça (tsedaqah) guarda (natsar)  (observar,[33] preservar,[34] seguir[35]) ao que anda em integridade (tom),[36] mas a malícia subverte ao pecador” (Pv 13.6).[37]

Quando seguimos a justiça de Deus, estamos amparados nos seus ensinamentos que são perfeitos; não há contradição neles. A Palavra de Deus, dentro dos limites próprios do revelado, é uma expressão perfeita do que Deus é e do que Ele deseja de nós. Desse modo, podemos estar seguros em seus caminhos.

Certamente, uma das formas de nos preservar no caminho da justiça é educar-nos a contentar-nos com o que temos, sem nos deixar fascinar pelo caminho tortuoso, aparentemente fácil e promissor da injustiça: “Melhor é o pouco, havendo justiça (tsedaqah), do que grandes rendimentos com injustiça” (Pv 16.8).

Por sua vez, quando a injustiça é institucionalizada, ela, aparentemente deixa de ser injustiça. Quando os interesses estão acima de princípios, podemos justificar todas as coisas ao nosso alvitre. Quando os fins justificam os meios, significa que os fins foram sacralizados e, por isso mesmo, os meios já estão santificados ou, digamos, perfeitamente racionalizados e legitimados.

Por isso, a Bíblia nos ensina enfaticamente que a justiça que devemos seguir é a de Deus, conforme é-nos ensinada por Jesus Cristo. Devemos saturar o nosso coração com a Palavra para que possamos ter uma consciência teocêntrica; um pensar bíblico.

Há cerca de 30 anos (1993) o  premiado colunista  norte-americano Charles Krauthammer (1950-2018), comentou de forma tristemente perspicaz, o fato de Katherine Power – que em companhia de 3 outros criminosos, havia assaltado um banco em 1970, culminando com a morte de um policial  (Schroeder) alvejado com um tiro pelas costas, deixando órfãos seus 9 filhos pequenos –, depois de 23 anos foragida, vivendo com outro nome, se apresentou à polícia de Boston.[38]

Ela declarou à imprensa que suas atitudes no passado foram “ingênuas e impensadas”. Disse também que sabia que deveria respoder a essas acusações do passado para poder viver com total autencidade no presente. Comenta Krauthammer: “Power veio do frio em busca de ‘autenticidade total’. Não por remorso ou resignação. Não buscando perdão ou arrependimeno”. Seu marido, de forma mais específica, disse que  “Ela não voltou por causa da culpa. Ele queria sua vida de volta. Ela quer ser íntegra”.[39]

Observem que os conceitos de pecado, arrependimento e culpa estão totalmente ausentes. Ela participou de um assalto, da morte de um policial com todos os outros elementos decorrentes e, agora, passados 23 anos, quer voltar à sua autenticidade, sem culpa nem arrependimento. Reassumindo o seu nome e sofrendo a penalidade, ela quer ser ela mesma e ponto. Deseja afirmar a sua autenticidade.  A grande questão é esta. Temos uma terapia sem pecado e sem sentimento de culpa. Nós nos perdoamos e está tudo acabado. Seguida essa linha de raciocínio ela estará curada; recuperou o seu senso do “Eu”.

É natural ao ser humano, quando não consegue eliminar os conceitos de pecado, culpa e arrependimento, tentar retardar o máximo possível a sua aceitação. Quando seus malabarismos terapêuticos se deparam com uma rua sem saída, apelam para, quem sabe, um último recurso: mudança de nomes.

Buscamos agora, não mais o arrependimento de nosso pecado, mas a restauração do nosso eu, a integridade de nosso “self”. Afinal, sentimento de culpa e pecado são expressões criadas pela religião e mais especificamente pelo cristianismo para nos dominar (Nietzsche). Por isso, precisa ser eliminado.

Onde não há padrões, leis e normas, não há espaço para pecado, arrependimento e sentimento de culpa. Também, é necessário que se diga, que não haverá espaço para confissão, graça, expiação, perdão e reconciliação.

 

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[1]Veja-se: Culpa: In: Carl F.H. Henry, org. Dicionário de Ética Cristã, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 152-153.

[2]“Culpa é aquilo em que uma pessoa incorre quando transgride uma lei” (R.C. Sproul, O que posso fazer com minha culpa? São José dos Campos, SP.: Fiel, 2013, p. 6).

[3]“Fogem os perversos (rasha) (= ímpios), sem que ninguém os persiga; mas o justo é intrépido como o leão” (Pv 28.1/Lv 26.17,36; Sl 53.5). O caminho do ímpio ainda que por um momento pareça florescente, não prevalecerá; antes, perecerá (Sl 1.5-6). Ele se perde, sendo infrutífero (Sl 112.10; Pv 10.28; 11.7). Isto porque o juízo pertence a Deus (Dt 1.17). “Vi um ímpio prepotente a expandir-se qual cedro do Líbano. Passei, e eis que desaparecera; procurei-o, e já não foi encontrado. Observa o homem íntegro, e atenta no que é reto; porquanto o homem de paz terá posteridade”  (Sl 37.35-37). O cedro do Líbano é conhecido pela sua durabilidade e estatura (Ez 31.3; Am 2.9), podendo atingir 40 metros de altura.

[4]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 4.9), p. 157. “Tão tendenciosas são as sutilezas, nas quais os homens orgulhosos buscam glória para si próprios, que subvertem a genuína doutrina do Evangelho, a qual é simples e despretensiosa” (João Calvino, As Pastorais, São Paulo: Paracletos,1998, (1Tm 6.20), p. 186).

[5]Veja-se: J.I. Packer, A Redescoberta da santidade,  2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 157-158.

[6] Veja-se o pequeno e excelente livro de Sproul. R.C. Sproul, O que posso fazer com minha culpa?  São José dos Campos, SP.: Fiel, 2013, p. 9-11.

[7] Veja-se: Paul Tournier, Culpa e Graça: uma análise do sentimento de culpa e o ensino,  São Paulo: ABU., 1985, p. 71ss.

[8] Vejam-se alguns exemplos deste caso em R.C. Sproul, O que posso fazer com minha culpa?  São José dos Campos, SP.: Fiel, 2013, p. 11ss.

[9]R.C. Sproul, O que posso fazer com minha culpa? São José dos Campos, SP.: Fiel, 2013, p. 13-14.

[10] Sobre esses pontos, veja-se: Francis A. Schaeffer, Verdadeira espiritualidade, São Paulo: Editora Fiel, 1980, p. 144-156.

[11]Martin Buber, O caminho do homem segundo o ensinamento chassídico, São Paulo: É Realizações, 2011, p. 10.

[12]R.C. Sproul, Estudos bíblicos expositivos em Romanos,  São Paulo: Cultura Cristã, 2011, p. 109.

[13] Termo jurídico que indica alguém evidentemente culpado, já não havendo possibilidade de defesa.

[14]John F. MacArthur, Jr.,  Sociedade Sem Pecado. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 17.

[15]John F. MacArthur, O Aconselhamento e a pecaminosidade humana: In: John F. MacArthur, et. al., eds. Introdução ao aconselhamento bíblico: um guia básico dos princípios e prática do aconselhamento, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 130.

[16] John F. MacArthur, Jr.,  Sociedade Sem Pecado. São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 25.

[17] “A verdadeira alegria da vida cristã também depende de um correto entendimento da doutrina”  (D. Martyn Lloyd-Jones, A Vida de Paz,  São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2008, p. 26). “Uma das glórias da mensagem cristã é que ela oferece alegria e dá alegria real. O indivíduo tristonho, desanimado e de cara-amarrada não é bom representante do verdadeiro cristianismo” (David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004,  p. 62).

[18]Albert Mohler Jr., O Desaparecimento de Deus,  São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 32.

[19] Veja-se: F. Nietzsche, O Anticristo, 4. ed. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, © 1985, p. 99-101.

[20] John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Miami: Editora Vida, 1991, p. 88.

[21] John F. MacArthur, O aconselhamento e a pecaminosidade humana: In: John F. MacArthur, et. al., eds.  Introdução ao aconselhamento bíblico: um guia básico dos princípios e prática do aconselhamento, São Paulo: Hagnos, 2004, p. 138. Do mesmo modo, escreveu Stott: “Se os seres humanos pecaram (o que aconteceu), e se são responsáveis por seus pecados (o que são), então são culpados perante Deus. A culpa é dedução lógica das premissas do pecado e responsabilidade. Erramos por nossa própria falta, e, portanto, devemos arcar com a justa penalidade de nosso erro” (John R.W. Stott, A Cruz de Cristo, Miami: Editora Vida, 1991, p. 86).

[22]“Uma definição não arbitrária deve afirmar o conjunto de características singulares compartilhado por todas as coisas do tipo que está sendo definido” (Roy A. Clouser, O mito da neutralidade religiosa: Um ensaio sobre a crença religiosa e seu papel no pensamento teórico, Brasília, DF.: Editora Monergismo, 2020. Edição do Kindle. (Posição 287 de 11450).

[23]Baruch Espinosa, Ética, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, v. 17), 1973, I.8. Escólio 2, p. 91.

[24] Vern S. Poythress, O Senhorio de Cristo: servindo o nosso Senhor o tempo todo, em toda a vida e de todo o nosso coração, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 16.

[25]  “Ele é a criatura que, inicialmente, foi criada à imagem e semelhança de Deus, e essa origem divina e essa marca divina nenhum erro pode destruir. Contudo, ele perdeu, por causa do pecado, os gloriosos atributos de conhecimento, justiça e santidade que estavam contidos na imagem de Deus. Todavia, esses atributos ainda estão presentes em ‘pequenas reservas’ remanescentes da sua criação; essas reservas são suficientes não somente para torná-lo culpado, mas também para dar testemunho de sua primeira grandeza e lembrá-lo continuamente de seu chamado divino e de seu destino celestial” (Herman Bavinck, Teologia Sistemática, Santa Bárbara d’Oeste, SP.: SOCEP., 2001, p. 17-18). “É verdade que ela não foi totalmente extinta; mas, infelizmente, quão ínfima é a porção dela que ainda permanece em meio à miserável subversão e ruínas da queda” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 8.5), p. 169).

[26] Veja-se: Jay E. Adams, Teologia do aconselhamento cristão, Eusébio, CE.: Editora Peregrino, 2016, p. 202-203.

[27]A figura do painel que emprego há algumas décadas, foi inspirada na aplicação feita por Adams (1929-2020) que li ainda no meu tempo de estudante. Veja-se: Jay E. Adams, Conselheiro Capaz,  São Paulo: Fiel, 1977, p. 101-102.

[28]Albert Mohler Jr., O Credo dos Apóstolos: Descobrindo o Cristianismo autêntico em uma era de falsificações, Rio de Janeiro:  Pro Nobis Editora, 2021, p. 200-201.

[29]“Estejamos seguros de que quando Deus nos faz sentir Sua mão, de modo a humilhar-nos sob ela, que Deus nos está fazendo um favor especial, e que se trata de um privilégio que Ele não concede a ninguém, senão a seus próprios filhos” (Juan Calvino, Bienaventurado el Hombre a Quem Dios Corrige: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 3), p. 49).

[30]“Pela hipocrisia dos que falam mentiras e que têm cauterizada a própria consciência” (1Tm 4.2). “Todavia, a mim mui pouco se me dá de ser julgado por vós ou por tribunal humano; nem eu tampouco julgo a mim mesmo. 4Porque de nada me argúi a consciência; contudo, nem por isso me dou por justificado, pois quem me julga é o Senhor.  5 Portanto, nada julgueis antes do tempo, até que venha o Senhor, o qual não somente trará à plena luz as coisas ocultas das trevas, mas também manifestará os desígnios dos corações” (1Co 4.3-5).

[31]Timothy Keller, Ego transformado, São Paulo: Vida Nova,  Edição do Kindle, p. 18.

[32]J.I. Packer, A Redescoberta da santidade,  2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 120.

[33] Sl 119.145.

[34] Sl 31.23; 32.7; 61.7; 64.1.

[35] Sl 119.33.

[36] Integridade (1Rs 9.4; Sl 7.8; 26.1,11; 37.37); sinceridade (Gn 20.5,6; Sl 25.21); pacato (Gn 25.27); ajustar (Ex 26.24). A palavra (tom) é da mesma de raiz (tamiym), (tamam): ser completo, estar terminado.

[37]“A consciência é de fato muitíssimo importante, mas ela tem de retornar constantemente à escola da Escritura a fim de receber a instrução  do Espírito Santo. É assim que os crentes se tornam e permanecem cônscios da vontade de Deus” (W. Hendriksen,  Romanos, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, (Rm 12.2), p. 533).

[38] Para mais detalhes, veja-se: https://en.wikipedia.org/wiki/Katherine_Ann_Power   (Consulta feita em 06.07.2023).

[39] http://content.time.com/time/subscriber/article/0,33009,979318,00.html  (Consultado em 05.07.2023), (Quem me chamou a atenção para este fato foi John MacArthur Jr. (Sociedade Sem Pecado, São Paulo: Cultura Cristã, 2002, p. 16-17).

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.