O  Deus que fala de modo fiel

A fidelidade e veracidade da Palavra de Deus

Especialmente a partir dos Salmos, temos estudado sobre o nosso Deus como Rei e Pastor. O nosso Senhor se revelou e fez registrar a sua Palavra. Considerando a sua fidelidade, começaremos a analisar como isso se aplica à sua Palavra.

Inicio fazendo duas perguntas que, segundo creio, começando por lados opostos só podem encontrar uma e a mesma resposta nas Escrituras.

Você ousaria descrer da Palavra do Deus fiel?

Você creria em Deus se a sua Palavra fosse enganosa?

Como cristãos cremos que a Bíblia é a verdade sobre todas as coisas que trata. Isto não é o mesmo que dizer que a Bíblia contenha verdades. Verdades podemos encontrar em diversas obras, como na República de Platão, no Discurso do Método de Descartes, na multifacetada obra de Shakespeare ou, até mesmo, no Príncipe de Maquiavel.[1]

No entanto, quando falamos das Escrituras estamos afirmando que ela é em toda a sua extensão e profundidade, a verdade.

A convicção da fidelidade de Deus associada à sua soberania pressupõem a necessidade de crer na fidelidade de sua Palavra.

Isso é fundamental porque, como escreveu Sproul (1939-2017): “A fé cristã é teocêntrica. Deus não está à margem da vida dos cristãos, mas no centro. Ele define toda nossa vida e nossa visão do mundo”.[2]

Revelação Geral e Especial

A revelação de Deus, tanto a Geral como a Especial, são um ato livre, voluntário e prazeroso de Deus. O Senhor se deu a conhecer a nós a fim de que possamos nos relacionar com Ele em alegria e adoração.[3] Só se tornou possível falar de Deus e nos relacionar com Ele porque Ele se revelou e o fez, como ser pessoal que é.

Spurgeon (1834-1892), bem ao seu estilo, comenta: “O homem sábio lê o livro do mundo e o livro da Palavra como dois volumes da mesma obra e pensa a respeito deles: ‘Meu Pai escreveu os dois’”.[4]

Deus se revela demonstrando aspectos de sua grandeza, santidade e majestade. Desse modo, a sua revelação corresponde adequadamente ao ser de Deus ainda que não exaustivamente. Portanto, é possível conhecer a Deus verdadeiramente ainda que não completamente.

Coerência ontológica e ética de Deus

Algumas questões devem ser destacadas. Quando falamos da fidelidade do ser de Deus que se estende à sua revelação, estamos pressupondo a sua coerência ad intra e ad extra.

1) Aqui temos uma questão de coerência ontológica (Deus não é contraditório em sua natureza essencial).

A contradição normalmente está associada pelo menos a uma dessas três coisas que vou classificar provisoriamente como segue abaixo:

a) Inconsistência racional (ignorância dos pontos que sustentamos gerando uma contradição).

b) Inconsistência moral (sustento pontos excludentes conscientemente porque desejo enganar e levar algum tipo de vantagem).

c) Inconsistência de poder (Ainda que tenha conhecimento adequado do que sustento e não desejo enganar, sou conduzido a uma postura da qual discordo, contudo, não tenho poder para fazer diferente. Aqui há em geral um erro de cálculo no que se refere ao meu poder deliberativo e/ou executivo). Assim, por exemplo, prometo coisas que, posteriormente não poderei cumprir ainda que tenha feito a promessa crendo que aquilo era o melhor, desejável e realizável, mas, descobri posteriormente, que não tinha poderes para levar adiante a promessa, quer por limitações físicas, contratuais, de esfera de poder, etc.

2) Uma questão de coerência ética (Deus não se relaciona conosco fundamentado em mentira e engano).

Deus não incorre em nenhum desses problemas. Deus é Deus e tem perfeita ciência de quem é. A sua natureza perfeitamente harmoniosa em todos os seus aspectos e na infinidade de sua glória, não escapa ao seu perfeito conhecimento. Deus é perfeito e perfeito é o seu conhecimento. Temos aqui um círculo completo. Ninguém lhe acrescenta nada (Rm 11.33-36).

Deus é verdadeiro e deseja que o conheçamos como Ele de fato é. Portanto, a sua revelação é fiel e leal.

Quanto à primeira questão, escreve Bavinck:

Se o conhecimento de Deus foi revelado por ele mesmo em sua palavra, ele não pode conter elementos contraditórios ou estar em conflito com aquilo que se sabe de Deus a partir da natureza e da história. Os pensamentos de Deus não podem se opor uns aos outros e, assim, necessariamente formam uma unidade orgânica.[5]

Os atributos de Deus são revelados de forma verdadeira, expressando assim, a sua natureza real.[6]

A superioridade da Revelação Especial

Por mais evidente que seja a Criação em revelar aspectos da gloriosa majestade e santidade de Deus, nada é mais eloquente do que a sua Palavra revelada e registrada.

Em 19 de junho de 1555, Calvino pregando sobre o livro de Deuteronômio (5.11), disse:

Observemos os céus e a terra: vemos Deus em todo lugar. Pois o que é a terra senão uma imagem viva (como diz Paulo) na qual Deus se declara? Apesar de ser invisível em sua essência, ele se mostra nessa, para que o adoremos. Mas nas Sagradas Escrituras existe uma imagem da qual Deus se declara de modo muito mais familiar a nós do que nos céus ou na terra. Apesar de iluminarem a terra, nem o sol nem a lua demonstram a majestade do mesmo modo que a Lei, os Profetas e o Evangelho.[7]

A importância da história no processo revelacional

Schaeffer  (1912-1984), argumentando em prol da genuinidade da revelação de Deus em forma de proposição e história, escreve: 

Deus inseriu a revelação da Bíblia na História; Ele não a forneceu (como poderia ter feito) em forma de livro-texto teológico. Localizando a revelação na História, que sentido teria para Deus ter-nos fornecido uma revelação cuja história fosse falsa? Também o homem foi inserido neste universo que, como as Escrituras mesmo dizem, fala de Deus. Que sentido, então, teria para Deus ter nos oferecido a sua revelação em um livro cheio de falsidades acerca do universo? A resposta para ambas as questões deve ser “nada disso faria qualquer sentido!”

Está claro, portanto, que, do ponto de vista das Escrituras em si, podemos observar uma unidade por todo o campo do conhecimento. Deus falou, numa forma linguística e proposicional, verdades sobre si mesmo e verdades sobre o homem, a sua história e o universo.[8]

Assim sendo, podemos e devemos confiar inteiramente em sua Palavra. O Deus fiel se revela com verdade e autenticidade. A sua Palavra por ser a verdade (Jo 17.17), corresponde ao que Ele quer que saibamos e obedeçamos. Portanto, tentar ir além do revelado é cair em um labirinto resultante de uma mente especulativa e pecaminosa.

Fidelidade da revelação e santidade

Não sei tudo o que a minha mente especulativa deseja, contudo, sei que Deus deseja que o conheçamos e, que provê os meios para que sejamos santos.

É desse modo que o salmista se refere à Palavra: Fidelíssimo (‘aman me`od) (intensamente dignos de crédito) são os teus testemunhos (`edah); à tua casa convém a santidade, SENHOR, para todo o sempre” (Sl 93.5).

Todos os preceitos de Deus são fiéis. Não precisamos atualizar ou adequar Deus e a sua Palavra. Ela permanece: “As obras de suas mãos são verdade (‘emeth) e justiça; fiéis (‘aman) todos os seus preceitos. 8Estáveis são eles para todo o sempre, instituídos em fidelidade (‘emeth) (firmeza, certeza, confiança) e retidão” (Sl 111.7-8).

A Palavra de Deus é a expressão da fidelidade do seu Autor. Por isso, podemos descansar na sua Palavra, confiantes nas suas promessas: O que Deus prometeu haverá de cumprir. Ele é fiel a si mesmo; na sua Palavra não há instabilidade!

Ainda que os valores predominantes na sociedade apontem em outra direção querendo nos fazer crer na inutilidade dos preceitos divinos, podemos depositar totalmente a nossa fé em suas instruções. O Deus que a prescreveu é fiel; total e absolutamente digno de crédito.

Por isso o salmista pôde dizer de forma piedosa e sincera: Creio (‘aman) nos teus mandamentos” (Sl 119.66). Outra vez: Confio (batach) na tua Palavra” (Sl 119.42).[9]

Confiança em meio ao naufrágio

Só deve ser crido o que é digno de crédito. Quando o apóstolo Paulo estava preso, sendo levado à cidade de Roma em uma embarcação com 276 pessoas (At 27.37), não tendo sido ouvido antes, agora, em meio a grande tempestade que assustava a todos, com plena convicção, expressa publicamente a sua confiança, dentro do contexto descrito por Lucas:

21 Havendo todos estado muito tempo sem comer, Paulo, pondo-se em pé no meio deles, disse: Senhores, na verdade, era preciso terem-me atendido e não partir de Creta, para evitar este dano e perda.  22 Mas, já agora, vos aconselho bom ânimo, porque nenhuma vida se perderá de entre vós, mas somente o navio.  23 Porque, esta mesma noite, um anjo de Deus, de quem eu sou e a quem sirvo, esteve comigo,  24 dizendo: Paulo, não temas! É preciso que compareças perante César, e eis que Deus, por sua graça, te deu todos quantos navegam contigo.  25 Portanto, senhores, tende bom ânimo! Pois eu confio (pisteo) em Deus que sucederá do modo por que me foi dito. (At 27.21-25).

Deus por ser quem é, pela fidelidade de seus atos, é totalmente digno de crédito.

Devemos avaliar sempre o que cremos. Este é um princípio grandemente salutar à boa saúde de nossa fé. Podemos ter a certeza absoluta, atestada pelo próprio Deus e experimentada ao longo dos séculos por todo o seu povo: “O testemunho (`eduth)(Estatutos, estipulações) do SENHOR é fiel (‘aman) (digno de crédito) (Sl 19.7).

De modo pactual, o testemunho confirma e adverte quanto à natureza de Deus, à veracidade e seriedade das exigências da Lei de Deus enfatizando a Aliança. Deus dá testemunho de si mesmo (Ex 25.16-22). “A lei de Deus é seu testemunho porque ela é a própria afirmação divina acerca de sua própria pessoa e de seu propósito”, interpreta Schultz.[10]

Os estatutos de Deus, em forma de advertência, apontam para a responsabilidade de obediência devida por parte do povo de Deus.

Dúvida, conhecimento e fé

A fé envolve conhecimento; ambos caminham juntos.[11] Porém, o conhecimento nunca será suficiente sem a fé. A fé não é um salto no escuro, antes o caminhar resoluto nas promessas de Deus.

A dúvida, ainda que muitas e muitas vezes necessária, dentro de um processo de avaliação e decisão, é dolorosa. Ela nos parece anormal, porque apreciamos a certeza, a convicção na condução de nossa vida.[12]

O que acreditamos molda os nossos sentimentos e conduta. Deste modo, a consciência da fidelidade de Deus expressa em seus mandamentos, exige de nós um compromisso de fidelidade e obediência a Deus.

O Salmista canta:

Bem-aventurados os irrepreensíveis (tamiym) no seu caminho, que andam (halak) na lei do SENHOR  2Bem-aventurados os que guardam as suas prescrições (`edah) (= testemunhos) e o buscam (darash)  de todo o coração (leb); 3 não praticam iniquidade e andam (halak) nos seus caminhos. (Sl 119.1-3).

Palavra confiável

DeYoung resume: “Como povo de Deus, acreditamos que a Palavra de Deus é confiável em todos os sentidos para falar o que é verdadeiro, ordenar o que é justo e nos fornecer o que é bom”.[13]

Quando nos aproximamos da Bíblia partimos do pressuposto de que ela é o registro fiel e inerrante da Revelação de Deus (Jo 10.35; 1Tm 1.15; 3.1; 4.9; 2Tm 3.16; 2Pe 1.20-21). Por isso, podemos dizer como Paulo: “Fiel é a Palavra” (1Tm 3.1; 4.9).

É por intermédio das Escrituras que aprendemos que o melhor intérprete da Palavra é “o Espírito falando na Escritura”[14] (Mt 22.29,31; At 4.24-26; 28.25; 1Co 2.10-16); como nos instruiu o Senhor Jesus Cristo:

Quando vier, porém, o Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciará as cousas que hão de vir. (Jo 16.13).

Mas o Consolador, o Espírito Santo, a quem o Pai enviará      em meu nome, esse vos ensinará todas as cousas e vos fará lembrar de tudo o que vos tenho dito. (Jo 14.26/Jo 5.30; 14.6; 17.17).

Essa ação do Espírito garantiu, por exemplo, a exatidão do registro dos Evangelhos. Ele os fez registrar conforme havia acontecido cada fato, privilegiando a perspectiva de cada um mas, sem erros.

Nos momentos de maior insegurança e temor, podemos tomar como certas as promessas de Deus. O nosso Pastor, de forma coerente com a sua fidelidade, nos guia em verdade. Amém.

 

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[1] Veja o ilustrativo artigo de Murray que trata da mudança da compreensão de que a Escritura é a Palavra para conter a Palavra e as suas consequências em igrejas da Escócia no final do século XIX e início do século XX. (Iain Murray, Como a Escócia perdeu sua firmeza na Palavra: In: John F. MacArthur, org.,  A Palavra Inerrante, São Paulo: Cultura Cristã, 2018, p. 149-171).

[2]R.C. Sproul, A Santidade de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 1997, p. 225.

[3]Cf. B.B. Warfield, The biblical idea of Revelation: In: The Inspiration of the Bible, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House (The Work’s of Benjamin B. Warfield), 2000 (Reprinted), v. 1, p. 6.

[4]C.H. Spurgeon, El Tesoro de David, Barcelona: CLIE., (1989), v. 1, (Sl 19), p. 127.

 

[5]Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 1, p. 44.

[6]Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada: Deus e a Criação, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 2, p. 98.

[7]I. Calvini In: Herman J. Selderhuis, ed., Calvini Opera Database 1.0, Netherlands: Instituut voor Reformatieonderzoek, 2005, v. 26, col. 281.

[8]Francis A. Schaeffer, O Deus que intervém, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 146.*

[9] A confiança do salmista na Palavra de Deus estava associada ao fato de que confiava em Deus (Sl 13.5; 25.2; 26.1; 31.6,14; 52.8; 56.4,11; 143.8).

[10]Carl Schultz, Ud: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1085.

[11]Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 99.

[12]Veja-se o precioso livro de Bavinck. (Herman Bavinck, A Certeza da fé, Brasília, DF.: Monergismo, 2018, 124p.

[13] Kevin DeYoung, Levando Deus a sério, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2014, p. 18.

[14] Confissão de Westminster, I.10.

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.