Um blog do Ministério Fiel
Um cientista e um pássaro
Uma crônica de uma singeleza e doçura além da ciência
“Se você encontrar um ninho numa árvore ou caído no chão, e a mãe estiver lá com os filhotes ou com os ovos, não pegue a mãe; leve os filhotes, mas deixe a mãe sair voando a fim de que tudo corra bem para você, e você viva muitos anos.” (Dt 22:6-7 – NTLH)
Há uma visão muito difundida no público em geral em que nós, os cientistas, vivemos enfurnados em laboratórios, em meio a tubos de ensaios, programando computadores ou descobrindo algo novo todos os dias. Nessa visão, a vida comum não nos atinge, somos imunes às tragédias menores e o cotidiano é permeado de situações inusitadas. Uma bela imagem, porém, muito distante da verdade. Na realidade, o dia-a-dia da pesquisa é bem maçante, um constante analisar de dados, checagem de resultados e um sem-número de reuniões com orientados e colegas de trabalho. Poucas são as situações realmente inusitadas, e raríssimas as vezes que podemos gritar “eureka!”. Das muitas situações que vivi no meio acadêmico, especialmente no âmbito da Universidade Federal do Amazonas, a mais inusitada, emocionante, triste e grata, foi a descoberta de uma avezinha que mudou a vida de minha pequena família, episódio que já relatei em outros meios (1), mas que o faço aqui com novos acréscimos.
Como todos acabam sabendo, de um jeito ou de outro, há momentos na vida que demandam decisões que, de antemão sabemos, levarão a sofrimento. Em geral são decisões que tocam nossas emoções e mexem com o sossego de nosso coração. Podemos até decidir “não decidir”, ou postergar o momento, para evitar o sofrimento futuro, mas não ficamos imunes ao desassossego implícito nesta situação. Em setembro de 2011, eu e minha esposa (também pesquisadora da UFAM), passamos por um desses momentos.
Naquele mês, eu e Elaine tínhamos marcado sair para almoçar fora do campus, para variar o cardápio e ter um pouco mais de privacidade além do normal compartilhar de mesas nos restaurantes da UFAM. Ao chegarmos ao estacionamento vimos uma breve movimentação debaixo do nosso carro. Corre aqui, cerca ali, remexe acolá, vimos dois filhotinhos de pássaro, do tamanho e aspecto de pintinhos de duas semanas, porém de cor marrom escura, de asas pequenas, indubitavelmente silvestres.
Como cientistas procuramos uma forma em como sair rápido sem atropelar algum dos filhotinhos ou mesmo os dois. Sem encontrar uma solução fácil, abaixei-me e tentei enxotá-los com o manjado “Xôoo! Sai!”. Mas, para nossa surpresa correram para os pés da minha esposa e lá permaneceram quietinhos – ela, por sua vez, quase paralisada pelo inusitado da situação. Calmamente me aproximei e estendi a mão para pegar um deles, já esperando dispararem em fuga. Assombro dos assombros: não só permaneceram firmes à minha aproximação como pularam para minha mão e subiram pelo braço, empoleirando-se confortavelmente no ombro. Ficamos encantados, espantados e – perigosamente – enternecidos. E é assim que decisões desse tipo começam, e é assim que cientistas se metem em enrascadas.
Procuramos algum ninho de onde tivessem caído, ou sinal da mãe, mas sem sucesso. Sem muito ânimo tivemos que tomar uma decisão difícil (para qual já sabia o veredicto desde o momento em que subiram no meu ombro). Eram pássaros silvestres, poderíamos deixá-los à própria sorte – o que significaria a morte de ambos – ou poderíamos criá-los, mas nesse caso não poderíamos mantê-los em casa por muito tempo. Cedo ou tarde deveríamos trazê-los de volta à floresta da UFAM. A essas alturas o almoço já tinha ido para o espaço e nosso pensamento estava todo nos dois pássaros. Colocamos os filhotinhos no carro e rumamos para casa. No caminho surgiu a primeira pergunta e a primeira preocupação:
– Kel, que tipo de pássaro são?
– Não tenho idéia, parecem filhotes de galinha. Mas nunca vi pintinhos tão dóceis, parecem até domesticados.
– Será que são urubus?
Rimos muito da sugestão até lembrarmos que não sabíamos como era um filhote de urubu, sendo totalmente plausível estarmos com dois deles no carro. Paramos de rir. Seria tragicômico criar dois urubus. Deixamos essa incômoda questão de lado.
A próxima questão foi de ordem prática: o que será que eles comem? Sugeri que, como se pareciam pintinhos, deveriam comer ração e gostar de ciscar o chão. (logo descobrimos que não era o caso). Quando Mitca e Naomi, minhas filhas (com oito e sete anos, respectivamente), chegaram do colégio, empolgadas, fizeram a questão que lhes interessava – Qual vai ser o nome deles? – Como não sabíamos que nome dar e até então eu os estava chamando de Um e Dois, os batizamos de Ichii e Nii (uma alusão aos números em japonês).
Nos dias seguintes aprendemos a duras penas (sem apelar para um trocadilho infame) a arte de cuidar de criaturas das quais nada sabíamos. Cinco da manhã já piavam muito forte e alto, não sossegavam enquanto não pegávamos na mão e dávamos atenção. Não aceitavam quase nenhuma comida conhecida de pássaros, não voavam e faziam muito cocô. Acabei aprendendo a fazer um galinheiro grande e completo em volta da nossa aceroleira, e misturar uma série de farelos para fazer uma ração pastosa (que só comiam se déssemos no biquinho) e me acostumar a servir de poleiro, pois adoravam ficar no meu ombro. Infelizmente duas semanas depois o Ichii sumiu (não fechei direito o galinheiro e escapou). Foi nossa primeira dor e o choro das meninas foi contido e sentido.
Nas semanas seguintes acompanhamos o crescimento da Nii, sua lenta emplumação e sua necessidade maior de atenção. Ainda não sabíamos que espécie de pássaro era e a quem mostrávamos ninguém conhecia, mesmo alguns amigos biólogos não sabiam a que espécie pertenciam. Não encontramos nada na internet e a sugestão mais segura de alguns girava em torno de um tipo de codorninha silvestre amazônica (no entanto, a ameaça de urubu estava sempre presente em nossas mentes). Aos pouquinhos a avezinha aprendeu a dar pequenos saltos, a ao que tudo indicava era uma ave que não voava, apenas aproveitava o impulso das asas para cobrir pequenas distâncias de vôo.
Quase um mês depois de sua chegada já a considerávamos, junto com a Shoyu – nossa gatinha ainda bebê – membros oficiais da família. Muitas vezes fiquei sentado com ela em meu ombro ou empoleirada na poltrona. Chegamos ao consenso que a Nii-chan era do gênero feminino, tal o apego comigo e a insistência dela em dar suaves bicadinhas em nossa orelha quando queria alguma coisa. E no meio dessa calmaria veio a segunda dor.
Certo domingo, à noite, ao chegarmos da igreja, encontramos o cercado vazio. Procuramos por todos os cantos e nenhum sinal da Nii, nem de penas e nem de lutas. Havia-se ido embora. As meninas caíram no choro e tentei confortá-las, e a mim mesmo, com a idéia que teria aprendido a voar e finalmente alçou vôo à procura de sua família. Tudo muito natural, científico, sem dor, sem pânico. Aí a Naomi fez uma pergunta difícil e deitou por terra a tentativa de dar um fim asséptico a uma dor que não se queria sofrer:
– Mas nós somos a família dela, por que ela teve que ir embora? Nem se despediu! Nem pude pegá-la uma última vez! – E chorou amargamente. Todos nos entristecemos. Segurei o choro e curti minha dor em silêncio.
Na segunda pela manhã fiquei em casa, acalentando a esperança de vê-la voando de volta ao pé de acerola quando a fome batesse. Por volta das nove ouvi longe o piado forte da Nii-chan. Procurei em toda casa e quintal e não encontrei. Saí à rua e nenhum sinal. O piado continuou até perto do meio-dia, quando finalmente identifiquei a direção do som: vinha de duas casas a frente, do outro lado da rua. Emocionado bati no portão da casa e descobri que não havia ninguém. Uma vizinha ao lado disse que os donos só chegavam à noite. Perguntei se ela conseguia ver, por cima do alto muro, algum filhote de pássaro no quintal. A resposta foi positiva. Coração vibrando, subi em seu muro e vi a Nii-chan piando de fome e sem saber como sair do quintal e, bem ao lado, um enorme pastor-alemão. Não podendo descer no quintal alheio sem permissão, e ainda tendo um vigia daquele tamanho, tive uma ideia de cientista maluco. Coloquei uma escada até o chão do quintal a partir da casa da vizinha e gritei:
– Nii-chan, vem! Sobe pela escada garota! Vem, vem.
Ela ouviu a voz, reconheceu e ficou tentando alçar vôo em minha direção, até notar a escada. A vizinha, e sua neta, incrédulas de tão tresloucado plano, a tudo observavam com um ar de estranhamento. Um a um, para o espanto da pequena audiência, a avezinha foi pulando degrau a degrau e nos dois últimos saltou e voou para meu ombro e lá ficou quietinha, ambos aliviados. Não sabia se ria ou chorava e o restante do dia foi uma alegria só para toda a família. Entretanto, desde aquele dia Nii-chan não mais piou e ficou mais apegada a todos nós. Quando passávamos um tempo sem a tirar do galinheiro corria loucamente em volta da árvore e depois bicava e se batia na gaiola até sangrar o cocuruto, o que a deixou com uma marquinha bem caraterística, visível de longe.
Um dia chamamos um mestre de obras para fazer uma pequena reforma em casa. Era um homem simples, sem qualquer conhecimento científico de aves, mas ao entrar no quintal, olhou para a Nii-chan e disse:
– Seu Kelson, onde encontrou esse aracuã?
– O senhor conhece esse pássaro?
– Sim, é um aracuã, um pássaro grande, que quando cresce fica com uma cauda bem grande e bonita. No interior o pessoal caça e come, parece um franguinho.
Pronto, agora tínhamos um nome. Logo descobrimos tudo sobre a Nii. Seus hábitos, peso máximo, espécie, dieta, etc. Era da família dos galináceos, onívora e gramídea, podia chegar a pesar mais de meio quilo, e o mais estranho, já foi considerada uma ave-símbolo do Brasil – inclusive retratada por Walt Disney (o personagem Folião é um aracuã). Havia ainda outra característica preocupante: vivia e crescia sempre em bando ou com um companheiro, nunca só.
Com o passar dos meses, e já virado o ano, Nii-chan cresceu, emplumou, ganhou uma longa e bonita cauda castanho-avermelhada, aprendeu a comer brotos de folhas de qualquer espécie de árvore e já dava grandes saltos-vôos. Minha diversão era colocá-la em algum lugar me afastar e chamá-la, ao qual respondia com um bonito vôo, terminando por pousar em meu ombro. Naomi e Mitca amavam brincar com ela e mesmo minha esposa já conseguia fazer com que voasse para seu ombro. Contudo, a cada dia Nii-chan ficava mais agitada em sua casinha e não tirava os olhos dos céus. Sabia que estava chegando a hora da separação e me iludia com a idéia de tê-la conosco até que soubesse voar perfeitamente.
Comecei a deixá-la algum tempo livre do galinheiro, só observando de longe. Para meu alívio sempre entrava em casa e voava para o ombro disponível mais próximo. Bastou uma semana com liberdade vigiada para que Nii-chan aprendesse a voar de verdade. E em um sábado, pela manhã, alçou um elegante vôo, cruzou nosso alto muro e foi conhecer o jardim do vizinho. Fui buscá-la já com dor no coração, pois sabia que havia chegado a hora. À noite comuniquei que levaríamos nossa aracuã de volta para a floresta da UFAM na segunda pela manhã. Aquele seria nosso último final-de-semana. No dia seguinte dia demos maior atenção a avezinha que havia conquistado nosso coração. À noite batemos fotos, filmamos, brincamos e quase nada dissemos sobre sua partida.
Na segunda, pela manhã, após alimentá-la bem, a pusemos no carro e nos dirigimos à floresta do campus universitário. Parei o carro em uma região de mata mais fechada, perto do bloco da química. Todos saímos e nos despedimos dela. Nenhum choro. Lancei-a para o alto, mas não quis voar, como se soubesse o que estava acontecendo, antes correu e ficou escondidinha embaixo de uma moita. Com carinho a peguei na mão e novamente tentei enxotá-la sem muito sucesso. Por fim me embrenhei um pouco no mato e a coloquei no galho mais alto que consegui. Ali ficou, não demonstrou intenção de voar em nossa direção e logo já estava interessada pelo ambiente em derredor, rico em brotos, os quais já experimentava com avidez. Nii-chan estava de volta ao seu habitat. Nossa missão estava cumprida.
Contudo, a dor de uma separação não é fácil de internalizar. Logo Naomi começou a chorar assim que começamos a voltar ao carro, Mitca a seguiu e levantaram um choro triste e doído. No carro continuavam a chorar e questionar o motivo da separação, creio que de alguma forma me culpavam por abandoná-la sozinha na mata. Só pararam quando perceberam que grossas lágrimas rolavam pelo meu rosto, e entenderam que em mim doía tanto quanto nelas. Não aguentei mais e chorei abertamente – todos choramos. De alguma forma encontramos consolo mútuo nesse choro em família. Desde o início sabia, com uma certeza matemática, que aquela avezinha nos faria sofrer, só não sabia a intensidade da dor. Ela se foi e ficou a saudade e a expectativa de vê-la novamente pelos galhos das árvores da UFAM.
Das muitas situações que vivi no meio acadêmico, especialmente no âmbito da Universidade Federal do Amazonas, o que mais me impactou não foi alguma descoberta científica, e sim a convivência com uma pequena aracuãzinha. Quando lembro deste episódio, vem sempre à mente o texto de Dt 22:6-7, ainda que um pouco fora do contexto, no qual o Senhor promete que levar e cuidar dos filhotes de um passarinho redundará em cuidado e vida longa para os nossos filhos. Sim, tudo correu bem na inusitada companhia daquela amada criaturinha.
Uma semana depois de devolvermos nossa amada avezinha para a mata, minha esposa viu um casal de aracuãs próximo à sua sala na UFAM e jura que um deles era Nii-chan, pois tinha até a marquinha no cocuruto característica. Todos nos alegramos com a notícia e desde então a mata em redor do Departamento de Química ganhou para mim um colorido único todo especial – nela vivia uma avezinha que carregava em suas asas um pedaço de nossos corações. Essa foi a dádiva que o Senhor, em sua bondade, nos deu através da Nii-chan. A Ele, minha gratidão e louvor!
(1) Kelson Mota T Oliveira. Santos – Quando o cotidiano evangélico é belo e inspirador. Ed. Clube dos Autores. 2015. Amazon Books.
Leia mais artigos do Dr. Kelson Mota na coluna Fé e Ciência – clique aqui.
Conheça os livros da Editora Fiel sobre Fé e Ciência – clique aqui.