O Senhor e Pastor que abençoa os seus servos

A benção providencial de Deus na nossa dor e angústia

Algo extremamente difícil ao ser humano é enxergar o que está além de sua visão imediata; conseguir ultrapassar os fatos mais proximamente percebidos, principalmente quando estes insistem em permanecer por algum tempo, dando-nos a impressão de sua perpetuidade.

A sensação de solidão tão comum à existência humana, é, em geral, barulhenta, tanto entre os homens como entre os cães. Ainda que como cristãos saibamos de nossa total dependência da graça de Deus, sabemos também, que conforme a nossa constituição física e emocional somos mais afeitos a determinados problemas, entre eles, a depressão espiritual.[1] Quando nos sentimos assim, a angústia parece ser a nossa única indesejada companheira.

Davi sentia-se só e abandonado

Quando Davi escreveu o salmo 13, sentia-se só e abandonado por Deus. Esta, sem dúvida, é uma provação dolorosa.

Na aflição, tendemos muitas vezes a não perceber alguns sinais das bênçãos de Deus. Por exemplo: Na oração do Pai Nosso, Jesus Cristo nos ensina a orar: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje….”.

No entanto, no salmo 102, o escritor sagrado confessa: “até me esqueço de comer o meu pão” (Sl 102.4).

A extrema dor pode fechar os nossos olhos para as bênçãos da manutenção providente de Deus que estão diante de nós.

No salmo 13, Davi após descrever as suas angústias, incertezas e o seu circunstancial senso do abandono de Deus, revela, por fim, uma fé viva e vigorosa. Analisemos isso.

Contexto do salmo 13

Davi ao escrever este salmo estava numa situação aflitíssima, passando por grande angústia e provação. Como Davi viveu muitos desses momentos, é difícil determinar quando ele o redigiu.

É possível que tenha composto este salmo no deserto, quando fugia de Saul que queria matá-lo para que ele não se tornasse o rei de Israel, conforme Samuel o ungira cumprindo a ordem do Senhor (1Sm 16.1,3,12,13).[2]

A sua situação no deserto nunca fora confortável; durante os cerca de nove anos em que viveu foragido, além dos incômodos naturais, corria constante risco de morte, deslocando-se de um lado para o outro sob a perseguição implacável de Saul (1Sm 23.14; 25-28; 24.1-2),[3] contando às vezes com a amizade sincera de uns (1Sm 23.15-18)[4] – destacando-se neste caso a lealdade de Jônatas –, e sem necessariamente contar, tinha traições voluntárias de outros (1Sm 23.10-12; 23.19ss; 26.2).

As suas experiências são múltiplas

a) Finge-se de louco em Gate diante do rei para salvar a sua pele (1Sm 21.10-15);[5]

b) Tem de carregar a culpa de saber que quem o ajudasse correria também risco de morte, como aconteceu com o sacerdote Aimeleque que lhe deu alimento e a espada de Golias, ocasionando por isso – da parte de Saul –, a destruição de seus bens e a morte de toda a sua família; oitenta e cinco sacerdotes e seus familiares, envolvendo homens, mulheres e crianças, sobrando apenas um de seus filhos, Abiatar, que se refugiou com Davi (1Sm 21.1-9; 22.9-23).

c) Depois Saul, no seu projeto de matar Davi, se dispôs a destruir a cidade de Queila que Davi livrara das mãos dos filisteus (1Sm 23.10).[6]

d) Conviver com um exército de excluídos e, certamente, com vários dramas pessoais: Os homens que se ajuntaram a ele, formando um exército não treinado de 400 homens, aumentado depois para 600 (Cf. 1Sm 22.2; 23.13; 27.2): “Ajuntaram-se a ele todos os homens que se achavam em aperto, e todo homem endividado, e todos os amargurados de espírito, e ele se fez chefe deles” (1Sm 22.2).

Em meio a estas trevas existenciais ele consegue atravessá-las mostrando, como se sentiu deprimido, mas, que pela graça conseguiu enxergar em todas as coisas os benefícios proporcionados por Deus.

Por isso dizer que Deus lhe tem feito muito bem; a sua esperança não se dissipa, antes, ela aparece como uma pequena chama em densas trevas que faz com que se torne ainda mais evidente. Ele vê, diríamos, “uma luz no fim do túnel”. No entanto, essa luz era proveniente não de um simples otimismo humano como meio de olhar positivamente a realidade, mas, da sua fé nas promessas do Deus da Aliança. Por isso declara: O Senhor me tem feito muito bem (Sl 13.6). Como isso era possível? Analisemos alguns aspectos da visão de Davi à luz deste salmo.[7]

Sensibilidade espiritual

“…. Até quando, SENHOR? Esquecer-te-ás de mim para sempre? Até quando ocultarás de mim o rosto? 2 Até quando estarei eu relutando dentro de minha alma, com tristeza no coração cada dia? Até quando se erguerá contra mim o meu inimigo? 3 Atenta para mim, responde-me, SENHOR, Deus meu! Ilumina-me os olhos, para que eu não durma o sono da morte” (Sl 13.1-3).

Mesmo sabendo que Deus é paciente[8] para conosco, o fato é que ele se sente totalmente debilitado.

 O salmista faz quatro perguntas que revelam angústia e o senso de urgência devido à persistência de sua dor. De forma natural vemos também o senso de finitude.

O tempo sempre é longo quando a angústia nos domina.

Até quando Senhor?” (1)

a) “Esquecer-te-ás de mim para sempre?” (1)

b) Até quando ocultarás de mim o rosto?” (1) ‒ Nestas duas primeiras perguntas constatamos que a origem de sua angústia se reporta a Deus. Ele se sente esquecido por Deus.

c) Até quando estarei eu relutando dentro em minha alma, com tristeza no coração cada dia?” (2) ‒ Passa agora às suas angústias pessoais; retrata como se sente consigo mesmo, talvez, tendo como ingrediente alguma grave enfermidade física.

d) Até quando se erguerá contra mim o meu inimigo?” (2/4). ‒ Descreve a sua angústia em relação à arrogância de seus inimigos (4).

A sua dor estava associada à capacidade de perceber de forma arguta os seus problemas. Ele não se iludia com um diagnóstico simplesmente otimista, antes tinha uma visão clara da sua aflição.

Davi conhecia a Deus, mas, sentia-se circunstancialmente desamparado: “Esquecer-te-ás de mim para sempre?” (1); Até quando ocultarás de mim o rosto?” (1) (Cf. Sl 84.10).[9]

A ausência de Deus é mais sentida por aqueles que O conhecem e sabem do seu privilégio; quem nunca usufruiu desta bênção, não pode valorizar aquilo de que cuja falta não pode notar.[10]

Conforme já mencionamos, Davi não havia se esquecido das promessas de Deus, mas, como é possível que aconteça com todos nós, quando nos sentimos aflitos por um longo período sem aparentemente sermos auxiliados, surgir esse pensamento: Deus me abandonou, se esqueceu de mim![11]

 


[1]Veja-se: David M. Lloyd-Jones, Depressão Espiritual, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1996 (Segunda impressão), p. 9-21.

[2]“Disse o SENHOR a Samuel: Até quando terás pena de Saul, havendo-o eu rejeitado, para que não reine sobre Israel? Enche um chifre de azeite e vem; enviar-te-ei a Jessé, o belemita; porque, dentre os seus filhos, me provi de um rei (…) 3 Convidarás Jessé para o sacrifício; eu te mostrarei o que hás de fazer, e ungir-me-ás a quem eu te designar. (…) 12 Então, mandou chamá-lo e fê-lo entrar. Era ele ruivo, de belos olhos e boa aparência. Disse o SENHOR: Levanta-te e unge-o, pois este é ele. 13 Tomou Samuel o chifre do azeite e o ungiu no meio de seus irmãos; e, daquele dia em diante, o Espírito do SENHOR se apossou de Davi. Então, Samuel se levantou e foi para Ramá” (1Sm 16.1,3,12,13).

[3]14 Permaneceu Davi no deserto, nos lugares seguros, e ficou na região montanhosa no deserto de Zife. Saul buscava-o todos os dias, porém Deus não o entregou nas suas mãos. (…) 25Saul e os seus homens se foram ao encalço dele, e isto foi dito a Davi; pelo que desceu para a penha que está no deserto de Maom. Ouvindo-o Saul, perseguiu a Davi no deserto de Maom. 26 Saul ia de um lado do monte, e Davi e os seus homens, da outra; apressou-se Davi em fugir para escapar de Saul; porém este e os seus homens cercaram Davi e os seus homens para os prender. 27 Então, veio um mensageiro a Saul, dizendo: Apressa-te e vem, porque os filisteus invadiram a terra. 28 Pelo que Saul desistiu de perseguir a Davi e se foi contra os filisteus. Por esta razão, aquele lugar se chamou Pedra de Escape. 1Tendo Saul voltado de perseguir os filisteus, foi-lhe dito: Eis que Davi está no deserto de En-Gedi. 2Tomou, então, Saul três mil homens, escolhidos dentre todo o Israel, e foi ao encalço de Davi e dos seus homens, nas faldas das penhas das cabras monteses” (1Sm 23.14; 25-28; 24.1-2).

[4] 15 Vendo, pois, Davi que Saul saíra a tirar-lhe a vida, deteve-se no deserto de Zife, em Horesa. 16 Então, se levantou Jônatas, filho de Saul, e foi para Davi, a Horesa, e lhe fortaleceu a confiança em Deus, 17 e lhe disse: Não temas, porque a mão de Saul, meu pai, não te achará; porém tu reinarás sobre Israel, e eu serei contigo o segundo, o que também Saul, meu pai, bem sabe. 18 E ambos fizeram aliança perante o SENHOR. Davi ficou em Horesa, e Jônatas voltou para sua casa” (1Sm 23.15-18).

[5]10 Levantou-se Davi, naquele dia, e fugiu de diante de Saul, e foi a Aquis, rei de Gate. 11 Porém os servos de Aquis lhe disseram: Este não é Davi, o rei da sua terra? Não é a este que se cantava nas danças, dizendo: Saul feriu os seus milhares, porém Davi, os seus dez milhares? 12 Davi guardou estas palavras, considerando-as consigo mesmo, e teve muito medo de Aquis, rei de Gate. 13 Pelo que se contrafez diante deles, em cujas mãos se fingia doido, esgravatava nos postigos das portas e deixava correr saliva pela barba. 14 Então, disse Aquis aos seus servos: Bem vedes que este homem está louco; por que mo trouxestes a mim? 15 Faltam-me a mim doidos, para que trouxésseis este para fazer doidices diante de mim? Há de entrar este na minha casa?” (1Sm 21.10-15).

[6]“Orou Davi: Ó SENHOR, Deus de Israel, teu servo ouviu que Saul, de fato, procura vir a Queila, para destruir a cidade por causa de mim” (1Sm 23.10).

[7] Este Salmo tem três seções básicas: 1) O lamento e desespero do salmista como resultado de sua sensação de abandono (1-2);       2) Oração por livramento (3-4);           3) Declaração de alegre confiança e esperança (5-6). Entre outros, vejam-se: Peter C. Craigie; Marvin E. Tate, Psalms 1-50, 2. ed. Waco: Thomas Nelson, Inc. (Word Biblical Commentary, v. 19), 2004, (Sl 13), p. 141; Willem A. VanGemeren, Psalms. In: Frank E. Gaebelein, gen. ed.  The Expositor’s Bible Commentary, Grand Rapids, MI.: Zondervan, 1991, v. 5, (Sl 13), p. 139; James M. Boice, Psalms: an expositional commentary, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 1994, v. 1, (Sl 13), p. 107; H.C. Leupold, The Exposition of The Psalms, 6. ed. Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 1979, (Sl 13), p. 135.

[8] Não nos trata segundo os nossos pecados, nem nos retribui (lm;G”) (gâmal) consoante as nossas iniquidades” (Sl 103.10).

[9]“Pois um dia nos teus átrios vale mais que mil; prefiro estar à porta da casa do meu Deus, a permanecer nas tendas da perversidade” (Sl 84.10).

[10]“Os que nunca sentiram nem viram a presença de Deus, não sentem sua ausência; e, portanto, nunca se queixam dela, como Davi se queixa; o qual entendo que havia sentido a presença de Deus, achando-se favorecido de Deus no interior e exterior, e que havia visto a presença de Deus, não cara a cara, senão como diz São Paulo por espelho, obscuramente, como a veem os que têm sentido a justificação por Cristo, e são regidos e governados no reino de Deus, pelo Espírito de Cristo” (Juan de Valdés, Comentario a los Salmos, Terrassa, Barcelona: CLIE, © 1885 (Librería Nacional y Extranjera), [s.d.], (Clásicos de la Reforma Española), (Sl 13.1), p. 70).

[11]Cf. J. Calvino, O Livro de Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 1, (Sl 13.1), p. 262.

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.