O Senhor e Pastor que repreende e disciplina seus servos (Parte II)

Correção conforme o modelo divino

No Novo Testamento, o escritor de Hebreus estimula os seus destinatários a caminharem firmes em sua fé (Hb 11), não a abandonando em meio às perseguições, mostrando também, que Deus exerce a sua disciplina para aproximar a sua Igreja mais de si mesmo, evidenciando assim, o seu amor para conosco:

Ora, na vossa luta contra o pecado, ainda não tendes resistido até ao sangue e estais esquecidos da exortação que, como a filhos, discorre convosco: Filho meu, não menosprezes a correção que vem do Senhor, nem desmaies quando por ele és reprovado; porque o Senhor corrige a quem ama e açoita[1] a todo filho a quem recebe (= acolher); porque o Senhor corrige a quem ama e açoita a todo filho a quem recebe. É para disciplina que perseverais (Deus vos trata como filhos); pois que filho há que o pai não corrige? Mas, se estais sem correção, de que todos se têm tornado participantes, logo, sois bastardos e não filhos. Além disso, tínhamos os nossos pais segundo a carne, que nos corrigiam, e os respeitávamos; não havemos de estar em muito maior submissão ao Pai espiritual e, então, viveremos? Pois eles nos corrigiam por pouco tempo, segundo melhor lhes parecia; Deus, porém, nos disciplina para aproveitamento, a fim de sermos participantes da sua santidade. Toda disciplina, com efeito, no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza; ao depois, entretanto, produz fruto pacífico aos que têm sido por ela exercitados, fruto de justiça. Por isso, restabelecei as mãos descaídas e os joelhos trôpegos; e fazei caminhos retos para os pés, para que não se extravie o que é manco; antes, seja curado. Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor” (Hb 12.4-14). (Destaques meus).

Amor que corrige

A correção de Deus como expressão de seu amor por nós que fomos acolhidos por Ele, envolve, por vezes, o doloroso açoite e a reprovação. No entanto, essa correção é sempre educativa.

Para que haja uma correção, é preciso que exista um padrão adotado. Se não há padrão, não pode haver algo considerado como transgressão nem o que seria visto como correto.

Na instrução e correção, Deus se vale ordinariamente de sua Palavra para nos mostrar o caminho da obediência por Ele proposto.

Do mesmo modo, Ele abre os nossos olhos para percebermos as bênçãos provenientes de um procedimento compatível com a sua Palavra e, os riscos decorrentes da desobediência. A Escritura é proveitosa também nesse propósito, conforme escreve Paulo:

Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão,[2] para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra. (2Tm 3.16-17).

Paulo afirma que a Escritura Sagrada, que é plenamente inspirada e provém de Deus, é útil para nos ensinar e, também para corrigir, para refutar o erro e repreender o pecado.

Útil para repreensão

O termo usado aqui para “repreensão” já possuía um rico emprego na literatura secular,[3] significando de modo especial:

a) A exposição lógica e objetiva dos fatos de uma matéria, com o objetivo de refutar os argumentos de um oponente; por isso a ideia de refutar e convencer.

b) A correção do modo de viver dos homens, feita pela consciência, pela verdade ou por Deus.

Uma ideia embutida na palavra grega é a de evidenciar o erro, expô-lo e trazê-lo à luz, objetivando corrigi-lo. Há na palavra o sentido de “disciplina educativa”. A educação e a correção devem caminhar juntas (Pv 3.11,12; Hb 12.5; Ap 3.19).

Deixe-me ilustrar isso: Há determinadas cirurgias nas quais a grande dificuldade é chegar até o órgão a ser tratado ou extraído, parcial ou totalmente.

Lembro-me quando visitei um colega de ministério em 1985 que tinha feito uma cirurgia no coração. Ele havia acabado de sair da UTI. Fiquei surpreso ao ver entre os botões do seu pijama o corte que fora feito. Confesso que nunca tinha pensado sobre isso.

Por vezes, quando vamos executar determinados serviços em nosso veículo, o caro é a mão-de-obra. A dificuldade de acessar a peça que precisa, em geral, ser trocada. Não é raro o mecânico nos perguntar se não queremos trocar outras peças que estão com “meia vida”, considerando que o “câmbio já está aberto”, o mesmo acontecendo quando mexemos com a embreagem. O alerta é sempre quanto aos custos de um novo serviço dentro de poucos meses…

Digamos assim: a Palavra nos penetra fundo e expõe o nosso mal para que possa ser tratado. Isso pode e, geralmente é, doloroso.

Paulo nos mostra que a Palavra de Deus, justamente por ser perfeita, evidencia o nosso pecado para que, em submissão a Deus, possamos corrigi-lo. Na contemplação do que é perfeito é que as imperfeições ganham vida ainda que tal vitalidade, por vezes, nos entristeça.

Correção conforme o modelo divino

Quando de fato buscamos nas Escrituras orientação para a nossa vida, descobrimos também que ela nos mostra os nossos erros. Ela traz luz à nossa conduta que, muitas vezes, está manchada, pois, às vezes, acomodamo-nos com este ou aquele pecado visto ser “normal” dentro do mundo em que vivemos.

Entretanto, Paulo nos chama a atenção para o fato de que as Escrituras são úteis para nos corrigir segundo o modelo divino.

As Escrituras evidenciam a anormalidade de nosso pecado a despeito de, por vezes, estarmos acostumados a ele porque não o denominamos assim e, no contexto em que vivemos aquilo é perfeitamente aceitável ou mesmo elogiável. O que é comum ganhou o status de normal, sem percebermos que o habitual não assume por si só a condição de normal, que envolve um conceito avaliativo de norma.

Disciplina formativa e corretiva

A disciplina corretamente entendida, envolve ensino e repreensão. O ensino correto previne muitos males e conduz o crente faltoso ao arrependimento pelos seus pecados. Desse modo, devemos entender a disciplina de maneira formativa e corretiva.[4] A disciplina formativa que consiste no ensino da Palavra é, pelo Espírito, amplamente corretiva.

O padrão da correção das Escrituras é o padrão de Deus, não um modelo de uma época ou cultura.

Toda cultura tem um padrão de homem ideal. A “recompensa” e as “repreensões” são o resultado social do preenchimento desses objetivos, que variam de época para época e de povo para povo.

Entretanto, o nosso Pastor nos corrige por intermédio da sua Palavra, não para que nos moldemos ao “homem ideal de uma época”, mas para que sejamos conforme seu Filho, que é o modelo de todos os eleitos de Deus em todas as épocas: “Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” (Rm 8.29).

 O objetivo da revelação de Deus é nos instruir a fim de que sejamos moldados à imagem de Jesus Cristo.

Como vimos, Elifaz exalta o valor da disciplina:  “Bem-aventurado é o homem a quem Deus disciplina (yakach) (corrige, reprova); não desprezes (ma’as), pois, a disciplina do Todo-Poderoso.18Porque ele faz a ferida e ele mesmo a ata; ele fere, e as suas mãos curam” (Jó 5.17-18/Pv 15.32).

Arrependimento, confissão e perdão

Por outro lado, devemos ter a confiança de que se buscarmos a Deus arrependidos de nossos pecados, Ele em sua misericórdia não nos desamparará. Como já dissemos, a disciplina de Deus deve ser olhada como uma manifestação de seu amor e cuidado para com o seu povo.

No livro de Apocalipse, encontramos a declaração explícita de Jesus Cristo à Igreja de Laodiceia: “Eu repreendo e disciplino a quantos amo. Sê, pois, zeloso, e arrepende-te” (Ap 3.19).

Por isso, Paulo recomenda a Timóteo que pregue a Palavra, porque ela de fato é útil para a correção. Novamente: “Prega a palavra, insta, quer seja oportuno, quer não, corrige, repreende, exorta com toda a longanimidade e doutrina” (2Tm 4.2).

Em outro lugar, o apóstolo insiste com Tito para que repreenda os falsos mestres a fim de que eles tenham uma fé sadia: “Portanto, repreende-os severamente para que sejam sadios na fé” (Tt 1.13).

A disciplina misericordiosa de Deus  por intermédio das Escrituras, conduz-nos arrependidos de volta a Ele. Isso é doloroso e, ao mesmo tempo, tão grandioso que o salmista confessa a bem-aventurança desse processo educativo: “Antes de ser afligido (‘ãnãh)[5] andava errado, mas agora guardo a tua palavra (…). Foi-me bom ter passado pela aflição (‘ãnãh), para que aprendesse os teus decretos” (Sl 119.67,71).

Calvino comenta: “Deus ao afligir-nos quer submeter-nos ao si mesmo, sim, para nosso benefício e para nossa salvação”.[6]

A disciplina de Deus mostra por um lado a sua insatisfação com o pecado. Por outro, devido a ação do seu Espírito, leva o homem arrependido à correção de seus atos pecaminosos.

De fato, com a disciplina do Senhor aprendemos de uma outra forma a sua Palavra. Posteriormente,  podemos até nos alegrar pela “aflição pedagógica” de Deus, conforme testemunha o salmista: “Alegra-nos por tantos dias quantos nos tens afligido (‘ãnãh), por tantos anos quantos suportamos a adversidade” (Sl 90.15).[7]

A misericórdia de Deus  revelada na disciplina visa ao nosso aperfeiçoamento.

Como vimos, a disciplina de Deus além de revelar a sua justiça, tem em seus filhos, esse propósito primordial: conduzir-nos ao arrependimento.[8]

Mão pesada pressionada com amor

A mão de Deus sobre Davi era extremamente pesada. Contudo, era um peso pressionado com amor.

“A disciplina tem seu fundamento teológico na aliança que Yahweh estabelece com seu povo”, comenta Gilchrist.[9]

Devemos enfatizar em toda a relação de Deus com o seu povo ampara-se nas justas e amorosas prescrições do Pacto da Graça. “Ele [Deus] trata com mais severidade os que o servem do que os réprobos”, interpreta Calvino.[10]

Essa consciência deve propiciar um sentimento de verdadeira humildade: “Não há outro modo de obtermos consolação quando nos vemos em aflições, senão lançando de nós toda obstinação e orgulho e submetendo-nos humildemente à disciplina divina”, afirma Calvino.[11]

A Igreja e a disciplina

A Igreja é uma comunidade de pecadores que foram regenerados pelo Espírito (Tt 3.5), que foram santificados em Cristo Jesus (1Co 1.2). Por isso, ela deve zelar pela sua pureza. A disciplina (formativa e corretiva) visa preservar a santidade da Igreja.[12]

A omissão por parte da igreja constituída em disciplinar o faltoso, é um erro grave e, de consequências que podem ser desastrosas. Além disso, ela se coloca sob o juízo de Deus (Ap 2.14-15; 2.19-20).[13] Por outro lado, a atitude do faltoso após a disciplina é responsabilidade pessoal dele diante de Deus.

Quando os crentes, em sua fraqueza cedem à tentação, podem cair em sérios e terríveis pecados. Nessa condição, incorrem na ira de Deus, entristecendo o Santo Espírito e, por isso, entre as consequências de seus atos voluntários, não encontram paz em seus corações, até que por meio da disciplina de Deus tornam a Ele arrependidos, voltando a usufruir as bênçãos da comunhão com o Senhor.

Diz os Cânones de Dort (1618-1619):

A lamentável queda de Davi, Pedro e outros santos, descrita na Sagrada Escritura, demonstra isto. Por tais pecados grosseiros, entretanto, eles causam a ira de Deus, se tornam culpados da morte, entristecem o Espírito Santo, suspendem o exercício da fé, ferem profundamente suas consciências e algumas vezes perdem temporariamente a sensação da graça. Mas quando retornam ao reto caminho por meio de arrependimento sincero, logo a face paternal de Deus brilha novamente sobre eles. (V.4-5).

Continuaremos no próximo post.

 


[1] Esta palavra, com exceção desta passagem, sempre é usada no contexto do sofrimento imposto a Jesus Cristo ou aos seus discípulos. De forma decorrente, podemos também entender que aqui se refere aos discípulos de Cristo, filhos de Deus. Figuradamente, Deus “aplica punição corretiva” aos seus filhos.

[2] As duas palavras dispõem de boa base documental, = “convicção”, “repreensão”, “castigo” ou = “trazer à luz”, “expor”, “demonstrar”, “convencer”, “persuadir”, “punir”, “disciplinar”.

[3]Vejam-se: H.M.F. Buchsel: In: G. Kittel; G. Friedrich, eds. Theological Dictionary of the New Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1983 (Reprinted), v. 2, [p. 473-476], p. 475; H.-G. Link, Culpa: In: Colin Brown, ed. ger. Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, [p. 569-577], v. 1, p. 572.

[4]Veja-se o excelente artigo: John Armstrong, Chorar pelos que erram e os caídos erguer: In: John F. MacArthur Jr.  et. al.  Avante, Soldados de Cristo: uma reafirmação bíblica da Igreja, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 85-110.

[5]A palavra hebraica (‘ãnãh) tem o sentido de “aflito”, “oprimido”, com o sentimento de impotência, consciente de que o seu resgate depende unicamente da misericórdia de Deus. Esta palavra é contrastada com o orgulho, que se julga poderoso para resolver todos os seus problemas, relegando Deus a uma posição secundária, sendo-lhe indiferente.

(‘ãnãh) apresenta também a ideia de ser humilhado por outra pessoa: (Gn 16.6; 34.2; Ex 26.6; Dt 22.24,29; Jz 19.24; 20.5).

[6]Juan Calvino, Bienaventurado el Hombre a Quem Dios Corrige: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L.  1988, (Sermon nº 3), p. 53.

[7]“Os crentes são açoitados, não para com isso satisfazerem à ira de Deus, nem para pagarem o que é devido ao juízo que Ele lhes impõe, mas a fim de aproveitarem a oportunidade para arrependimento e para retorno ao bom caminho” (João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 2, (II.5), p. 177).

[8]Vejam-se: Juan Calvino, Bienaventurado el Hombre a Quem Dios Corrige: In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L.  1988, (Sermon nº 3), p. 48; João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 4, (IV.17), p. 204; João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 79.1), p. 250).

[9] Paul R. Gilchrist, yãsar: In: R. Laird Harris, et. al.  eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 632.

[10]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 90.11), p. 438.

[11]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 1999, v. 2, (Sl 38.6-8), p. 182.

[12]Veja-se: Confissão de Westminster, XXX.3.

[13]À Igreja de Pérgamo:14Tenho, todavia, contra ti algumas coisas, pois que tens aí os que sustentam a doutrina de Balaão, o qual ensinava a Balaque a armar ciladas diante dos filhos de Israel para comerem coisas sacrificadas aos ídolos e praticarem a prostituição. 15 Outrossim, também tu tens os que da mesma forma sustentam a doutrina dos nicolaítas” (Ap 2.14-15). À Igreja de Tiatira: 19 Conheço as tuas obras, o teu amor, a tua fé, o teu serviço, a tua perseverança e as tuas últimas obras, mais numerosas do que as primeiras. 20 Tenho, porém, contra ti o tolerares que essa mulher, Jezabel, que a si mesma se declara profetisa, não somente ensine, mas ainda seduza os meus servos a praticarem a prostituição e a comerem coisas sacrificadas aos ídolos” (Ap 2.19-20).        Veja-se: John Armstrong, Chorar pelos que erram e os caídos erguer: In: John MacArthur, et. al. Avante, Soldados de Cristo: uma reafirmação bíblica da Igreja, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 92-93.

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.