Um blog do Ministério Fiel
O Senhor e Pastor que repreende e disciplina seus servos (Parte III)
A disciplina amorosa do Senhor
O nosso Senhor é o Deus de toda misericórdia. Davi pôde usufruir de forma marcante de uma expressão desse atributo divino: Deus o perdoou. “Disse Natã a Davi: Também o Senhor te perdoou (abar) (desconsiderar o pecado) o teu pecado (hattath);[1] não morrerás” (2Sm 12.13).
Salmo 51 x Salmo 32
Foi nesse contexto de angústia, perdão e consciência do perdão, que Davi escreveu o Salmo 51. O Salmo 32 parece ter sido composto depois, quando o salmista recuperou a sua paz com Deus e pôde refletir mais demoradamente sobre a sua teologia e a sua vivência de fé. A nossa experiência ainda que não seja o fundamento de nossa teologia, a ilustra de modo demonstrativo.
Esse salmo retrata de forma didática, sensível e intensa a bem-aventurança do perdão de Deus resultante de sua misericórdia que nos assiste. Aliás, conforme interpreta Calvino, “Só serão bem-aventurados aqueles que põem sua confiança na misericórdia de Deus”.[2] Como pecadores que somos, como nos relacionar com o Deus santo, criador e mantenedor de nossa vida, sem a sua misericórdia?
No Salmo 32 o salmista cumpre em parte o que escrevera no Salmo 51, sob o primeiro impacto da mensagem de Natã: “12 Restitui-me a alegria da tua salvação e sustenta-me com um espírito voluntário. 13 Então, ensinarei (lamad) aos transgressores os teus caminhos, e os pecadores se converterão a ti” (Sl 51.12-13).
No Salmo 32 ele conta a sua experiência de pecado, da qual não se orgulha. Ao mesmo tempo, se regozija com a bem-aventurança do perdão.
Sem dúvida alguma é extremamente difícil compreender a humildade de Davi que conta o seu fracasso espiritual a fim de que transgressores abandonem seus pecados e se convertam ao Senhor. O perdão é prazeroso. Mas, falar de nosso pecado, conforme a nossa percepção de sua gravidade e da majestade de Deus, é mais do que embaraçoso; causa-nos profundo horror e vergonha.
A bem-aventurança está reservada aos que andam no caminho progressivamente no Senhor (Sl 1), estando associada necessariamente à santificação.[3] Davi agora descobriu, depois de muito sofrimento, a bem-aventurança da restauração espiritual; do retorno à comunhão com Deus. (Sl 32.1-2).
A misericórdia de Deus sempre se manifesta de forma mais evidente quando nos arrependemos e confessamos nossos pecados. Podemos olhar para trás e ver como Deus nos sustentou e não desistiu de nós a despeito de nossa rebeldia e contumácia.
Davi, então, escreve: “Muito sofrimento terá de curtir o ímpio, mas o que confia no SENHOR, a misericórdia (hesed) o assistirá (sabab)” (Sl 32.10).
A “assistência” misericordiosa de Deus
A palavra “assistir” tem um amplo sentido literal e figurado. Significa envolver, cercar, contornar. Apenas para ilustrar, menciono que esta é a palavra usada para descrever as voltas que o exército de Israel deu em torno de Jericó durante sete dias (Js 6.3,4,7,11,14,15).
A ideia expressa é a de que Deus nos cerca, nos envolvendo por todos os lados com a sua misericórdia. A misericórdia de Deus é uma realidade contínua em nossa existência. Contudo, ela se torna mais eloquente para nós quando tomamos consciência do nosso pecado, de nossa incapacidade em vencê-lo sozinho e, do perdão de Deus. O Espírito, por sua vez, reforça em nossa consciência a convicção do perdão divino.[4]
A consciência piedosa do cuidado de Deus
A consciência piedosa do cuidado de Deus tende a operar uma transformação em nós. Sendo guiados pelo Espírito, somos conduzidos à uma atitude de arrependimento pelos nossos pecados – com os quais lidávamos com indiferença e, por vezes, com certo orgulho − e, também, à uma expressão de gratidão em reconhecimento ao fato de Deus ter nos assistido sempre em sua misericórdia. A misericórdia, como o seu amor nos constrangem.
Em algumas situações, a repreensão apenas verbal faz com que os homens se endureçam ainda mais contra Deus e à sua Palavra, sofrendo muito por isso, como escreveu Salomão: “O homem que muitas vezes repreendido (tokachath) endurece a cerviz será quebrantado de repente sem que haja cura (marpe)” (Pv 29.1).[5]
É como se disséssemos: “O que você tem a ver com o meu pecado? Deixa que eu cuido dele sozinho. Ele, circunstancialmente, até que me incomoda mas, é meu. Não se intrometa”.
Por isso, Salomão descarta a hipótese de que nós desobedecemos apenas por falta de instrução. Por vezes, temos claro conhecimento e discernimento do que devemos fazer, mas, estamos dispostos a seguir os nossos pecados já estabelecidos em nosso coração. Prossegue Salomão: “O servo não se emendará (yasar) com palavras, porque, ainda que entenda (biyn), não obedecerá” (Pv 29.18).
Muitas vezes, enquanto Deus não nos castiga de forma mais contundente, tocando em algo caro a nós, não nos voltamos para Ele arrependidos em obediência.[6]
Roboão, pecado, arrependimento e relaxamento
O rei Roboão é um bom exemplo disso. Filho de Salomão, herda o trono de Israel.
Liderados por Jeroboão, houve uma tentativa das tribos do norte, de manter a unidade do reino, contudo, negociando outros termos como por exemplo, ajustando-se as taxas de impostos.
Roboão não deu atenção ao conselho dos anciãos, antigos conselheiros de Salomão. Preferiu ouvir os jovens, já não tão jovens, na mesma faixa etária dele: 40 anos.
O conselho agradou a Roboão porque ele se mostraria a todos mais rigoroso do que seu pai:
10 E os jovens que haviam crescido com ele lhe disseram: Assim falarás ao povo que disse: Teu pai fez pesado o nosso jugo, mas alivia-o de sobre nós; assim lhe falarás: Meu dedo mínimo é mais grosso do que os lombos de meu pai. 11 Assim que, se meu pai vos impôs jugo pesado, eu ainda vo-lo aumentarei; meu pai vos castigou com açoites, porém eu vos castigarei com escorpiões. 12Veio, pois, Jeroboão e todo o povo, ao terceiro dia, a Roboão, como o rei lhes ordenara, dizendo: Voltai a mim, ao terceiro dia. 13Dura resposta lhes deu o rei, porque o rei Roboão desprezara o conselho dos anciãos; 14e lhes falou segundo o conselho dos jovens, dizendo: Meu pai fez pesado o vosso jugo, porém eu ainda o agravarei; meu pai vos castigou com açoites, eu, porém, vos castigarei com escorpiões. (2Cr 10.10-14).
Divisão do Reino
O reino foi dividido. Roboão quase assassinado. Precipidamente, com alguma razão e com muita emoção, prepara seu exército para uma guerra contra Israel.
Deus envia o profeta Semaías para transmitir a proibição divina contra este ato. Roboão, finalmente obedeceu:
2 Porém veio a palavra do SENHOR a Semaías, homem de Deus, dizendo: 3 Fala a Roboão, filho de Salomão, rei de Judá, e a todo o Israel em Judá e Benjamim, dizendo: 4 Assim diz o SENHOR: Não subireis, nem pelejareis contra vossos irmãos; cada um volte para sua casa, porque eu é que fiz isto. E, obedecendo eles à palavra do SENHOR, desistiram de subir contra Jeroboão. (2Cr 11.2-4).
Roboão se aquietou. Cuidou das defesas e provisões de seu reino. Encaminhou bem seus filhos, apoiou os sacerdotes e levitas na manutenção de um culto íntegro ao Senhor e, durante uns três anos, ficou em paz…
Mas, abundância e paz relativamente duradouras, podem favorecer à nossa amnésia conivente com pecado e arrogância, relaxando em nós o senso de gratidão e de fidelidade ao Senhor, produzindo o ilusório sentimento tão agradável de autonomia.
O cronista relata: “Tendo Roboão confirmado o reino e havendo-se fortalecido, deixou a lei do SENHOR, e, com ele, todo o Israel” (2Cr 12.1).
Mas, a disciplina de Deus vem:
2No ano quinto do rei Roboão, Sisaque, rei do Egito, subiu contra Jerusalém (porque tinham transgredido contra o SENHOR), 3 com mil e duzentos carros e sessenta mil cavaleiros; era inumerável a gente que vinha com ele do Egito, de líbios, suquitas e etíopes. 4 Tomou as cidades fortificadas que pertenciam a Judá e veio a Jerusalém. (2Cr 12.2-4).
Arrependimento e confissão
Roboão se arrepende de seu pecado, se humilha e ora ao Senhor, que em sua infinita misericórdia o atendeu considerando a aliança que fizera com Davi. Como o próprio Davi afirmara após a promessa de Deus, a palavra do Senhor é verdade. Portanto, as suas promessas são verdadeiras.[7]
5 Então, veio Semaías, o profeta, a Roboão e aos príncipes de Judá, que, por causa de Sisaque, se ajuntaram em Jerusalém, e disse-lhes: Assim diz o SENHOR: Vós me deixastes a mim, pelo que eu também vos deixei em poder de Sisaque. 6 Então, se humilharam os príncipes de Israel e o rei e disseram: O SENHOR é justo. 7 Vendo, pois, o SENHOR que se humilharam, veio a palavra do SENHOR a Semaías, dizendo: Humilharam-se, não os destruirei; antes, em breve lhes darei socorro, para que o meu furor não se derrame sobre Jerusalém, por intermédio de Sisaque. 8 Porém serão seus servos, para que conheçam a diferença entre a minha servidão e a servidão dos reinos da terra. 9 Subiu, pois, Sisaque, rei do Egito, contra Jerusalém e tomou os tesouros da Casa do SENHOR e os tesouros da casa do rei; tomou tudo. Também levou todos os escudos de ouro que Salomão tinha feito. 10 Em lugar destes fez o rei Roboão escudos de bronze e os entregou nas mãos dos capitães da guarda, que guardavam a porta da casa do rei. 11Toda vez que o rei entrava na Casa do SENHOR, os da guarda vinham, e usavam os escudos, e tornavam a trazê-los para a câmara da guarda. 12Tendo-se ele humilhado, apartou-se dele a ira do SENHOR para que não o destruísse de todo; porque em Judá ainda havia boas coisas. (2Cr 12.5-12).
Soberania e disciplina
O salmista considerando a soberania e sabedoria de Deus, exorta os senhores da terra a que usem de seu bom senso e − percebendo que todo o poder pertence a Deus −, se deixem instruir e corrigir pelo Senhor: “Agora, pois, ó reis, sede prudentes (sakal);[8] deixai-vos advertir (yasar) (= instruir, ensinar), juízes da terra” (Sl 2.10).
A disciplina de Deus destrói a nossa arrogância, admite o salmista: “Quando castigas o homem com repreensões (yasar), por causa da iniquidade, destróis nele, como traça, o que tem de precioso. Com efeito, todo homem é pura vaidade (hebel) (Sopro,[9] vão,[10] vaidade,[11] vãos[12])” (Sl 39.11).
Deus nos trata como de fato somos, seus filhos. Por isso mesmo Ele expressa o seu cuidado conosco nos disciplinando: “Sabe, pois, no teu coração, que, como um homem disciplina (yasar) (= instruir,[13] ensinar,[14] castigar[15]) a seu filho, assim te disciplina (yasar) o SENHOR, teu Deus” (Dt 8.5/Dt 21.18).
Culto meramente formal
O Antigo Testamento também demonstra que Deus repreende o seu povo devido à prática de uma culto meramente formal, não acompanhado de atitudes condizentes com a sua instrução:
8 Não te repreendo (yakach) pelos teus sacrifícios, nem pelos teus holocaustos continuamente perante mim. (…) 14 Oferece a Deus sacrifício de ações de graças e cumpre os teus votos para com o Altíssimo; 15 invoca-me no dia da angústia; eu te livrarei, e tu me glorificarás. 16 Mas ao ímpio diz Deus: De que te serve repetires os meus preceitos e teres nos lábios a minha aliança, 17 uma vez que aborreces a disciplina e rejeitas as minhas palavras? (…) 22 Considerai, pois, nisto, vós que vos esqueceis de Deus, para que não vos despedace, sem haver quem vos livre. 23 O que me oferece sacrifício de ações de graças, esse me glorificará; e ao que prepara o seu caminho, dar-lhe-ei que veja a salvação de Deus. (Sl 50.8;14-17; 22-23).
Princípio pedagógico
Na disciplina de Deus vemos um princípio pedagógico que serve de modelo para os pais. Por meio de Salomão, Deus nos instrui: “Castiga (rs;y”) (yasar) a teu filho, enquanto há esperança, mas não te excedas a ponto de matá-lo” (Pv 19.18). Outra vez: “Corrige (rs;y”) (yasar) o teu filho, e te dará descanso, dará delícias à tua alma” (Pv 29.17).
Deus exorta Jerusalém para que aceite a disciplina de Deus e se corrija: “Aceita a disciplina (yasar), ó Jerusalém, para que eu não me aparte de ti; para que eu não te torne em assolação e terra não habitada” (Jr 6.8)
De semelhante modo, nos aconselha Salomão a não rejeitarmos a disciplina do Senhor. Ela é uma expressão do seu amor paternal:
Filho meu, não rejeites a disciplina (musar) do Senhor, nem te enfades de sua repreensão (towkechah) (= replicar,[16] castigo[17]). Porque o Senhor repreende a quem ama, assim como o Pai ao filho a quem quer bem” (Pv 3.11-12).
Portanto, o nosso Rei e Pastor cuida de nós. A sua disciplina amorosa sobre nós quando pecamos, é uma expressão de seu zelo para conosco, nos purificando em santidade até o fim.
[1] Tratarei mais abaixo desta palavra.
[2] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 32.1), p. 40.
[3] Veja-se: R.C. Sproul, A Alma em Busca de Deus: Satisfazendo a fome espiritual pela comunhão com Deus, São Paulo: Eclesia, 1998, p. 170.
[4] Veja-se: Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 182.
[5]Veja-se de modo ilustrativo o caso dos filhos de Eli. (1Sm 2.12-17; 22-26;34; 4.10-11).
[6]“Às vezes Deus precisa nos castigar a fim de nos aproximar um pouco mais de Si mesmo” (D.M. Lloyd-Jones, Não se perturbe o coração de vocês, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2016, p. 47)
[7]“28 Agora, pois, ó SENHOR Deus, tu mesmo és Deus, e as tuas palavras são verdade, e tens prometido a teu servo este bem. 29 Sê, pois, agora, servido de abençoar a casa do teu servo, a fim de permanecer para sempre diante de ti, pois tu, ó SENHOR Deus, o disseste; e, com a tua bênção, será, para sempre, bendita a casa do teu servo” (2Sm 7.28-29).
[8]Vejam-se: Louis Goldberg, Sakal: In: R. Laird Haris, et. al. eds. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1478-1480; William Gesenius, Hebrew-Chaldee Lexicon to the Old Testament, 3. ed. Michigan: WM. Eerdmans Publishing Co. 1978, 789-790; Robert B. Girdlestone, Synonyms of the Old Testament, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, (1897), Reprinted, 1981, p. 74, 224-225.
[9]Jó 7.16.
[10] Sl 39.6.
[11] Sl 62.9.
[12] Sl 94.11.
[13]1Cr 15.22; Jó 4.3.
[14] Dt 4.36.
[15] Dt 21.18.
[16] Sl 38.14.
[17] Sl 39.11; 73.14