Elizabeth Elliot, seu amor por Deus e por Jim

O dilema entre o amor e a obediência a Deus

Acesso a todos os E-books da Editora Fiel por R$ 9,90.

“Buscar seus próprios interesses é a porta pela qual uma alma se afasta da paz; abandonar-se totalmente à vontade de Deus, aquela pela qual ela retorna.” — Madame Guyon

O ano de 1951 começou com Betty morando na casa de seus pais em Moorestown. Ela passara os últimos meses ensinando oratória na Hampden DuBose Academy, onde multidões de azáleas ainda floresciam, musgo espanhol balançava levemente na brisa, e os alunos ainda poliam prata e confessavam seus pecados quando a necessidade surgia. Agora, em Nova Jersey, Betty tutoreava moças do ensino médio, liderava a escola dominical infantil e os clubes bíblicos da tarde e trabalhava em uma loja de departamentos feminina na Filadélfia.

Betty sabia que nenhum desses empreendimentos era o chamado de sua vida. Onde Deus queria que ela servisse? Ela revirava as possibilidades em sua mente. Ficava pensando naquelas pessoas cujos passos pareciam ser como paralelepípedos, cada um iluminado pelo Senhor como um caminho brilhante, pessoas que experimentavam “milagres”, “surpresas”, “portas abertas” e outras indicações claras da vontade de Deus se desdobrando em uma sequência organizada.

A tentação, dizia ela, era esperar que Deus a guiasse do mesmo modo como guiava outras pessoas que ela conhecia. Mas a Bíblia “está repleta de exemplos de como ele conduz suas ovelhas individualmente. Para mim, ele não escolheu dar aqueles sinais que pode manifestar a outrem. Ele não me guiou de nenhum modo espetacular, ou por passos que pudessem servir de evidências a outros. Em vez disso, meu Pai abriu silenciosamente o caminho, tantas vezes depois de a sua filha ficar muito tempo ‘sentada e calada’; de repetidas decepções; de ‘esperanças adiadas’; e, finalmente, vinha a revelação de algum plano que de modo nenhum correspondia às minhas expectativas”. Enquanto Betty esperava pelo plano de Deus, ela se sentia despojada das coisas que lhe davam propósito e significado. Ela escreveu em seu diário: “Realmente creio que há um momento, no progresso da alma que de fato deseja se conformar à imagem de Cristo, no qual Deus arranca dela não apenas os adereços terrenos — na forma de amigos, possessões, talentos ou tudo o mais que ela tenha fora de Deus —, mas no qual o onisciente e todo-amoroso Pai arranca dessa alma até a consciência e evidência de suas próprias bênçãos e dons”.

Estas bênçãos e dons incluíam coisas como alegria, senso da proximidade divina, os frutos do ministério de alguém… Porém, quando alguém é despojado de todas as evidências externas das bênçãos de Deus, há um conforto mais profundo. “A alma que ama a Deus só por causa dele mesmo, independentemente de suas dádivas, conhece paz indizível.”

Talvez Betty estivesse lendo Jonathan Edwards, que acertou precisamente o mesmo pensamento em suas famosas distinções entre várias formas de gratidão. Ou talvez não, e o Espírito Santo a levou à mesma conclusão do grande pregador. Edwards escreveu em seu livro Afeições religiosas que os seres humanos mais ponderados possuem um senso de gratidão pelas dádivas de Deus: a vida, a saúde, um dia limpo e azul-celeste. Ele chamou isso de gratidão natural. Tal sentimento, embora um bem comum, não é suficiente para nos incitar a um amor verdadeiro e profundo pelo Doador. Se as pessoas amam a Deus apenas pelo que ele dá, Edwards aponta que este “é um princípio que até os animais exercem: o cão ama o dono que o trata bem”.[i]

Como Betty Howard escreveu, há um senso de gratidão mais profundo, mais misterioso e mais sustentador: ações de graças a Deus não pelo que ele dá, mas por quem ele é. Edwards denominou isso de gratidão sobrenatural e disse que é a marca do Espírito Santo na vida do crente. Essa gratidão radical e graciosa pode prosperar mesmo em meio a momentos de dor, problemas e angústia. É relacional, em vez de condicional, atraindo o ser humano que conhece a Deus para uma intimidade mais próxima com ele.

Mesmo em seus vinte e poucos anos, Betty Howard já praticava essa forma radical de gratidão.[ii] Nos anos de seu relacionamento epistolar com Jim Elliot, seu isolamento em Oklahoma, sua perseverança em Patience, sua aventura na Flórida e seu cansativo trabalho em Nova Jersey, ela tinha um fundamento que era mais forte do que seus sentimentos.

No início de 1951, encontramos Jim Elliot em uma pequena cidade chamada Chester, no rio Mississippi, não muito longe de Saint Louis. Ele e seu amigo de Wheaton, Ed McCully, dividiam o aluguel de 40 dólares de um apartamento de dois cômodos e lançavam um ministério de rádio e ensino, enquanto viajavam e falavam em várias igrejas. Jim estava considerando o trabalho missionário na Índia e recebera uma oferta de emprego como professor do sétimo e oitavo anos no Canadá. Mas ele também se correspondia com um missionário britânico no Equador, Wilfred Tidmarsh. O Dr. Tidmarsh era oriundo dos Irmãos de Plymouth, como Jim e Ed. O doutorado de Tidmarsh era em filosofia, não medicina, embora ele fosse treinado em homeopatia. Ele estava à procura de jovens dedicados e competentes que pudessem continuar seu trabalho entre os índios quíchua depois que ele finalmente se aposentasse.

No entanto, Ed não duraria muito naquela vida de solteiro. Em meio aos seus compromissos como palestrante, ele conhecera uma jovem brilhante chamada Marilou em uma igreja em Michigan. Ela e Ed noivaram e se casaram naquele verão.

Betty não desfrutaria de tal entusiasmo. Ela ainda estava na casa dos pais em Nova Jersey, passando muito tempo sozinha.

Seu diário de 1951 representa uma espécie de transição. Seus primeiros registros mostram uma conversa quase constante com Deus, oferecendo continuamente sua devoção e louvor a ele. Ela reflete longamente sobre a redenção da natureza e a natureza diária da fé. Enxerga o desvelar da vontade de Deus como um “‘thriller de mistério’ (embora muito melhor) […] Não se tem ideia do que o próximo capítulo pode desvelar, e há nisso algo de um espírito aventureiro, embora, diferente do que “aventura” pode conotar, não haja nenhum elemento de incerteza. A própria palavra ‘fé’ exclui a possibilidade de dúvida”.

Ela cita várias verdades extraídas de sua leitura constante e muitas vezes obscura, como a biografia de Frances Ridley Havergal, uma escritora de hinos britânica do século XIX. “A sua leitura fez o que outras biografias cristãs têm feito — aprofundou minha fome de conhecer a Cristo em sua plenitude, de viver inteiramente ‘para aquele que por nós morreu.’”

Betty absorve livros como The Life of Madame Guyon [“A vida de Madame Guyon”]; The Maxims of the Saints [“As máximas dos santos”], de Fénelon; e um livro do século XVII chamado A vida de Deus na alma do homem, de Henry Scougal. Ela lia Dostoiévski e Thomas Mann. Quando Amy Carmichael falece no início do ano, ela reflete sobre a grande influência de sua vida e seus escritos.

Naquela primavera, ela “seguiu o Senhor nas águas do batismo. Oh, aquilo foi doce”. Ela orava com frequência por seu irmão mais velho, Phil, que estava passando por uma espécie de crise espiritual. Ela pensava em ir para um campo missionário no Pacífico Sul.

Então, na metade de 1951, Betty teve uma mudança de tom.

Seu diário ainda é espiritualmente sério, é claro, e narra uma vida comprometida com Cristo acima de tudo. Sua autora ainda é poderosamente intelectual em suas reflexões pessoais. Mas a tendência geral é diferente. As páginas mostram menos daquele senso de cristianismo meticuloso e mais das pulsações de um ser humano de carne e osso, apaixonado por Jesus… e por Jim Elliot. “Meu coração está em paz, mais do que tenho conhecido, quanto a Jim. Eu o amo de todo o coração, e parece que Deus mais uma vez nos guiou retamente.”

Alguns meses antes, os Elliots haviam visitado a família Howard e as fortes ressalvas que tinham tido sobre Betty durante sua visita desastrosa a Portland pareciam ter diminuído. Jim lamentava profundamente sua crueldade ao revelar as críticas deles a Betty — “Realmente me espanto por ter sido capaz de escrever aquilo”.[iii]

No início de outubro de 1951, Jim e seu amigo Pete Fleming viajaram para a Costa Leste. Pete, também de uma tradição dos Irmãos de Plymouth, era um velho amigo de Jim vindo do Oregon; as famílias de ambos se conheciam. Pete estudara literatura na graduação, obtivera seu mestrado e inicialmente planejara fazer doutorado e lecionar em nível universitário. Depois, em vez disso, ele pensara seriamente em entrar no seminário. Agora, a influência de Jim o estava atraindo para o campo missionário. Juntamente com Jim, ele conversara longamente com o Dr. Tidmarsh quando o missionário veterano visitava o Pacífico Noroeste e, agora, eles acreditavam que Deus os estava chamando a trabalhar com Tidmarsh entre os índios quíchua no Equador. Como Jim, Pete também estava intrigado com a ideia de alcançar tribos que nunca tinham ouvido falar de Jesus — como os violentos waorani da selva amazônica.

Betty, Jim, Pete e Phil e Margaret (o irmão mais velho de Betty e sua esposa) passaram um tempo “glorioso” de caminhadas e alpinismo em New Hampshire.

Após a caminhada, Betty escreveu: “Desfrutar a natureza — toda a formosura que nosso Pai fez com as mãos — é uma alegria redobrada ao lado de Jim. Nossas mentes funcionam de modos semelhantes — complementando-se, combinando-se e encontrando-se. […] O simples fato de estar com ele é paz — paz”.

“Não há mais dúvida no meu coração — eu o amo. Eu o amo como nunca pensei que pudesse amar alguém. O pensamento de continuar sem ele quase me dá calafrios.”

Porém…

“Jim tem certeza de que Deus o quer no campo [missionário] como um homem solteiro. Que o Deus de toda paz lhe conceda a imensa graça a qual será necessária, a força para suportar as tentações que abundam em tamanha fortaleza de Satanás.”

Após a partida de Jim, Betty escreveu: “Sozinha. Jim se foi […] Sinto-me absolutamente vazia, oca, doendo de solidão. Eu quero Jim. Eu o amo fortemente, profundamente, poderosamente. Ele é minha vida. […] Nossas paixões e afeições naturais são despertadas, vivificadas, canalizadas pelo amor de Deus”.

Mesmo que Jim tivesse falado com Betty sobre a possibilidade de noivado, embora soubesse que “ainda não é o tempo do Senhor”, ele também estava confuso, questionando-se em seu diário sobre “transpor todas as velhas barreiras que levantei contra o casamento. Há de ser, afinal, aquela vida convencional de tapetes, eletrodomésticos e bebês? Será que o exemplo do [apóstolo] Paulo em sua intensidade solteira está além do meu alcance? Será, enfim, que não estou entre aqueles que se tornam eunucos por causa do reino?”[iv]

“Não há uma resolução em minha mente, num ou noutro sentido”, escreveu o miserável Jim, “embora eu sinta fortemente que, para a minha própria estabilidade, para o alívio de Betty e para a língua de muitos, eu deveria comprar um anel”.

“Senhor, qual o caminho? […] O que direi acerca de toda a liberdade que me foi dada para pregar a adesão ao método paulino — até mesmo aos homens solteiros que trabalham no campo, ilustrando-a com a minha própria intenção e a de Pete? Em vez disso, o que pensarão os homens que me ouviram dizer: ‘Vou solteiro, na vontade de Deus’, quando, se eu realmente ficar noivo, meus planos forem de outra maneira? Bem, está nas mãos de Deus. Ele me dirigiu a falar daquela maneira. E, além do mais, um homem noivo ainda está solteiro, mas com a intenção de se casar. E Paulo queria que eu estivesse livre de preocupações… Será que ele alguma vez amou uma mulher?”

“Eu a quero mais hoje do que jamais a quis desde que a deixei. Preciso dela para purificar meus desejos, para me elevar acima da lascívia. Preciso de seu conselho, sua atitude, sua força, seus dedos, sua fronte e seus seios. Meu Deus do céu, como é a minha natureza! Oh, que eu jamais houvesse provado uma mulher, de modo que a sede por ela agora não fosse tão intensa, ao lembrar-me. Não é bom que o homem esteja só — não este homem, de maneira alguma.”[v]

Este artigo é um trecho adaptado e retirado com permissão do livro Moldada por Deus, de Ellen Vaughn, o qual é o volume 1 do box Elisabeth Elliot: uma biografia autorizada (em breve pela editora Fiel).


[i] Jonathan Edwards. Afeições religiosas (São Paulo: Vida Nova, 2018), p. 162.

[ii] Cf. Ellen Vaughn, Radical Gratitude (Grand Rapids: Zondervan, 2005). Quando escrevi este livro há quinze anos, eu não havia mergulhado, como agora mergulhei, nos escritos de Elisabeth Elliot; porém, dei um sorriso ao encontrar tal congruência em nossas conclusões sobre o poder da gratidão radical.

[iii] JE para EH, 28 de novembro de 1950.

[iv] Elisabeth Elliot (ed.), The Journals of Jim Elliot (Old Tappan, NJ: Fleming H. Revell Company, 1978), p. 349.

[v] Ibid.

Por: Ellen Vaughn ©MinistérioFiel. Website: ministeriofiel.com.br. Todos os direitos reservados. Revisão: Vinicius Lima. Editor: Renata Gandolfo.