Um blog do Ministério Fiel
Contar aos nossos filhos as maravilhas do Rei e Pastor
Nosso Deus é Senhor da história
Conforme já tivemos a oportunidade de comentar, a forma cristã de conceber o tempo, mesmo com as suas variações, influenciou diretamente todo o mundo Ocidental. A compreensão de que o tempo tem um início, meio e fim era totalmente estranha às culturas pagãs.[1]
A questão da história e do tempo é fundamental para o Cristianismo pela sua própria constituição. Não vou aqui tratar da concepção de Agostinho. Já o fiz rapidamente aqui e de forma um pouco mais elaborada em outro lugar.[2]
O sentido da história
Deus é o senhor da história. Não simplesmente da suposta “história da igreja”, como se fosse algo à parte, distante e santificada.
A história, toda ela está sob a direção de Deus. Nós fracionamos aspectos da história para poder, quem sabe, nos especializar em algum tema. Contudo, a história, em nenhum de seus aspectos e vertentes, é indiferente a Deus e a seus propósitos.
A história é a execução do plano de Deus, conduzindo todos os acontecimentos para a sua Glória. A história caminha rumo à eternidade – não de forma necessária, deteriorante ou aperfeiçoante –, mas progressiva e realizante.
Com isso queremos dizer que o homem não está necessariamente pior nem melhor, mas que, o hoje, independentemente disso, está mais próximo do fim, do que ontem (Rm 13.11).
Observe que nessa afirmação Deus está essencialmente pressuposto. Sem a compreensão de um Deus infinito – Todo-Poderoso que transcende a história – e pessoal – que se relaciona conosco na história de forma amorosa e inteligente –, a história nunca fará sentido, exceto dentro de um quadro de referência moldado estoicamente pela aceitação das contradições ou, simplesmente, pela total aceitação da falta de sentido.
A história, para nós cristãos, encontra o seu sentido nas Escrituras. Ali temos uma amostragem clara e objetiva que nos permite analisar os fatos, certos da direção de Deus e do triunfo de seu propósito.[3]
A angústia da igreja
Muitas vezes a Igreja se angustia por não entender a história como o Reinado de Cristo; nesta falta de perspectiva, a Igreja se apavora diante das mudanças que ocorrem cada vez mais intensamente em todos os setores da vida.
As verdades cristãs enquanto verdades absolutas têm o seu lugar na história. Elas apontam de forma definida para o pós-histórico; quando a veracidade de tais ensinamentos poderão, finalmente, ser verificados à luz do eterno.
Hoekema (1913-1988) escreveu:
Deus está desenvolvendo seu plano na história. Indivíduos podem rebelar-se contra Deus e tentar frustrar seu plano. Outros tentarão realizar sua vontade e viver para o progresso do seu reinado. Em ambos os casos, Deus permanece no controle.[4]
Jesus é o sinal definitivo da dimensão do eterno na história. Nele – na encarnação – a história encontrou o seu sentido e nele – no seu regresso triunfante –, ela terá a sua consumação.
A Igreja como sinal do eterno no tempo
Como sinal do eterno no tempo, Deus estabelece a sua Igreja, planejada na eternidade e formada no tempo, a qual revela a “multiforme sabedoria de Deus” (Ef 3.8-13):[5] A Igreja é o sinal do eterno no tempo; é Deus se agenciando no mundo por meio dela.
A Igreja luta agora no mundo contra os poderes demoníacos. Todavia, em essência ela pertence à era por vir, visto ser filha da eternidade e não do tempo.[6] Ela é na presente era a manifestação, ainda que limitada e imperfeita, do Reino: “A igreja é o centro vivo e ardente do reino, uma testemunha de sua presença e poder, e um precursor de sua vinda final”, interpreta Stob.[7]
Devemos ressaltar que quando falamos da Igreja que é alvo do estudo histórico, referimo-nos não à “Igreja Invisível”, o Corpo de Cristo, mas à “Igreja Visível”,[8] histórica, com suas assimilações culturais, sendo agente de transformação e também de acomodação cultural.
“Deus deve ser reconhecido e proclamado na história. A história do mundo deve ser assinalada como os anais do governo do Rei Soberano”, declara – diz D’Aubigné (1794-1872).[9]
Os atos livres dos homens e o governo de Deus
Conforme já vimos, os atos livres dos homens concorrem de uma forma ou de outra, para a execução do plano de Deus. Apesar dos irmãos de José livremente intentarem o mal contra ele, Deus realizou a sua obra por meio deste ato invejoso (Gn 45.5-8; 50.19,20; Sl 105.17).
As autoridades religiosas promoveram a horrenda condenação e morte do Senhor Jesus Cristo, entretanto, eles cumpriram livremente a vontade de Deus (At 4.27-28/2.23/Jo 10.17-18).[10]
Mesmo que não possamos discernir o propósito de Deus em todos os atos da história, não podemos duvidar dele. Deus controla o seu povo e os seus inimigos; não há força neste mundo que não esteja sob o domínio de Deus.
O fato de não entendermos perfeitamente os propósitos de Deus, é inteiramente natural; afinal, Deus é o Senhor Eterno e Onisciente. Os caminhos de Deus não são os nossos caminhos; a sua mente é inescrutável (Is 55.8,9; Rm 11.33).[11]
Muitos dos salmos bíblicos revelam a angústia própria de nossa finitude diante da incompreensão da história, especialmente nos momentos de aflição. Ao mesmo tempo, esses salmos testemunham a confiança desses homens no Deus providente e Todo-Poderoso, que cuida de seu povo permanecendo sempre no controle da história.
Ensino instituído por Deus
No salmo 78 o salmista relembra a história de Israel desde o êxodo do Egito até o governo de Davi conforme aprendera de seus pais. Ele o faz com um tom não meramente narrativo, mas também, de louvor: “3 O que ouvimos e aprendemos, o que nos contaram (saphar) nossos pais, 4 não o encobriremos a seus filhos; contaremos (saphar) à vindoura geração os louvores do SENHOR, e o seu poder, e as maravilhas que fez” (Sl 78.3-4).
Na realidade foi Deus quem prescreveu essa forma de ensino visando à fidelidade do seu povo:
5 Ele estabeleceu um testemunho em Jacó, e instituiu uma lei em Israel, e ordenou a nossos pais que os transmitissem a seus filhos, 6 a fim de que a nova geração os conhecesse, filhos que ainda hão de nascer se levantassem e por sua vez os referissem (saphar) aos seus descendentes; 7 para que pusessem em Deus a sua confiança e não se esquecessem dos feitos de Deus, mas lhe observassem os mandamentos; 8 e que não fossem, como seus pais, geração obstinada e rebelde, geração de coração inconstante, e cujo espírito não foi fiel a Deus. (Sl 78.5-8).
Mais tarde, no nono século a.C., em período turbulento, sob o governo tenebroso de Atalia que objetivava extinguir a linhagem real, Deus fala por meio do profeta Joel: “Narrai (saphar) isto a vossos filhos, e vossos filhos o façam a seus filhos, e os filhos destes, à outra geração” (Jl 1.3).
O esquecimento dos feitos de Deus
A nossa palavra “memória” vem do latim “memoria”, de memor-oris “que se lembra”, relacionado com reminisse, lembrar. “aquilo que se conserva na memória”.[12]
No grego clássico, Aristóteles (384-322 a.C.) empregou duas palavras, denominando a primeira de “memória” (“a simples conservação do passado e o seu retorno espontâneo ao espírito”) e a segunda, que é um atributo humano, de “reminiscência” (“a faculdade de provocar voluntariamente as recordações por um esforço intelectual, e de localizá-las exatamente no tempo”), permanecendo esta distinção durante toda a Idade Média.[13]
Biblicamente, um dos efeitos do pecado é o esquecimento dos feitos de Deus.
Asafe que narra os atos de Deus na história, também diz a respeito do povo de Israel: “Esqueceram-se das suas obras e das maravilhas que lhes mostrara” (Sl 78.11).
Método de ensino
Uma forma comum de ensino utilizada no Antigo Testamento é a meditação sobre os feitos de Deus na história, considerando a sua santidade, onipotência, misericórdia, amor e justiça (Ex 10.2; 12.26-27; 13.8,14; Dt 32.7).[14]
Por intermédio dos atos de Deus, são destacadas atitudes corretas e inapropriadas dos servos de Deus. De certa forma o erro também é valorizado a fim de não repeti-lo. Portanto, a história tem um valor prático para todos os fiéis, sendo um tesouro de admoestação e encorajamento; de consolo e de orientação.[15] A história demonstra como Deus tem preservado o seu povo apesar de sua frequente desobediência.
Na recordação dos atos de Deus, não há apenas um olhar curioso sobre fatos que ocorreram num tempo próximo ou distante, mas, sem significado para nós. Pelo contrário, no rememorar de sua história, há um interagir evolutivo por meio do qual cada vez mais me vejo como resultado daqueles acontecimentos os quais têm a minha participação hoje.
Nas instruções litúrgicas, prescrevendo o modo como cada um se apresentaria diante de Deus com as suas oferendas, há as seguintes orientações:[16]
Então, testificarás perante o SENHOR, teu Deus, e dirás: Arameu prestes a perecer foi meu pai, e desceu para o Egito, e ali viveu como estrangeiro com pouca gente; e ali veio a ser nação grande, forte e numerosa. Mas os egípcios nos maltrataram, e afligiram, e nos impuseram dura servidão. Clamamos ao SENHOR, Deus de nossos pais; e o SENHOR se atentou para a nossa angústia, para o nosso trabalho e para a nossa opressão; e o SENHOR nos tirou do Egito com poderosa mão, e com braço estendido, e com grande espanto, e com sinais, e com milagres; e nos trouxe a este lugar e nos deu esta terra, terra que mana leite e mel. Eis que, agora, trago as primícias dos frutos da terra que tu, ó SENHOR, me deste…. (Dt 26.5-10). (Destaques meus)
[1]Ernst von Dobschütz, Zeit Und Raum Im Denken Des Urchristentums (Tempo e espaço no pensamento do Cristianismo primitivo): In: Journal of Biblical Literature 41, no. 3/4 (1922): 212–223. (https://doi.org/10.2307/3260097) (Consultado em 19.01.2025); Gene Edward Veith, Jr., De Todo o Teu Entendimento, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 22-23.
[2] Hermisten M.P. Costa, O Homem no teatro de Deus: Providência, tempo, história e circunstância, Eusébio, CE.: Peregrino, 2019.
[3] “Tente explicar a história deste mundo excluindo Deus! você não conseguirá. A Bíblia é o melhor livro de história que existe. É nas suas páginas que você realmente começa a entender a história” (David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a ira de Deus: Estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 71).
[4] A.A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, p. 38.
[5]A Igreja é o meio pelo qual a sabedoria se torna manifesta. A Igreja é uma espécie de prisma posto no caminho da luz para repartir o resplendor nas cores do espectro (…). É através da Igreja, como um meio, que os anjos têm recebido esta nova concepção da transcendente glória da sabedoria de Deus (…). A Igreja Cristã é mais maravilhosa do que qualquer coisa visível na natureza (…). Como membros do corpo de Cristo somos o mais maravilhoso fenômeno do universo, a coisa mais admirável que Deus fez” (D. Martyn Lloyd-Jones, As Insondáveis Riquezas de Cristo, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1992, p. 76-77). “A igreja é seu teatro em que contemplam, extasiados, a variada e multiforme sabedoria de Deus” (João Calvino, As Institutas, III.20.23).
[6] Veja-se: Gustaf Aulén, A Fé Cristã, São Paulo: ASTE, 1965, p. 294.
[7]Enrique Stob, Reflexiones Éticas: Ensayos sobre temas morales, Grand Rapids, Michigan: T.E.L.L., 1982, p. 68.
[8] Quanto à distinção. veja-se: Confissão de Westminster, Cap. 25.
[9] J.H. Merle D’Aubigné, História da Reforma no Décimo-Sexto Século, São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, [s.d.], v. 1, p. 9.
[10]Vejam-se: João Calvino, As Institutas, I.17.2,5; I.18.1-2.
[11] Veja-se: João Calvino, As Institutas, I.17.2.
[12] Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, 2. ed. [4. impressão], Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991, p. 512.
[13] Cf. Memória e Reminiscência: In: André Lalande, Vocabulário Técnico e Crítico da Filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 662, 952. Em Platão, a (Reminiscência) consistia no nosso poder de conhecer a verdade por meio da lembrança de um estado de vida anterior. Diz ele: “A alma que nunca contemplou a verdade não pode tomar a forma humana. (…) Ora, esta faculdade não é mais que a recordação das Verdades Eternas que a nossa alma contemplou quando acompanhou a alma divina nas suas evoluções. Por isso convém que somente o espírito do filósofo tenha asas: nele a memória, conforme sua aptidão, permanece sempre fixada nesses objetos, o que o torna semelhante a um deus” (Platão, Fedro, Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, [s.d.], 249, p. 228). Quanto às implicações epistemológicas desta concepção platônica, veja-se: F.E. Peters, Termos Filosóficos Gregos: Um léxico histórico, 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, [1983], p. 30. Para uma visão panorâmica das diversas concepções filosóficas da Memória, veja-se: Memória: In: Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 2. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982, p. 629-632.
[14]“Disse o SENHOR a Moisés: Vai ter com Faraó, porque lhe endureci o coração e o coração de seus oficiais, para que eu faça estes meus sinais no meio deles, e para que contes a teus filhos e aos filhos de teus filhos como zombei dos egípcios e quantos prodígios fiz no meio deles, e para que saibais que eu sou o SENHOR” (Ex 10.1-2). “26 Quando vossos filhos vos perguntarem: Que rito é este? 27 Respondereis: É o sacrifício da Páscoa ao SENHOR, que passou por cima das casas dos filhos de Israel no Egito, quando feriu os egípcios e livrou as nossas casas. Então, o povo se inclinou e adorou” (Ex 12.26-27). “Naquele mesmo dia, contarás a teu filho, dizendo: É isto pelo que o SENHOR me fez, quando saí do Egito. (…) 14Quando teu filho amanhã te perguntar: Que é isso? Responder-lhe-ás: O SENHOR com mão forte nos tirou da casa da servidão” (Ex 13.8,14). “Lembra-te dos dias da antiguidade, atenta para os anos de gerações e gerações; pergunta a teu pai, e ele te informará, aos teus anciãos, e eles to dirão” (Dt 32.7).
[15]“Assim, o mundo se torna culpado não apenas de esquecimento em relação a Deus, mas igualmente de esquecimento da História. Quando aprenderemos a partir da História? Atrás de nós há uma grande História mundial. Então, veja e examine e tente aprender com ela” (David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, 2. ed. Rio de Janeiro: Textus, 2004, p. 49). Dessa forma “os homens e as mulheres são ignorantes da História, porque, se não o fossem, se comportariam de maneira bem diferente” (David Martyn Lloyd-Jones, Uma Nação sob a Ira de Deus: estudos em Isaías 5, p. 49).
[16] Quem me chamou a atenção para este texto foi Sherron K. George, Igreja Ensinadora: fundamentos Bíblicos-Teológicos e Pedagógicos da Educação Cristã, 2. ed. Campinas, SP.: Editora Luz para o Caminho, 2003, p. 44-45.