Um blog do Ministério Fiel
O Espírito como Mestre da oração
O auxílio indispensável do Espírito
A Reforma como movimento de oração
A Reforma Protestante do século XVI foi um movimento espiritual com ramificações em todas as áreas da vida, sendo um grande elemento fomentador da vida intelectual e[1] modelador de uma nova ética fundamentada nas Escrituras.[2]
Valendo-nos das categorias de Schaeffer (1912-1984), podemos dizer que na Reforma tivemos um reavivamento: “Reforma refere-se a uma restauração à doutrina pura; reavivamento refere-se a uma restauração na vida do cristão. Reforma fala de um retorno aos ensinos da Bíblia; reavivamento fala de uma vida levada à sua relação apropriada com o Espírito Santo”.[3] O reavivamento completa a reforma e ambos se completam: “Não pode haver reavivamento verdadeiro a menos que tenha havido reforma; e a reforma não é completa sem reavivamento”.[4]
A Reforma foi também um movimento marcado pela ênfase na oração. Barth (1886-1968), estudando a oração nos Catecismos da Reforma, faz um resumo pertinente:
A Reforma se nos apresenta como um grande conjunto: um grande labor que compreende pesquisas, pensamento, pregação, discussão, polêmica, e organização. Porém, foi mais que tudo isso. Pelo que sabemos, foi também um constante ato de oração, uma invocação e, acrescentemos, uma ação dos homens, de certos homens, ao mesmo tempo que uma resposta da parte de Deus.[5]
Nas 95 teses afixadas por Lutero na Catedral de Wittenberg, lemos na tese 48: “Deve-se ensinar aos cristãos que, se o papa precisa conceder mais indulgências, mais necessita de uma oração fervorosa do que de dinheiro”. A Igreja, portanto, a começar de seu principal líder, precisava da prática fervorosa da oração. A oração sempre deve vir acompanhada da obediência.[6]
O Espírito é o Mestre da oração. A oração é um algo difícil e misterioso. Difícil porque somos fadados a nos dispersar em digressões e devaneios enquanto oramos. Podemos banalizar esse grandioso privilégio com palavrórios inúteis e vazios (Mt 6.5-8).[7] Misterioso porque o Senhor da glória, o Deus santo e majestoso, estabeleceu esse meio de relacionamento conosco e nos ouve com atenção e amor.
A oração, conforme os preceitos bíblicos, está relacionada com a Providência de Deus. Se por um lado, nós não podemos delimitar a ação de Deus às nossas orações, por outro, devemos estar atentos ao fato de que Deus nos abriu a porta da oração a fim de exercitarmos a nossa fé em paciente submissão.
Deus que ordenou os fins, também estabeleceu os meios necessários. Portanto, ambos são inseparáveis.[8] Em muitos casos, ainda que não possamos precisar todos os meios, sabemos que as nossas orações se constituem em meios estabelecidos por Deus dentro da execução de seus propósitos (Jo 16.24; Tg 4.2).
Entendemos que as nossas orações quando feitas por um motivo justo, por meio de Cristo e, partindo de um coração sincero, fazem parte da execução do plano de Deus. “Quando Deus nos dá aquilo que pedimos, é como se essas coisas tivessem nelas a estampa de nossas orações!”, conclui Flavel (c.1627–1691).[9]
Como temos visto, os salmistas, entre tantos outros servos de Deus, em suas angústias, diversas vezes se alimentavam na certeza de que Deus ouve as suas orações.
O Espírito é quem nos ensina a orar como convém; ou seja: orar segundo a vontade de Deus.
A pedagogia da oração
A oração é educativa, pois nos desafia a confiar nas promessas de Deus registradas na sua Palavra e, assim, na medida em que confiamos, podemos amadurecer a nossa fé por meio do aprendizado experiencial de que Deus cumpre fielmente as suas promessas. “Com a oração encontramos e desenterramos os tesouros que se mostram e descobrem à nossa fé pelo Evangelho”, observou Calvino.[10]
Portanto, este tesouro não pode ser negligenciado como se “enterrado e oculto no solo!”.[11] Admite: “Agora, quanto é necessário, e de quantas maneiras o exercício da oração é útil para nós, não se pode explicar satisfatoriamente com palavras”.[12]
Orar em nome de Jesus: harmonizar a nossa vontade com a dele
Outro ponto relevante, é que a oração no Espírito é sempre por intermédio de Cristo. Isso significa que quando oramos, o fazemos por iniciativa do Espírito, por intermédio de Cristo, no nome de Cristo.
Portanto, orar genuinamente significa harmonizar a nossa vontade com a do Filho, alinhando a nossa vontade com a dele.
Orar ao Pai não significa simplesmente usar o seu nome, mas, sim, dirigir-nos de fato a Ele conforme os seus preceitos, em submissão à sua vontade.
Uma oração francamente oposta aos ensinamentos de Jesus não pode ser considerada de fato uma oração dirigida ao Pai, por mais que usemos e repitamos o nome de Jesus.
Quando oramos genuinamente em nome de Cristo, podemos descansar nas promessas de Deus certos de que Ele que nos ouve e, pelo Filho, satisfará as nossas necessidades dentro de seus santos propósitos. Essa certeza, além de alegre e humilde confiança, nos conduz à perseverança em ação de graças (Cl 4.2).[13]
Calvino comenta:
Cristo testifica que, se nossas orações lhe forem endereçadas, não ficarão sem efeito. E deveras sem essa confiança a solicitude da oração seria totalmente arrefecida. Mas quando Cristo satisfaz aos que a ele vão, e se dispõe a satisfazer seus desejos, já não há mais lugar para indolência nem delonga. E não há ninguém que não sinta que isso é dito a todos nós, se não fôssemos impedidos por nossa incredulidade.[14]
Perigo da falsidade ideológica
Deste modo, é necessário que tenhamos cuidado para que não cometamos falsidade ideológica em nossas orações.
Orar em nome de Jesus é dizer ao Pai que o seu Filho eterno, aquele que é santo, o nosso irmão mais velho, subscreveu o que estamos dizendo. Orar no nome de Jesus significa a confiança única e exclusiva na suficiência de seus méritos.[15]
Portanto, não devemos nem podemos pedir qualquer coisa a Deus contrária à vontade de Jesus Cristo, visto que as nossas orações são feitas em seu nome.
A nossa oração não pode ser uma diminuição da santidade de Cristo. Como bem compreendeu Pink (1886-1952), ao escrever:
Solicitar algo a Deus, em nome de Cristo, quer dizer solicitar-lhe algo em harmonia com a natureza de Cristo! Pedir algo em nome de Cristo, a Deus Pai, é como se o próprio Cristo estivesse formulando a petição. Só podemos pedir a Deus aquilo que Cristo pediria. Pedir em nome de Cristo, pois, significa deixar de lado nossa vontade própria, aceitando a vontade do Senhor![16]
Somente o Espírito pode nos mostrar qual é a vontade de Deus e nos capacitar a aceitá-la com fé. Quando oramos no Espírito estamos confessando a nossa pequenez e, ao mesmo tempo, testemunhando a nossa fé na soberania de Deus.
“O Espírito constrói uma determinada atmosfera em torno de toda a oração autêntica, e dentro desse círculo próprio é que a oração vive e triunfa; fora dele, a oração é apenas uma formalidade morta”, enfatiza Spurgeon (1834-1892).[17]
Agostinho (354-430), comentando o Salmo 102.2 – quando o salmista diz “… inclina-me os teus ouvidos; no dia em que eu clamar; dá-te pressa em acudir-me” – faz uma paráfrase: “Escuta-me prontamente, pois peço aquilo que queres dar. Não peço como um homem terreno bens terrenos, mas já redimido do primeiro cativeiro, desejo o reino dos céus”.[18]
As orações, portanto, devem ser feitas ao Pai, sem constrangimento, em nome de Cristo, pelo auxílio do Espírito, segundo a vontade de Deus.
O auxílio indispensável do Espírito
Paulo, discorrendo sobre a fraqueza humana, a exemplifica na vida cristã no fato de nem ao menos sabermos orar como convém (Rm 8.26-27).[19] Por isso, o Espírito que em nós habita nos auxilia em nossas orações, fazendo-nos pedir o que convém, o que é natural e necessário à nossa existência, capacitando-nos a rogar de acordo com a vontade de Deus.
A oração eficaz é aquela que tem o Espírito como seu autor. Sem o auxílio do Espírito jamais oraríamos com discernimento.
Calvino, analisando o fato de que pedimos tantas coisas erradas a Deus e que, se Ele nos concedesse o que solicitamos, traria muitos males sobre nós,[20] ao tratar da Oração do Senhor, afirma:
Nem podemos abrir a boca diante de Deus, sem grave perigo, a não ser que o Espírito nos instrua sobre a norma certa de orar [Rm 8.26]. Em quão maior apreço merece ser julgado entre nós este privilégio, quando o Unigênito Filho de Deus nos sugere à boca palavras que desvencilhem nossa mente de toda vacilação!.[21]
A oração genuína é sempre precedida do senso de necessidade e de uma fé autêntica nas promessas de Deus.[22]
Muitas vezes estamos tão confusos diante das opções que temos, que não sabemos nem mesmo como apresentar os nossos desejos e as nossas dúvidas diante de Deus. Todavia o Espírito nos socorre. Ele “ora a nosso favor quando nós mesmos deveríamos ter orado, porém não sabíamos para que orar”, resume Palmer (1922-1980).[23]
[1] “A Reforma ocupou, e deve continuar a ocupar, um legítimo e significativo lugar na história das ideias” (Alister E. McGrath, The Intellectual Origins of The European Reformation, Cambridge, Massachusetts: Blackwell Publishers, 1995 (reprinted), p. 4). “Além de promover a pregação clara do evangelho, a Reforma moldou a sociedade como um todo, inclusive o governo, a cosmovisão das pessoas e a cultura em todas as suas manifestações” (Francis A. Schaeffer, O Grande Desastre Evangélico. In: Francis A. Schaeffer, A Igreja no Século 21, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 251).
[2] “Desde o princípio, a Reforma foi um movimento tanto religioso quanto ético” (Herman Bavinck, Dogmática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2012, v. 4, p. 180). “A Reforma Protestante não apenas buscou purificar a igreja e livrá-la dos erros doutrinários, como também buscou a restauração da integralidade da vida. Isso acarretou a libertação da vida natural do homem e das várias esferas na sociedade do senhorio excessivo da igreja. Enquanto o Humanismo foi uma tentativa de proclamar a liberdade do homem em relação a Deus e a toda autoridade, reforçando a autonomia contra a heteronomia, os reformadores se uniram em sua paixão pela liberdade do homem cristão, o que significava a subserviência à Palavra do Senhor” (Henry R. Van Til, O conceito calvinista de cultura, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 20).
[3]Francis A. Schaeffer, Morte na Cidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 12.
[4] Francis A. Schaeffer, Morte na Cidade, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 12. “A igreja em nossa geração precisa de reforma, reavivamento e revolução construtiva” (Francis A. Schaeffer, Morte na Cidade, p. 11).
[5]Karl Barth, La Oración, Buenos Aires: La Aurora, 1968, p. 9.
[6] Veja-se: Martinho Lutero, Catecismo Maior: In: Os Catecismos, São Leopoldo, RS.; Porto Alegre: Concórdia; Sinodal, 1983, p. 457ss.
[7] Veja-se: Hermisten M.P. Costa, O Pai Nosso: A Oração do Senhor, São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 25-28.
[8] Veja-se: Paul Helm, A Providência de Deus, São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 196-197.
[9]John Flavel, Se Deus Quiser, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1987, p. 26.
[10]João Calvino, As Institutas, III.20.2.
[11]João Calvino, As Institutas, III.20.1.
[12]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 3, (III.9), p. 92.
[13] “Nós mal podemos conceber a oração, em seu sentido mais elevado, subindo ao trono da graça, sem ações de graça. (…) Oração sem louvor e ações de graça não é oração” (Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 619).
[14]João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 1, (Jo 4. 10), p. 160.
[15]Charles Hodge, Systematic Theology, Grand Rapids, Michigan: Eerdmans, 1976 (Reprinted), v. 3, p. 705.
[16]A.W. Pink, Deus é Soberano, Atibaia, SP.: FIEL, 1977, p. 134. Veja-se também: R. Youngblood, Significados do Nomes nos Tempos Bíblicos. In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova, 1988-1990, v. 3, p. 25.
[17] C.H. Spurgeon, Firmes na Verdade, Lisboa: Edições Peregrino, LDA., 1987, p. 85.
[18] S. Agostinho, Comentários aos Salmos, São Paulo: Paulus, 1998, v. 3, p. 12.
[19]“26 Também o Espírito, semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira, com gemidos inexprimíveis. 27 E aquele que sonda os corações sabe qual é a mente do Espírito, porque segundo a vontade de Deus é que ele intercede pelos santos” (Rm 8.26-27).
[20]Bernardo de Claraval (1090-1153), disse: “Não permitam que eu tenha tamanha miséria, pois dar a mim o que desejo, dar a mim o que meu coração almeja, é um dos mais terríveis julgamentos do mundo” (Apud Jeremiah Burroughs, Aprendendo a Estar Contente, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 1990, p. 28).
[21]João Calvino, As Institutas ou Tratado da Religião Cristã, 2. ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, III.20.34. Comentando o texto de Romanos 8.26, Calvino segue a mesma linha: “O Espírito, portanto, é Quem deve prescrever a forma de nossas orações” (João Calvino, Exposição de Romanos, São Paulo: Paracletos, 1997, (Rm 8.26), p. 291). Ver também, J. Calvino, O Catecismo de Genebra, Perg. 254.
[22] Veja-se: João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 34.
[23] Edwin H. Palmer, El Espíritu Santo, Edinburgh: El Estandarte de la Verdad, [s.d.], Edición revisada, p. 190.