Um blog do Ministério Fiel
O Espírito como Mestre da oração – parte II
As lutas e as benção da vida de oração
Obstáculos de Satanás
Comentando o Salmo 91.12, diz o reformador: “Nunca podemos aquilatar os sérios obstáculos que Satanás poria contra nossas orações se não nos sustentasse Deus da maneira aqui descrita”.[1] Em outro lugar, ilustra a sua tese:
Chamo tentação espiritual quando não somente somos açoitados e afligidos em nossos corpos; senão quando o diabo opera de tal modo em nossos pensamentos que Deus se nos converte em inimigo mortal, ao que já não podemos ter acesso, convencidos de que nunca mais terá misericórdia de nós.[2]
Precisamos, portanto, “que o mesmo Deus nos ensine, conforme ao que Ele sabe que convém, e que Ele nos leve guiando como que pela mão, e que nós o sigamos”.[3]
Orar como convém
Orar como convém é orar segundo a vontade de Deus, colocando os nossos desejos em harmonia com o santo propósito de Deus.[4] Isto só é possível pelo Espírito de Deus que se conhece perfeitamente (1Co 2.10-12).[5] Assim, toda oração genuína é sob a orientação e direção do Espírito (Ef 6.18; Jd 20).[6]
O Catecismo Maior de Westminster nos instrui:
Não sabendo nós o que havemos de pedir, como convém, o Espírito nos assiste em nossa fraqueza, habilitando-nos a saber por quem, pelo quê, e como devemos orar; operando e despertando em nossos corações (embora não em todas as pessoas, nem em todos os tempos, na mesma medida) aquelas apreensões, afetos e graças que são necessários para o bom cumprimento do dever.[7]
Dupla intercessão
O Espírito ora conosco e por nós. Ele, juntamente com Cristo, em esferas diferentes, intercede por nós: “Cristo intercede por nós, no céu, e o Espírito Santo na Terra. Cristo nosso Cabeça Santo, estando ausente de nós, intercede fora de nós; o Espírito Santo, nosso Consolador intercede em nosso próprio coração, que Ele escolheu como seu templo”, contrasta Kuyper (1837-1920).[8]
“A intercessão de Cristo é uma contínua aplicação de sua morte para nossa salvação”, resume Calvino.[9] A força da intercessão de Cristo não está na intensidade ou habilidade de sua defesa, antes, na eficácia de sua propiciação.[10]
Ela respalda-se nos seus merecimentos, obtendo para os seus eleitos, os frutos da sua obra expiatória (Rm 8.34; Hb 7.25; 1Jo 2.1).[11] Nessa obra eficaz de Cristo, temos o fundamento de sua intercessão. Aqui encontramos a garantia de nossa perseverança para salvação.[12]
A sua intercessão, exclusivamente pelos seus discípulos,[13] faz parte de seu ministério sacerdotal, levando sobre si um jugo totalmente desigual e incompreensível a nós, como escreveu meu estimado mestre, Salum: “O Senhor Jesus Cristo, no tribunal divino, intercede pelos seus eleitos e carrega sobre si o peso de uma troca estranha, porém, gloriosa, incompreensível à nossa mente pecaminosa, mas acolhida com júbilo mediante fé (Mt 11.28-30)”.[14]
O Espírito intercede por nós considerando as nossas necessidades vitais e costumeiramente imperceptíveis aos nossos próprios olhos.
Calvino observou que na oração, “a língua nem sempre é necessária, mas a oração verdadeira não pode carecer de inteligência e de afeto de ânimo”,[15] a saber:
O primeiro, que sintamos nossa pobreza e miséria, e que este sentimento gere dor e angústia em nossos ânimos. O segundo, que estejamos inflamados com um veemente e verdadeiro desejo de alcançar misericórdia de Deus, e que este desejo acenda em nós o ardor de orar.[16]
Depois de falar sobre a necessidade de termos grande zelo pelo nome de Deus – zelo este que fez com que o salmista pedisse o castigo de Deus contra os seus inimigos que profanaram o templo, destruíram Jerusalém e mataram seus filhos de forma cruel –, Calvino acrescenta: “Se este sentimento reinasse em nossos corações, o mesmo facilmente moderaria o desgoverno de nossa carne; e se a sabedoria do Espírito lhe fosse acrescida, nossas orações estariam em estrita concordância com os justos juízos de Deus”.[17]
Oração começa em nosso interior
Spener (1635-1705), escrevendo sobre a oração, segue uma linha semelhante: “Não é suficiente que se ore exteriormente, com a boca, pois a oração verdadeira e mais necessária acontece no nosso ser interior, podendo expressar-se em palavras ou permanecer na alma, mas, de qualquer maneira, lá acha e encontra Deus”.[18]
Paulo diz que nós, os crentes em Cristo, recebemos o Espírito de ousada confiança em Deus, que nos leva, na certeza de nossa filiação divina, a clamar “Aba, Pai”: ”Porque não recebestes o espírito de escravidão para viverdes outra vez atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual clamamos Aba, Pai” (Rm 8.15).[19]
O fato de Paulo usar a mesma expressão de Cristo para nós “significa que, quando Jesus deu a Oração Dominical aos seus discípulos, também lhes deu autoridade para segui-lo em se dirigirem a Deus como ‘abbã’, dando-lhes, assim, uma participação na sua condição de Filho”, comenta Hofius.[20]
Somente pelo Espírito poderemos nos dirigir a Deus desta forma, como uma criança que se lança sem reservas nos braços do seu Pai amoroso.
Quando oramos sabemos que estamos falando com o nosso Pai. Desta forma, a oração é uma prerrogativa dos que estão em Cristo. Somente os que estão em Cristo pela fé, têm a Deus como o seu legítimo Pai (Jo 1.12; Rm 8.14-17; Gl 4.6; 1Jo 3.1-2). De onde se segue que a oração do Pai Nosso, apesar de não mencionar explicitamente o nome de Cristo, é feita no Seu nome, visto que somos filhos de Deus – e é nesta condição que nos dirigimos a Deus – por intermédio de Cristo Jesus (Gl 3.26).[21]
Portanto, quando oramos o Pai Nosso sinceramente, na realidade estamos orando no nome de Jesus Cristo, pois, foi Ele mesmo quem nos ensinou a fazê-lo. Assim, devemos, pelo Espírito – nosso intercessor –, no nome de Jesus – nosso Mediador –, orar: “Pai nosso que estás nos céus….”.
O testificar do Espírito
Conforme temos estudado, o Espírito que em nós habita e nos leva à oração, testemunha em nós que somos filhos de Deus;
“O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8.16). O Pai Nosso é a “Oração dos Filhos”.[22] Ou, em outros termos, “a oração do redimido”.[23] É a oração comunitária dos filhos de Deus em adoração.
Valendo-me de expressões de Bonhoeffer (1906-1945), podemos dizer que o Pai Nosso é um “resumo” de todas as orações das Escrituras,[24] tornando-se um “gabarito”, por meio do qual devemos analisar a integridade bíblica de nossa oração.[25]
Oração em busca de plateia e de satisfação pessoal
O problema, dentro do contexto vivido por Jesus, é que muitos dos judeus, na realidade, ofereciam as suas orações aos homens, mesmo usando o nome de Deus. Usar o nome de Deus não é garantia de estarmos nos dirigindo a Ele.
Do mesmo modo, podemos estar tão preocupados com a forma de nossas orações que nos esquecemos do Pai. É a Ele que a nossa oração é destinada. Portanto, cabe a Ele, que vê em secreto, julgá-la.
A nossa oração não necessita de publicidade para que Deus a ouça. Ele vê em secreto e nos recompensa conforme o que vê (Mt 6.6).
No Antigo Testamento, por intermédio de Isaías, Deus recrimina os judeus dizendo que eles sacrificavam simplesmente porque gostavam de fazê-lo, não porque quisessem agradá-Lo. O ritual é que era prazeroso, não a satisfação de Deus:
Como estes escolheram os seus próprios caminhos, e a sua alma se deleita nas suas abominações, assim eu lhes escolherei o infortúnio e farei vir sobre eles o que eles temem; porque clamei e ninguém respondeu, falei, e não escutaram; mas fizeram o que era mau perante mim, e escolheram aquilo em que eu não tinha prazer. (Is 66.3-4).
Orar é exercitar a nossa confiança no Deus da Providência, sabendo que nada nos faltará, porque Ele é o nosso Pai. A oração tem sempre uma conotação de submissão confiante. Portanto, orar ao Pai, como temos demonstrado, significa sintonizar a nossa vontade com a dele; sabendo que Ele é santo e a sua vontade também o é (Mt 6.9,10).[26]
Aprendendo a falar com Deus
Bonhoeffer (1906-1945) comenta:
Uma criança aprende a falar, porque seu pai fala com ela. Ela aprende a falar a língua paterna. Assim também nós aprendemos a falar com Deus, porque Deus falou e fala conosco. Pela palavra do Pai no céu seus filhos aprendem a comunicar-se com Ele. Ao repetir as próprias palavras de Deus, começamos a orar a Ele. Não oramos com a linguagem errada e confusa de nosso coração, mas pela palavra clara e pura que Deus falou a nós por meio de Jesus Cristo, devemos falar com Deus, e Ele nos ouvirá.[27]
A vida Cristã é companheirismo com a Trindade
A presença e direção do Espírito na vida do povo de Deus é uma realidade. Desconsiderar este fato significa desprezar o registro bíblico e o testemunho do Espírito em nós (Rm 8.16).[28] “A vida cristã é companheirismo com o Pai e com o Filho, Jesus Cristo, por meio do Espírito Santo”, comenta Lloyd-Jones.[29]
O Espírito em nós é uma fonte de consolo e estímulo à perseverança e obediência devida a Deus. Consideremos este fato – à luz da Palavra e da nossa experiência – em todos os nossos caminhos, e o Espírito mesmo nos iluminará. Amém.
[1] João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 91.12), p. 454.
[2]Juan Calvino, El Carácter de Job, In: Sermones Sobre Job, Jenison, Michigan: T.E.L.L., 1988, (Sermon nº 1), p. 28. “A falta de confiança nessas preciosas promessas de Deus; a falta de fé em sua disposição e prontidão para ouvir-nos, é um dos maiores e mais comuns defeitos nas orações dos cristãos. Todo o pai anseia pela confiança de seus filhos, e qualquer evidência de desconfiança lhe traz tristeza. Deus é nosso Pai; ele demanda de nós os sentimentos que os filhos devem nutrir para com seus pais terrenos” (Charles Hodge, Teologia Sistemática, São Paulo: Hagnos, 2001, p. 1540).
[3]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 254.
[4]“A oração não é um recurso conveniente para impormos a nossa vontade a Deus, ou para dobrar a Sua vontade à nossa, mas, sim, o meio prescrito de subordinar a nossa vontade à de Deus. É pela oração que buscamos a vontade de Deus, abraçamo-la e nos alinhamos com ela. Toda oração verdadeira é uma variação do tema, ‘Faça-se a tua vontade’.” (John R.W. Stott, I,II e III João, Introdução e Comentário, São Paulo: Vida Nova; Mundo Cristão, 1982, p. 159). Leenhardt comenta: “Para orar ‘como convém’ é preciso orar ‘segundo a vontade de Deus’; isto, entretanto, não pode advir senão de Deus, Que só Se conhece. O mais é ação estéril” (Franz J. Leenhardt, Epístola aos Romanos, São Paulo: ASTE., 1969, p. 226).
[5] “Mas Deus no-lo revelou pelo Espírito; porque o Espírito a todas as coisas perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. 11 Porque qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as coisas de Deus, ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. 12 Ora, nós não temos recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente” (1Co 2.10-12).
[6]“Com toda oração e súplica, orando em todo tempo no Espírito e para isto vigiando com toda perseverança e súplica por todos os santos” (Ef 6.18). “Vós, porém, amados, edificando-vos na vossa fé santíssima, orando no Espírito Santo” (Jd 20).
[7] Catecismo Maior de Westminster, Perg. 182.
[8] Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 634.
[9]John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan: Baker Book House, 1981, v. 22, (1Jo 2.1), p. 171.
[10] Veja-se: B.B. Warfield, O Plano da salvação, Brasília, DF.: Monergismo, 2019, p. 160.
[11] “Não temos como medir esta intercessão pelo nosso critério carnal, pois não podemos pensar do Intercessor como humilde suplicante diante do Pai, com os joelhos genuflexos e com as mãos estendidas. Cristo contudo, com razão intercede por nós, visto que comparece continuamente diante do Pai, como morto e ressurreto, que assume a posição de eterno intercessor, defendendo-nos com eficácia e vívida oração para reconciliar-nos com o Pai e levá-lo a ouvir-nos com prontidão” (J. Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.34), p. 304).
[12]“Esta oração de Cristo é uma armadura segura e quem se abrigar nela estará seguro de todo e qualquer naufrágio; pois é como se Cristo solenemente jurasse que devotaria seu cuidado e diligência em prol de nossa salvação” (João Calvino, O Evangelho segundo João, São José dos Campos, SP.: Editora Fiel, 2015, v. 2, (Jo 17.20), p. 198).
[13]Berkhof (1873-1957) demonstrando a Expiação Limitada de Cristo, enfatizou esse ponto: “A obra sacrificial de Cristo e sua obra intercessória são simplesmente dois aspectos diferentes de sua obra expiatória e, portanto, o alcance de uma não pode ser mais amplo que o da outra. Ora, Cristo limita mui definidamente a sua obra intercessória, quando diz: ‘Não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus’ (Jo 17.9). Por que limitaria ele a sua oração intercessória se, de fato, pagou o preço por todos?” (Louis Berkhof, Teologia Sistemática, Campinas, SP.: Luz para o Caminho, 1990, p. 396).
[14]Oadi Salum, Teologia Sistemática Reformada, São Paulo: Cultura Cristã, 2017, p. 400.
[15]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 240. Para uma interpretação alternativa do texto de Romanos 8.26-27, consulte Wayne A. Grudem, Teologia Sistemática, São Paulo: Vida Nova, p. 916-917, que associa a passagem a “suspiros e gemidos inarticulados que nós mesmos emitimos em oração, que então o Espírito Santo transforma em intercessão efetiva diante do trono divino” (p. 916).
[16]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 243.
[17]João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Edições Parakletos, 2002, v. 3, (Sl 79.12), p. 260.
[18]Ph. J. Spener, Mudança para o Futuro: Pia Desideria, São Paulo; Curitiba, PR.: Encontrão Editora; Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, São Bernardo do Campo, SP.: 1996, p. 119.
[19] Veja-se: Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 618.
[20] O. Hofius, Pai: In: Colin Brown, ed. ger., O Novo Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. 3, p. 383.
[21] Veja-se: João Calvino, As Institutas, III.20.36.
[22] Conforme expressão de Lloyd-Jones (1899-1981) (D.M. Lloyd-Jones, Estudos no Sermão do Monte, São Paulo: FIEL., 1984, p. 358). Veja-se a relação feita por Calvino entre a oração e a convicção de nossa filiação divina (João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 8.16), p. 279-280).
[23] Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 630.
[24]“Todas as orações da Bíblia estão resumidas no Pai Nosso. A sua amplitude infinita abrange-as todas. No entanto, o Pai Nosso não torna as orações da Bíblia supérfluas, mas elas são a riqueza inesgotável do Pai Nosso e o Pai Nosso é sua coroa e síntese” (Dietrich Bonhoeffer, Orando com os salmos, Curitiba, PR.: Editora Encontrão, 1995, p. 15).
[25]“O Pai Nosso se torna o gabarito pelo qual conferimos se estamos orando em nome de Jesus ou em nosso próprio nome” (Dietrich Bonhoeffer, Orando com os salmos, Curitiba, PR.: Editora Encontrão, 1995, p. 15).
[26]“Portanto, vós orareis assim: Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome; venha o teu reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu” (Mt 6.9-10).
[27]Dietrich Bonhoeffer, Orando com os Salmos, Curitiba, PR.: Encontrão Editora, 1995, p. 12-13.
[28] “O próprio Espírito testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus” (Rm 8.16).
[29]D.M. Lloyd-Jones, Salvos desde a Eternidade, São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2005 (Certeza Espiritual: v. 1), p. 98.