O Senhor e Pastor que devemos buscar em oração – Parte II

Deus deseja que o busquemos em oração

A surpresa com a libertação de Pedro

A Bíblia retrata algo paradoxal entre alguns piedosos irmãos da igreja de Jerusalém. Tiago é morto por ordem de Herodes (At 12.4). Pedro permanece preso. A igreja persevera em sua fervorosa oração intercessória. Enquanto oram, sem que estes irmãos soubessem, Pedro é miraculosamente liberto (At 12.7-11).

Registra Lucas:

12 Considerando ele a sua situação, resolveu ir à casa de Maria, mãe de João, cognominado Marcos, onde muitas pessoas estavam congregadas e oravam.  13 Quando ele bateu ao postigo do portão, veio uma criada, chamada Rode, ver quem era;  14 reconhecendo a voz de Pedro, tão alegre ficou, que nem o fez entrar, mas voltou correndo para anunciar que Pedro estava junto do portão.  15 Eles lhe disseram: Estás louca. Ela, porém, persistia em afirmar que assim era. Então, disseram: É o seu anjo.  16 Entretanto, Pedro continuava batendo; então, eles abriram, viram-no e ficaram atônitos.  17 Ele, porém, fazendo-lhes sinal com a mão para que se calassem, contou-lhes como o Senhor o tirara da prisão…. (At 12.12-17).

A narrativa descreve algo estranho. Quando Pedro foi liberto e os procurou, com exceção da criada Rode que o reconhece, os piedosos irmãos acharam que ela estivesse louca. Num primeiro momento, foi mais fácil crer que ali estava um anjo do que o Senhor os tivesse ouvido libertando o apóstolo. Algo surpreendente à incipiente igreja: Tenho fé para orar, porém, quando Deus me responde, não sei o que fazer.

Stott (1921-2011), de forma bem-humorada mas, sem enfraquecer a seriedade da questão, comenta:

É irônico que o povo que estava orando com fervor e persistência pela libertação de Pedro pudesse considerar louca a pessoa que lhes informava que suas orações haviam sido respondidas! A alegria simples de Rode brilha fortemente contra a escura incredulidade da igreja.[1]

Prática rotineira desleixada

A oração é uma das maiores bênçãos que Deus concedeu ao seu povo. Deus propicia-nos condições para falar com Ele. Ensina-nos a fazê-lo de modo correto – quanto à forma e à essência – e, assiste-nos com o seu Santo Espírito que habita em nós, os crentes em Cristo.

Todavia, a nossa prática equivocada e desleixada da oração pode, de modo lamentável, tornar-se uma prática rotineira, mecânica, sem maior significado qualitativo para a nossa existência.

Assim procedendo, negamos a importância da oração em nossa suposta prática devocional. Isso, porém, até que tomemos consciência da nossa dramática situação e precisemos, como já vimos, clamar das “profundezas” a Deus (Sl 130.1).[2]

Essa experiência, de buscar a Deus intensa e urgentemente, não foi estranha a diversos personagens bíblicos. Ilustro:

Josafá em acordo pecaminoso e ingênuo com Acabe, quando perseguido de forma implacável pelas lanças sírias, registra o Cronista: “Josafá, porém, gritou e o Senhor o socorreu; Deus os desviou dele” (2Cr 18.31).

Jonas, antes disposto a fugir da presença de Deus para não cumprir sua incômoda missão (Jn 1.3), agora, no ventre do grande peixe, ora: “Na minha angústia, clamei ao SENHOR, e ele me respondeu; do ventre do abismo, gritei, e tu me ouviste a voz. (…) Quando, dentro de mim, desfalecia a minha alma, eu me lembrei do SENHOR; e subiu a ti a minha oração” (Jn 2.2,7).

 Habacuque, num primeiro momento, sem entender o porquê de Deus permitir a maldade dos judeus sem aparentemente puni-los e, posteriormente, Deus punindo o seu povo por meio dos ímpios Caldeus, encontra as suas profundezas na torre, e diz: “Por-me-ei na minha torre de vigia, colocar-me-ei sobre a fortaleza e vigiarei para ver o que Deus me dirá e que resposta eu terei à minha queixa (tôkêchâh)[3] (Hc 2.1).

Kuyper escreveu com sensibilidade:

Quando a alma está perfeitamente tranquila, a mera meditação mental pode ser muito doce e abençoada, mas, tão logo as águas da alma se encrespam, em ondas mais agitadas, nós nos sentimos irresistivelmente constrangidos a verbalizar a oração emitindo palavras, e, embora na solidão do aposento, mesmo assim a oração silenciosa torna uma invocação audível, e algumas vezes alta, das misericórdias de nosso Deus.[4]

Espírito de oração

Graças a Deus porque todos nós, em Cristo, temos o Espírito de oração (Zc 12.10),[5] porque sem ele jamais poderíamos orar de modo aceitável ao Pai. “A própria oração é uma forma de adoração”, enfatiza Sproul (1939-2017).[6]

Sem desculpas para a indolência

Por outro lado, o auxílio do Espírito não deve servir de pretexto para a nossa indolência e irresponsabilidade espiritual. Interpreta Calvino:

Aqui não se diz que, lançando o ofício da oração sobre o Espírito de Deus, podemos adormecer negligentes ou displicentes, como alguns se acostumaram a blasfemar, dizendo: devemos ficar à espera, sem nenhuma preocupação, até que o Espírito chame a atenção da nossa mente, até então ocupada e distraída com outras coisas. Muito ao contrário, aqui somos induzidos a desejar e a implorar tal auxílio, com aversão e desgosto por nossa preguiça e displicência.[7]

Quando nos sentirmos frios, e indispostos para orar, supliquemos logo ao Senhor que nos inflame com o fogo de seu Espírito, pelo qual sejamos dispostos e suficientes para orar como convém.[8]

Colando o assunto de modo positivo, destacamos que as nossas orações devem ser feitas com:

1. Integridade

 De todo o coração (leb)[9] eu te invoco; ouve-me, SENHOR….” (Sl 119.145).

A sua oração não é mera formalidade; algo repetido sem pensar no que está dizendo, antes, é feita “de todo o coração”; partindo do seu “eu essencial”; com a inteireza do seu ser.

O salmista não divaga em múltiplas direções cheio de distrações destoantes e contraditórias, mas, o seu coração está centrado em Deus.

A oração é um exercício de fé, estando compenetrada; é a expressão de fé que parte da integridade de nosso ser, envolvendo a nossa mente, emoções e vontade.

2. Perseverantemente

No Salmo 88, o salmista em profunda e contínua dor que o leva a chorar, retrata aspectos de seus sofrimentos e a perseverante oração a Deus, aguardando o seu livramento:

Os meus olhos desfalecem de aflição; dia após dia, venho clamando a ti, SENHOR, e te levanto as minhas mãos. (Sl 88.9).

Mas eu, SENHOR, clamo a ti por socorro, e antemanhã já se antecipa diante de ti a minha oração. (Sl 88.13).

Como a nossa percepção não serve de medida para Deus, é natural que nem sempre tenhamos a compreensão clara da sua providência e cuidado; deste modo, devemos alimentar o nosso coração com a Palavra a fim de que aprendamos a perseverar em oração confiantes na sua proteção. “…. Não devemos desvanecer-nos e arrefecer o estímulo neste santo exercício, caso Deus não testifique imediata e abertamente sua aceitação de nossas petições”, aconselha-nos Calvino.[10]

A oração é expressão perseverante de nossa fé em Deus.

3. Por um motivo justo

Não podemos solicitar conscientemente algo a Deus que seja injusto ou imoral. Sabemos quem é o nosso Deus: Santo, justo e majestoso.

Uma oração contraditória com a Palavra é um ato de descaso para com Deus, suplicando-lhe algo que contrarie os seus próprios ensinamentos registrados sob a inspiração do Espírito e preservados para a nossa direção.

A Trindade e a oração

Aqui, portanto, entramos em um terreno maravilhoso, surpreendente e altamente abençoador.  Paulo relaciona a Trindade bendita com nossas orações (Ef 1.13-23).

Como vimos, ainda que nem sempre em nossas orações pensemos nisso e, por vezes, somos equivocadamente tentados a separar rigidamente cada uma das pessoas da Trindade, na oração de Paulo há presença não meramente figurativa, antes, real e abençoadora da Santíssima Trindade.

A Trindade faz parte essencial de nossa fé.[11] A doutrina da trindade está estreitamente relacionada à nossa salvação. Encontramos a paz para o nosso coração inquieto na graça que procede do Deus Triúno.[12]

Paulo reconhece esse fato. Deus deseja que partilhemos da intimidade da relação da Trindade, nos dirigindo ao Pai, pela mediação do Filho sob a direção iluminadora do Espírito.[13]

Conforme já dissemos, devemos ter sempre diante de nós a certeza de que a Trindade é habitualmente o nome cristão para Deus, fazendo, portanto, parte do cerne de nossa fé.

Curiosamente, foi a busca da Igreja pela compreensão do mistério do Cristo encarnado que a fez desenvolver e precisar o conceito de Trindade.[14] E a igreja estava certa. O que Deus revelou é para nós e para os nossos filhos para que o adoremos em obediência (Dt 29.29).

Por sua vez, sabemos que a Trindade nos deu a Trindade. Sem a ação trinitária, jamais conheceríamos o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É por Eles que conhecemos o Deus Triúno e nos relacionamos com Ele em santa adoração.

 


[1]John R.W. Stott, A Mensagem de Atos: Até os confins da terra, São Paulo: ABU., 1994, p. 237.

[2] “Das profundezas clamo a ti, SENHOR” (Sl 130.1).

[3]Esta palavra que corre 28 vezes no Antigo Testamento, é empregada especialmente no livro de Provérbios, com o sentido de: Repreensão (Pv 1.23,25, 30; 3.11; 6.23; 10.17; 12.1; 13.18; 15.5, 10,31,32; 27.5; 29.1; Ez 25.17); Defesa (Jó 13.6); Disciplina (2Rs 19.3; Pv 5.12); Argumento (Jó 23.4); Réplica (Sl 18.14); Castigo (Sl 39.11; 73.14; 149.7; Is 37.3; Ez 5.15; Os 5.9).

            A oração do profeta é um protesto, um arrazoado sincero e audacioso de um homem que quer, mas não consegue compreender o modo de Deus agir, daí a sua queixa, a sua réplica, o seu argumento contra o desígnio de Deus.

            Calvino comenta: “Não é de se estranhar se os fiéis, mesmo em oração, nutram em seus corações divergências e emoções conflitantes. O Espírito Santo, porém, que os habita, amenizando a violência de sua dor, pacifica todas as suas queixas e os conduz paciente e cordialmente à obediência” (João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo: Paracletos, 1999, v. 2, (Sl 44.2), p. 282).

[4]Abraham Kuyper, A Obra do Espírito Santo, São Paulo: Cultura Cristã, 2010, p. 623.

[5]“E sobre a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém derramarei o espírito da graça e de súplicas….” (Zc 12.10).

[6] R.C. Sproul, O Ministério do Espírito Santo, São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1997, p. 187.

[7]João Calvino, As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e pesquisa, v. 3, (III.9), p. 95.

[8]J. Calvino, Catecismo de Genebra, Perg. 245. In: Catecismos de la Iglesia Reformada, Buenos Aires: La Aurora, 1962.

[9] O coração denota a personalidade integral do homem – envolvendo geralmente a emoção, o pensamento e a vontade –; qualquer tentativa de se estabelecer uma distinção entre o “coração” e a “razão” do homem, na psicologia do Antigo Testamento, é destituída de fundamentação bíblica.

Wright (1907-1974) salienta que na doutrina de Israel sobre o homem, “o EU, ou a identidade, não está associado a qualquer faculdade particular, ou órgão do ser humano, quer seja sua natureza psíquica, seu espírito ou sua razão. O EU é a criatura total. Pensa-se no homem com ser volitivo e ativo. Se algum termo especial, mais que outro, sugere a ideia pessoal é a palavra ‘coração’, mas o ‘coração’ não é parte ou faculdade do homem” (G.E. Wright, A Doutrina Bíblica do Homem na Sociedade, São Paulo: ASTE., 1966, p. 137).

            O coração, que na linguagem veterotestamentária é usado de forma efetiva referindo-se ao homem todo, traz consigo o sentido de responsabilidade, visto que somente o homem age conscientemente. Por isso, Deus exige de seus servos integridade de coração, sendo, portanto, responsável diante de Deus por suas palavras e atos.

Spykman (1926-1993) escreveu:

“O coração representa o centro unificador de toda a existência do homem, o ponto de concentração espiritual de todo nosso ser, o aspecto interior reflexivo que estabelece a direção a todas as relações de nossa vida. É a vertente de todos nossos desejos, pensamentos, sentimentos, de nosso agir, e de qualquer outra expressão da vida. É a fonte principal da qual flui todo movimento do intelecto do homem, de suas emoções, e de sua vontade, como também toda outra ‘faculdade’ ou modo de nossa existência. Em resumo, o coração é o mini-eu. O que tem meu coração me tem a mim, porém totalmente” (Gordon J. Spykman, Teología Reformacional: Un Nuevo Paradigma para Hacer La Dogmática, Jenison, Michigan: The Evangelical Literature League, 1994, p. 242).

Banwell argumenta:

“Os hebreus pensavam em termos de experiência subjetiva, e não com observações objetivas e científicas, e assim evitavam o erro moderno de departamentalização excessiva. Era essencialmente o homem inteiro, com todos os seus atributos físicos, intelectuais e psicológicos, de que se ocupava o pensamento hebreu, onde o coração era concebido como o centro governador de todos esses aspectos”. (B.O. Banwell, Coração: In: J.D. Douglas, ed. org. O Novo Dicionário da Bíblia, São Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. 1, p. 322).

Do mesmo modo, ver: H.D. McDonald,  Doutrina do Homem:  In: Walter A. Elwell, ed. Enciclopédia Histórico-Teológica da Igreja Cristã, São Paulo: Vida Nova,  1988-1990, v. 2,  p. 260.  Para um estudo mais detalhado, veja-se: Hermisten M.P. Costa, O Pai Nosso, São Paulo: Cultura Cristã, 2001.

[10] João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 61.1), p. 561. “A melhor evidência da genuína piedade é quando anelamos por Deus sob a pressão de nossas aflições, e mostramos, mediante nossas orações, uma santa perseverança na fé e na paciência; enquanto a seguir damos vazão à nossa gratidão” (João Calvino, O Livro dos Salmos, v. 2, (Sl 66.13), p. 630.

[11] “A Trindade é a língua na qual a verdade cristã é falada. Ela dá forma à verdade. A Trindade não é periférica, quanto menos é opcional. Ela está no maravilhoso e grandioso cerne de nossa fé” (Tim Chester, Conhecendo o Deus Trino: porque Pai, Filho e Espírito Santo são boas novas, São José dos Campos, SP.: Fiel, 2016, p. 18).

[12]Veja-se: B.B. Warfield, The Biblical Doctrine of the Trinity: In: B.B. Warfield, The Works of Benjamin B. Warfield, Grand Rapids, MI.: Baker Book House, 2000 (Reprinted), v. 1, p. 168.

[13]“O propósito original de Deus foi que o ser humano partilhasse a intimidade familiar jubilosa da Trindade” (J.I. Packer, O Plano de Deus para Você, 2. ed. Rio de Janeiro: Casa Publicadora das Assembleias de Deus, 2005, p. 125).

[14]Pelikan (1923-2006) chega a dizer que “o dogma da Trindade foi desenvolvido como a resposta da igreja à questão sobre a identidade de Jesus Cristo” (Jaroslav Pelikan, A tradição cristã: uma história do desenvolvimento da doutrina: O surgimento da tradição católica 100-600, v.1, São Paulo: Shedd Publicações, 2014, p. 235). Novamente: “O auge do desenvolvimento doutrinal da igreja primitiva foi o dogma da Trindade” (Jaroslav Pelikan, A tradição cristã: uma história do desenvolvimento da doutrina: O surgimento da tradição católica 100-600, v.1, p. 185). “É verdade que as controvérsias cristológicas que remontam ao ano 360 não são no fundo mais do que uma consequência lógica das discussões sobre a fé trinitária” (B. Stüder, Trindade: In: Ângelo Di Berardino, org. Dicionário Patrístico e de Antiguidades Cristãs, Petrópolis, RJ.; São Paulo: Vozes; Paulinas, 2002, p. 1389). “É possível argumentar que a doutrina da Trindade se encontra intimamente associada ao desenvolvimento da doutrina sobre a divindade de Cristo. Quanto mais a igreja insistia no fato de Cristo ser Deus, mas era pressionada a esclarecer a forma como Cristo se relacionava com Deus” (Alister E. McGrath, Teologia Sistemática, histórica e filosófica: uma introdução à teologia cristã, São Paulo: Shedd Publicações, 2005, p. 378). No final do segundo século, Irineu (c. 130-200 AD) testemunha que a Igreja de Deus, espalhada por toda face da terra, declarava a sua fé trinitária – conforme recebera dos discípulos – a saber: “a fé em um só Deus, Pai onipotente, que fez o céu e a terra, o mar e tudo quanto nele existe; em um só Jesus Cristo, Filho de Deus, encarnado para nossa salvação; e no Espírito Santo que, pelos profetas, anunciou a economia de Deus” (Irineu, Irineu de Lião, São Paulo: Paulus, 1985, I.10.1. p. 61-62). Ainda segundo ele, esta pregação era comum na Igreja “Unanimemente as prega, ensina e entrega, como se possuísse uma só boca” (Irineu, Irineu de Lião, I.10.2. p. 62).

Autor: Hermisten Maia. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Editor e Revisor: Vinicius Lima.