J.C. Ryle – Santidade: O Pecado (1/2)

O PECADO

Aquele que desejar ter pontos de vista corretos sobre a santidade cristã terá de começar examinando o vasto e solene assunto do pecado. Terá de cavar bem fundo, se quiser construir um edifício bem alto. Um equívoco quanto a esse particular é extremamente prejudicial. Conceitos errôneos sobre a santidade geralmente advêm de idéias distorcidas quanto à corrupção humana. Não me desculpo por começar estes estudos acerca da santidade com algumas firmes declarações a respeito do pecado.

A verdade absoluta é que o correto conhecimento do pecado jaz à raiz de todo o cristianismo salvífico. Sem ele, doutrinas como justificação, conversão e santificação serão apenas “palavras e nomes” que não transmitem qualquer sentido à nossa mente. Portanto, a primeira coisa que Deus faz quando quer tornar alguém em uma nova criatura em Cristo é iluminar-lhe o coração, mostrando-lhe que ele é um pecador culpado. A criação material, segundo o livro de Gênesis, começou com a “luz”; isso também acontece no caso da criação espiritual. Deus mesmo “resplandeceu em nosso coração” mediante a obra do Espírito Santo, e então, a vida espiritual teve seu início (2 Co. 4.6). Pontos de vista mal definidos acerca do pecado são a origem da maioria dos erros, das heresias e das doutrinas falsas de nossos dias. Se um homem não percebe a natureza perigosa da doença de sua alma, ninguém poderá admirar-se de que ele se contente com remédios falsos ou imperfeitos. Acredito que uma das principais necessidades da igreja, neste nosso século, tem sido e continua sendo um ensino mais claro e completo sobre o pecado.

1. Começarei o assunto fornecendo uma definição de pecado. Naturalmente, todos estamos familiarizados com os termos “pecado” e “pecadores”. Com freqüência, dizemos que o “pecado” está no mundo e que os homens cometem “pecados”. Porém, o que queremos dizer com essas palavras e frases? Sabemos realmente? Temo que há muita nebulosidade e confusão mental quanto a esse particular. Permita-me tentar suprir a resposta da forma mais breve possível.

Afirmo, pois, que “pecado”, falando de modo geral, conforme declara o artigo nono da confissão de fé da nossa igreja, é “a falha e a corrupção da natureza de cada ser humano, naturalmente produzidas pela natureza de Adão em nós, pelas quais o homem muito se afasta da retidão original, pois faz parte de sua natureza inclinar-se para o erro, de tal modo que a carne sempre milita contra o espírito; e, assim sendo, o pecado merece a ira e a condenação de Deus em cada pessoa que nasce neste mundo”. Em suma, o pecado é aquela vasta enfermidade moral que afeta a raça humana inteira, em todas as classes e níveis, nas nações, povos e línguas — uma enfermidade da qual apenas um único homem nascido de mulher esteve isento. Preciso dizer que esse único Homem foi o Senhor Jesus Cristo?

Digo, ademais, que “um pecado”, falando mais particularmente, consiste em praticar, dizer, pensar ou imaginar qualquer coisa que não esteja em perfeita conformidade com a mente e a lei de Deus. Em resumo, segundo as Escrituras, “o pecado é a transgressão da lei” (1 Jo 3.4). O menor desvio interno ou externo de um absoluto paralelismo matemático com a vontade e o caráter revelados de Deus constitui um pecado e, imediatamente, nos torna culpados aos olhos de Deus.

Naturalmente, não preciso dizer, a qualquer um que lê a sua Bíblia com atenção, que um homem pode quebrar a lei de Deus em seu coração e em seus pensamentos, mesmo quando não há qualquer ato externo e visível de iniqüidade. Nosso Senhor resolveu a questão sem deixar dúvidas, ao proferir o Sermão do Monte (Mt 5.21-28). Até mesmo um de nossos poetas disse, com toda a verdade: “Um homem pode sorrir, sorrir e ainda ser um vilão”.

Novamente, não preciso dizer a um estudante cuidadoso da Bíblia que há pecados de omissão tanto quanto de comissão, e que pecamos, tal como diz o nosso livro de oração, ao “deixarmos de fazer as coisas que deveríamos fazer” tanto quanto ao “fazermos aquilo que não deveríamos”. As solenes palavras do Mestre, no evangelho de Mateus, também deixam a questão sem sombras de dúvidas. Ali se acha escrito: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber” (Mt 25.41-42). Foi uma declaração profunda e bem pensada do santo arcebispo Usher, pouco antes de sua morte: “Senhor, perdoa-me de todos os meus pecados, sobretudo dos meus pecados de omissão”.

Porém, penso que é necessário relembrar aos leitores que um homem pode cometer um pecado e, no entanto, fazê-lo por ignorância, julgando-se inocente, quando na realidade é culpado. Não consigo perceber qualquer garantia bíblica para a moderna afirmativa de que “o pecado não é pecado, enquanto não o percebermos e tomarmos consciência dele”. Pelo contrário, nos capítulos quarto e quinto daquele livro muito negligenciado, Levítico, bem como em Números 15, vejo Israel sendo distintamente instruído de que havia pecados de ignorância que tornavam as pessoas imundas e que precisavam ser expiados (Lv 4.1-35; 5.14-19; Nm. 15.25-29). E também encontro o Senhor ensinando expressamente que o servo que não soube da vontade do seu senhor, e não agiu conforme essa vontade, não será desculpado pela sua ignorância, mas castigado (Lc 12.48). Faríamos bem em relembrar que, ao fazer de nosso conhecimento e de nossa consciência miseravelmente imperfeitos a medida de nossa pecaminosidade, estamos pisando em terreno perigoso. Um estudo mais profundo do livro de Levítico nos faria muito bem.

2. Concernente à origem e fonte dessa vasta enfermidade moral chamada “pecado” também me sinto na obrigação de dizer algo. Temo que as idéias de muitos crentes professos quanto a esse particular, são tristemente defeituosas e doentias. Não ouso passar adiante sem um comentário a respeito. Portanto, fixemos em nossa mente que a pecaminosidade de um homem não começa pelo lado de fora e sim pelo lado de dentro. Também não resulta de mau treinamento nos primeiros anos de vida. Não se adquire com más companhias e maus exemplos, conforme alguns crentes fracos costumam dizer. Não! Trata-se de uma enfermidade de família, que herdamos dos nossos primeiros pais, Adão e Eva, e com a qual todos já nascemos. Criados “à imagem de Deus” e inocentes a princípio, nossos pais caíram da justiça original e tornaram-se pecaminosos e corruptos. E, desde aquele dia, homens e mulheres nascem segundo a imagem de Adão e Eva decaídos, herdando um coração e uma natureza inclinados ao pecado – “por um só homem entrou o pecado no mundo”; “o que é nascido da carne é carne”; “éramos, por natureza, filhos da ira”; “o pendor da carne é inimizade contra Deus”; “do coração dos homens é que procedem [naturalmente, como de uma fonte] os maus desígnios, a prostituição, os furtos”. (Rm 5.12; Jo 3.6; Ef 2.3; Rm 8.7; Mc 7.21). O mais lindo bebê do mundo, que se tornou o raio-de-sol de uma família, não é, como sua mãe o chama com muito amor, um “anjinho” ou um “inocentinho”, e sim um “pecadorzinho”. Infelizmente, enquanto jaz sorrindo no seu berço, a criaturinha leva em seu coração as sementes de todo tipo de iniqüidade! Basta que a observemos com cuidado, conforme cresce em estatura e sua mente se desenvolve, e descobriremos nela uma incessante tendência para o que é mau, e uma grande hesitação quanto ao que é bom. Poderemos ver nela os botões e os germens do engano, do mau temperamento, do egoísmo, da voluntariedade, da obstinação, da cobiça, da inveja, do ciúme, da paixão – tudo o que, se alimentado e deixado à vontade, prolifera com dolorosa rapidez. Quem ensinou essas coisas à criança? Onde as aprendeu? Só a Bíblia pode responder a essas perguntas! Dentre todas as coisas tolas que os pais dizem sobre seus filhos nenhuma é pior do que a declaração comum: “No fundo, meu filho tem um bom coração. Ele não é o que deveria ser; apenas caiu em más companhias. As escolas são lugares ruins. Os professores negligenciam as crianças. Contudo, no fundo, ele tem um bom coração”. A verdade, infelizmente, é exatamente o contrário. A primeira causa de todo pecado jaz na corrupção natural do próprio coração da criança e não na escola.


Por J.C. Ryle (1816 – 1900) – primeiro Bispo de Liverpool da Igreja da Inglaterra.

Excerto do excelente livro: Santidade, sem a qual ninguém verá o Senhor

Disponibilizado pela Editora Fiel