J.C. Ryle – Santidade: O Pecado (2/2)

O PECADO

3. No tocante à extensão dessa vasta enfermidade moral do homem, chamada pecado, cuidemos para não errar. A única base segura é aquela dada pelas Escrituras. “Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração”; “Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto” (Gn 6.5; Jr 17.9). O pecado é um mal que permeia e percorre todas as partes de nossa constituição moral, bem como cada faculdade de nossa mente. A compreensão, os afetos, o poder de raciocínio, a vontade; tudo está, em certa medida, infeccionado pelo pecado. A própria consciência está tão cega que dela não se pode depender como guia seguro. Ela tanto pode conduzir o homem para o erro quanto para o que é certo, a menos que seja iluminada pelo Espírito Santo. Em suma, “Desde a planta do pé até à cabeça não há nele cousa sã, senão feridas, contusões e chagas inflamadas” (Is 1.6). O mal pode ser velado sob uma fina cortina de cortesia, polidez, boas maneiras ou decoro exterior; mas jaz profundamente em nossa constituição.

Admito plenamente que o homem tenha ainda qualidades grandes e nobres e que demonstre imensa capacidade nas artes, ciências e literatura. Porém, permanece o fato de que nas coisas espirituais o homem está totalmente “morto”, destituído de qualquer conhecimento, amor ou temor a Deus. As excelências do homem estão de tal modo entremeadas e mescladas com a corrupção que o contraste somente põe em destaque a verdade e a extensão da queda. Que uma e a mesma criatura seja tão elevada em algumas coisas e tão vil em outras; tão grande, mas tão pequena; tão nobre, mas também tão envilecida; tão notável em sua concepção e execução de coisas materiais, mas tão baixa e rasteira em seus afetos; capaz de planejar e erigir edifícios como aqueles de Carnaque e Luxor, no Egito ou o Partenon de Atenas e, no entanto, adorar deuses e deusas imorais, pássaros, feras e répteis; que possa produzir tragédias como as de Ésquilo e Sófocles e histórias como as de Tucídides, e, no entanto, ser escrava de vícios abomináveis como aqueles descritos no primeiro capítulo da epístola aos Romanos. Tudo isso tem servido de profunda perplexidade para aqueles que zombam da “Palavra escrita de Deus”, escarnecendo de nós como “bibliólatras”. Porém, esse é um nó que podemos desatar com a Bíblia na mão. Podemos reconhecer que o homem tem todos os sinais de um templo majestoso em sua pessoa; um templo no qual Deus antes habitou, mas que agora jaz em completa ruína; um templo no qual uma janela despedaçada aqui ou uma entrada acolá, ou uma coluna derrubada ali adiante ainda nos dá uma pálida idéia da magnificência do plano original, embora, de uma extremidade à outra, tenha perdido a sua glória e decaído de seu exaltado estado anterior. De modo que afirmamos que coisa alguma soluciona o complicado problema da condição humana, senão a doutrina do pecado original ou inato e os esmagadores efeitos da queda.

Ademais, lembremo-nos de que cada parte do mundo dá testemunho do fato que o pecado é a enfermidade universal de toda a humanidade. Pesquisemos o globo de leste a oeste e de um pólo ao outro, rebusquemos todas as nações de todos os climas, nos quatro quadrantes da terra, procuremos em cada classe e nível social de nosso próprio país, do mais elevado ao mais humilde, sob cada circunstância e condição; o relatório será sempre o mesmo. As mais remotas ilhas no oceano Pacífico, completamente separadas da Europa, da Ásia, da África e da América, fora do alcance do luxo oriental e da arte e literatura ocidentais; ilhas habitadas por povos que ignoram livros, dinheiro, vapor e eletricidade; não contaminados pelos vícios da civilização moderna – existentes nestas ilhas remotas, quando descobertas, têm sido encontradas as piores formas de concupiscência, de crueldade, de engodo e de superstição. Se seus habitantes não conhecem outra coisa, pelo menos conhecem o pecado! Por toda a parte, o coração humano é enganoso “mais do que todas as coisas, e desesperadamente corrupto” (Jr 17.9). Da minha parte, desconheço prova mais decisiva da inspiração do livro de Gênesis e do relato mosaico sobre a origem do homem do que o poder, a extensão e a universalidade do pecado. Se admitirmos que a humanidade inteira deriva-se de um único casal e que esse casal caiu no pecado, conforme nos diz Gênesis 3, o estado da natureza humana por toda parte pode ser facilmente explicado. Mas, se negarmos esse fato, conforme muitos o fazem, imediatamente nos veremos envolvidos com dificuldades inexplicáveis. Em suma, a uniformidade e a universalidade da corrupção humana supre uma das mais incontestáveis instâncias das enormes dificuldades que os
incrédulos têm de enfrentar.

Afinal, estou convencido de que a maior prova da extensão e do poder do pecado é a persistência com que ele se apega ao homem, mesmo depois deste ser convertido e tornar-se alvo das operações do Espírito Santo. Usando a linguagem do artigo nono: “Essa infecção da natureza permanece – sim, mesmo nos regenerados”. Tão profundamente implantadas estão as raízes da corrupção humana que, mesmo depois de termos sido regenerados, renovados, lavados, santificados e justificados, feitos membros vivos de Cristo, essas raízes permanecem vivas no fundo de nosso coração. Tal qual o mofo nas paredes de uma casa, nunca nos livraremos delas, enquanto não for dissolvida esta casa terrestre deste nosso tabernáculo. Sem dúvida, o pecado não mais exerce domínio no coração do crente. Está contido, controlado, mortificado e crucificado pelo poder expulsivo do novo princípio da graça divina. A vida do crente é uma vida de vitória e não de fracasso. Mas os próprios conflitos que continuam em seu peito, a luta na qual ele se vê empenhado a cada dia, a vigilância que ele é forçado a exercer sobre seu homem interior, a guerra entre a carne e o espírito, os “gemidos” íntimos que ninguém conhece, senão aquele que os experimenta – tudo isso testifica da mesma grande verdade, tudo mostra o enorme poder e a vitalidade do pecado. Poderoso, de fato, deve ser o adversário que mesmo depois de crucificado, continua vivo! Feliz é o crente que compreende isso e não tem confiança na carne enquanto se regozija em Cristo Jesus; e ao mesmo tempo em que diz: “Graças a Deus que nos dá a vitória”, nunca se esquece de vigiar e ora para não cair em tentação!

4. Acerca da culpa, da vileza e da ofensa do pecado aos olhos de Deus, minhas palavras serão poucas. Digo “poucas” prudentemente. Não penso que, devido à natureza dessas coisas, o homem mortal possa perceber toda a imensa pecaminosidade do pecado aos olhos do Deus santo e perfeito, a quem teremos de prestar contas. Por um lado, Deus é o Ser eterno que “aos seus anjos atribui imperfeições”, em cuja vista “nem os céus são puros”. Ele é Aquele que lê os pensamentos e os motivos, e não só as ações, e que requer “a verdade no íntimo” (Jó 4.18; 15.15; Sl 51.6). Nós, por outro lado – criaturas pobres e cegas, hoje aqui e amanhã acolá, nascidos no pecado, cercados de pecadores, vivendo em uma constante atmosfera de fraqueza, enfermidade e imperfeição – não podemos formar senão os mais inadequados conceitos sobre a hediondez do pecado. Não dispomos de prumo para sondá-lo, e nenhuma medida pela qual possamos aquilatá-lo. Um cego não pode ver a diferença entre uma obra prima de Ticiano ou de Rafael e uma efígie de um presidente no verso de uma moeda. Um surdo não pode distinguir entre um apito soprado por uma criança e um órgão de catedral. Os próprios animais, cujo odor é bastante ofensivo, não têm a menor noção de que são tão mau-cheirosos e nem parecem tais uns para com os outros. E o homem, o homem caído, segundo creio, não tem noção do quão vil é o pecado aos olhos de Deus, cujas obras são absolutamente perfeitas – perfeitas sem importar se as examinamos pelo telescópio ou pelo microscópio; perfeitas tanto na formação de um gigantesco planeta como Júpiter, com seus satélites, que marca o tempo em até milésimos de segundo enquanto gira em torno do sol quanto na formação do mais minúsculo inseto que se arrasta pelo chão. Não obstante, fixemos na mente, com firmeza, que o pecado é aquela “coisa abominável” a qual Deus aborrece e que Deus é “tão puro de olhos que não pode ver o mal”; e que qualquer que tropeçar “em um só ponto” da lei de Deus “se torna culpado de todos”; e que “a alma que pecar, essa morrerá“; e que “o salário do pecado é a morte”; e que Deus julgará “os segredos dos homens”; e que há um lugar onde nunca “morre o verme, nem o fogo se apaga”; e que “os perversos serão lançados no inferno”; e que “irão estes para o castigo eterno”, porquanto nos céus “nunca jamais penetrará coisa alguma contaminada, nem o que pratica abominação e mentira” (Jr 44.4; Ha 1.13; Tg 2.10; Ez 18.4; Rm 6.23; 2.16; Mc 9.44; Sl 9.17; Mt 25.46 e Ap 21.27). Essas são, realmente, palavras tremendas, quando consideramos que foram escritas no Livro do Deus misericordiosíssimo!

Afinal de contas, nenhuma prova da amplidão do pecado é tão avassaladora e incontestável como a cruz da paixão de nosso Senhor Jesus Cristo, bem como toda a doutrina de sua substituição e expiação. Terrivelmente grave deve ser a culpa que não pode ser satisfeita por coisa alguma, senão pelo sangue do Filho de Deus. Pesadíssima deve ser a carga do pecado humano que fez Jesus gemer e suar gotas de sangue na agonia do Getsêmani, e clamar no Gólgota: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.46). Estou convencido de que nada nos espantará tanto, quando despertarmos no dia da ressurreição, quanto a visão que teremos do pecado e o retrospecto que nos será dado de nossos próprios incontáveis defeitos e delitos.


Por J.C. Ryle (1816 – 1900) – primeiro Bispo de Liverpool da Igreja da Inglaterra.

Excerto do excelente livro: Santidade, sem a qual ninguém verá o Senhor

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