Um blog do Ministério Fiel
Pelo que William Tyndale viveu e morreu (Parte 1)
Stephen Vaughn era um comerciante inglês comissionado por Thomas Cromwell, o conselheiro do rei, para encontrar William Tyndale e informá-lo de que o rei Henrique VIII desejava que ele voltasse para a Inglaterra. Em uma carta de Vaughan a Cromwell, datada de 19 de junho de 1531, Vaughan escreveu sobre Tyndale (1494-1536) estas simples palavras: “Eu o vejo sempre cantando a mesma nota”.[1] A nota era esta: O rei da Inglaterra dará o seu consentimento oficial a uma Bíblia em língua vernácula para todos os seus súditos ingleses? Se não, Tyndale não virá. Se assim for, Tyndale entregará a si mesmo ao rei e nunca escreverá outro livro.
Esta era a paixão motriz da sua vida: ver a Bíblia traduzida do grego e do hebraico para o inglês comum acessível para a leitura de todas as pessoas na Inglaterra.
Henrique VIII estava irado com Tyndale por crer e promover os ensinos da Reforma de Martinho Lutero. Em particular, estava irritado por causa do livro de Tyndale, “Answer to Sir Thomas More” [Resposta ao Sr. Thomas More]. Thomas More (famoso por seu livro Utopia e pelo filme A Man for All Seasons [Um homem para Todas as Estações) era o Senhor Chanceler que ajudou Henrique VIII a escrever o seu repúdio a Lutero chamado Defense of the Seven Sacraments [Defesa dos Sete Sacramentos]. Thomas More era um católico romano convicto e radicalmente anti-Reforma, anti-Lutero e anti-Tyndale. Assim, Tyndale estava sob a mesma crítica impiedosa de Thomas More.[2] De fato, More tinha um “ódio quase fanático”[3] por Tyndale e publicou três longas respostas a ele, totalizando quase três quartos de milhão de palavras.[4]
Mas, apesar dessa ira contra Tyndale, a mensagem do rei a Tyndale, levada por Vaughan, foi em misericórdia: “A majestade real, o rei, está… inclinada à misericórdia, piedade e compaixão”.[5]
Tyndale, então com trinta e sete anos, foi levado às lágrimas por essa oferta de misericórdia. Ele havia sido um exilado de sua terra natal por sete anos. Mas agora ele entoa novamente a sua “única nota”: O rei autorizará uma Bíblia em língua vernácula a partir das línguas originais? Vaughan nos concede as palavras de Tyndale, de maio de 1531:
Asseguro a você que se o Rei com o mais gracioso prazer concedesse apenas o simples texto da Escritura (ou seja, sem notas explicativas) a ser apresentado entre o seu povo, como é apresentado entre os súditos do imperador nestas regiões e de outros príncipes cristãos, seja da tradução de qualquer pessoa que agradar a sua Majestade, farei imediatamente a promessa fiel de nunca mais escrever, não continuarei nem mesmo por dois dias aqui; mas imediatamente irei para o seu reino e muito humildemente submeto-me aos pés de sua majestade real, oferecendo o meu corpo para sofrer a dor ou a tortura, sim, a morte que ele quiser, para que isso [a tradução] seja feito. Até aquele momento, eu perseverarei na aspereza de todas as oportunidades, não importa o que ocorrer, e suportarei tantas dores em minha vida quanto for capaz de suportar e sofrer.[6]
Em outras palavras, Tyndale se entregará ao rei com uma condição: que o rei autorize uma Bíblia em língua inglesa, a linguagem comum do povo, traduzida a partir do grego e do hebraico.
O rei recusou. E Tyndale nunca voltou a sua pátria. Em vez disso, se o rei e a Igreja Católica Romana não queriam fornecer uma Bíblia impressa em inglês para o homem comum ler, Tyndale faria, mesmo que isso lhe custasse a vida — o que, de fato, aconteceu cinco anos depois.
A Grande realização: O Novo Testamento e a Reforma
Quando tinha vinte e oito anos de idade em 1522, Tyndale estava servindo como um tutor na casa de John Walsh em Gloucestershire gastando a maior parte do seu tempo estudando o Novo Testamento grego de Erasmo que tinha acabado de ser impresso seis anos antes, em 1516. E nós devemos fazer uma pausa aqui e deixar claro que coisa mais incendiária este Novo Testamento grego foi de um ponto de vista histórico. David Daniell descreve a magnitude deste evento:
Esta foi a primeira vez que o Novo Testamento grego tinha sido impresso. Não é exagero dizer que ele ateou fogo à Europa. Lutero [1483-1546] o traduziu para a sua famosa versão alemã de 1522. Em poucos anos apareceram traduções do grego para a maioria das línguas vernáculas da Europa. Estas foram a verdadeira base da reforma popular.[7]
Em todos os dias em que William Tyndale estava vendo essas verdades da Reforma mais claramente no Novo Testamento grego, ele ainda permanecia como um sacerdote católico ordenado. Cada vez mais ele estava se tornando suspeito na casa católica de John Walsh. Homens eruditos vinham participar de jantares, e Tyndale discutia as coisas que estava vendo no Novo Testamento. John Foxe nos diz que certa vez um católico erudito, irritou-se com Tyndale durante um jantar e disse: “Estaríamos melhor sem a lei de Deus do que sem o papa”. Em resposta, Tyndale pronunciou as suas famosas palavras: “Desafio o papa e a todas as suas leis… e se Deus me poupar a vida por muitos anos, farei com que um menino que maneja o arado conheça mais as Escrituras do que você”.[8]
Quatro anos mais tarde Tyndale concluiu a tradução inglesa do Novo Testamento grego em Worms, Alemanha, e começou a enviá-las para a Inglaterra escondidas em roupas. Ele tinha crescido em Gloucestershire, o condado da fabricação de roupas, e agora vemos isso como sendo uma providência.[9] Em outubro de 1526 o livro tinha sido banido por Dom Tunstall em Londres, mas a tiragem era de pelo menos três mil. E os livros estavam chegando ao povo. Ao longo dos próximos oito anos, cinco edições piratas também foram impressas.[10]
Em 1534, Tyndale publicou um Novo Testamento revisado, tendo aprendido hebraico nesse intervalo, provavelmente na Alemanha, o que o ajudou a entender melhor as conexões entre o Antigo e o Novo Testamento. Daniell chama este Novo Testamento de 1534 de “a glória da obra de sua vida”.[11] Se Tyndale estava “sempre cantando uma única nota”, esta era a intensificação da canção de sua vida: o Novo Testamento, terminado e aprimorado, em inglês.
Pela primeira vez na história, o Novo Testamento grego foi traduzido para o inglês. E pela primeira vez o Novo Testamento em inglês estava disponível em uma forma impressa. Antes de Tyndale, havia apenas manuscritos da Bíblia em inglês. Esses manuscritos devemos à obra e à inspiração de John Wyclif e dos Lolardos,[12] cento e trinta anos antes.[13] Durante mil anos, a única tradução da Bíblia grega e hebraica foi a Vulgata Latina, e poucas pessoas poderiam entendê-la, mesmo se tivessem acesso a ela.
Antes de ser martirizado em 1536, Tyndale havia traduzido em um inglês claro e comum[14] não apenas o Novo Testamento[,15] mas também o Pentateuco, e de Josué a 2 Crônicas e Jonas.[16] Todo esse material tornou-se a base da Grande Bíblia publicada por Miles Coverdale na Inglaterra, em 1539[17] e a base para a Bíblia de Genebra publicada em 1557 — “a Bíblia da nação”,[18] que vendeu mais de um milhão de cópias entre 1560 e 1640.
Não temos uma noção clara da conquista de Tyndale sem algumas comparações. Nós pensamos sobre a dominante versão King James como aquela que, de forma geral, nos deu a linguagem da Bíblia inglesa. Mas Daniell esclarece a situação:
William Tyndale nos deu a nossa Bíblia em inglês. Os sábios reunidos pelo rei James para preparar a versão autorizada de 1611, tão frequentemente elogiada pela singular inspiração corporativa continuaram o trabalho de Tyndale. Nove décimos do Novo Testamento da Versão Autorizada é de Tyndale. O mesmo é verdade em relação à primeira metade do Antigo Testamento, que foi tão longe quanto ele foi capaz de realizar antes de ser executado fora de Bruxelas, em 1536.[19]
Aqui está uma amostra das frases que devemos a Tyndale:
“Haja luz” (Gênesis 1.3).
“…acaso sou eu o protetor do meu irmão?” (Gênesis 4.9).
“‘O Senhor te abençoe e te guarde. Faça o SENHOR resplandecer o seu rosto sobre ti e te agracie. Que o Senhor revele a ti a sua face de amor e te conceda a paz!” (Números 6.24-26).
“No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus” (João 1.1).
“… havia pastores que estavam nos campos” (Lucas 2.8).
“Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados” (Mateus 5.4).
“Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome” (Mateus 6.9).
“… os sinais dos tempos” (Mateus 16.3).
“O espírito está pronto, mas a carne é fraca” (Mateus 26.41).
“Deixando aquele lugar, chorou amargamente” (Mateus 26.75). Essas duas palavras ainda são usadas por quase todas as traduções modernas. Não foram melhoradas por quinhentos anos, apesar de fracos esforços como uma tradução recente: “chorou muito”. Ao contrário dessa frase, “o ritmo destas suas duas palavras demonstra a experiência”. [20]
“…lei para si mesmos” (Romanos 2.14).
“Nele vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17.28).
“Ainda que eu falasse as línguas de homens e anjos” (1 Coríntios 13.1).
“Combati o bom combate” (1 Timóteo 6.12).
De acordo com Daniell, “a lista dessas frases quase proverbiais é interminável”.[21] Cem anos depois de sua grande obra “as manchetes dos jornais ainda citam Tyndale, embora inconscientemente, e ele alcançou mais pessoas do que até mesmo Shakespeare”.
A tradução de Lutero de 1522 é frequentemente elogiada por “ter dado uma linguagem à emergente nação alemã”. Daniell reivindica o mesmo para Tyndale quanto à inglesa.
Em suas traduções da Bíblia, o uso consciente de palavras diárias, sem inversões, em uma ordem neutra das palavras e seu ouvido maravilhoso para padrões rítmicos, deu ao inglês não apenas uma linguagem bíblica, mas uma nova prosa. A Inglaterra foi abençoada como nação, pois a linguagem de seu principal livro, como rapidamente se tornou a Bíblia em inglês, era a fonte da qual fluía a lucidez, a flexibilidade e o alcance expressivo da maior prosa doravante.[23]
Sua habilidade com a língua inglesa era genial.[24]
Ele traduziu dois terços da Bíblia tão bem que as suas traduções permanecem até hoje.[25]
Não se tratava apenas de um fenômeno literário; esta foi uma explosão espiritual. A Bíblia e os escritos de Tyndale foram o fogo que incendiou a Reforma na Inglaterra.
#1 David Daniell, William Tyndale: A Biography [William Tyndale: Uma Biografia] (New Haven: Yale University Press, 1994), p. 217.
#2 Por exemplo, no livro de More, 1529, Dialogue Concerning Heresies [Diálogos Sobre Heresias].
#3 Daniell, Tyndale, p. 4.
#4 Thomas More escreveu mais para condenar Tyndale do que Tyndale escreveu em sua defesa. Depois de um livro chamado An Answer Unto Sir Thomas More’s Dialogue (1531) [Uma Resposta ao Diálogo de Sr. Thomas More] (1531), Tyndale parou. Quanto a Thomas More, no entanto, houve “quase três quartos de milhão de palavras contra Tyndale… [em comparação com] oitenta mil de Tyndale em sua Resposta”. Ibid., p. 277.
#5 Ibid., p. 216.
#6 Ibid.
#7 William Tyndale, Selected Writings [Escritos Selecionados] editado com uma introdução de David Daniell (Nova York: Routledge, 2003), p. ix. “Os campeões modernos da posição católica gostam de apoiar uma visão da Reforma que era completamente uma imposição política por uma minoria implacável no poder contra as tradições e os desejos do povo piedoso da Inglaterra… O poder que afetou toda a vida humana no norte da Europa, no entanto, veio de um lugar diferente. Isso não foi o resultado da imposição política; veio da descoberta da Palavra de Deus como escrita originalmente… na linguagem do povo. Além disso, poderia ser lida e compreendida, sem censura pela Igreja ou mediação através da Igreja… Essa leitura produziu uma visão totalmente diferente do Cristianismo cotidiano: as cerimônias semanais, diárias, até mesmo horárias, tão afetuosamente catalogadas por alguns revisionistas católicos, não estão ali; o purgatório não está ali; não há confissão e penitência. Duas bases da riqueza e do poder da Igreja entraram em colapso. Em vez disso, havia na Escritura simplesmente fé pessoal em Cristo Salvador. Isso e somente isso “justificava” o pecador, cujas falhas inatas estavam agora diante de Deus, não dos bispos ou do papa”. Daniell, Tyndale, p. 58.
#8 Daniell, Tyndale, p. 79.
#9 “William Tyndale, exilado em Colônia, Worms e Antuérpia usou as rotas comerciais internacionais dos comerciantes de tecidos para levar seus livros para a Inglaterra, contrabandeados em pedaços de pano”. Ibid., p. 15.
#10 Ibid., p. 188.
#11 Ibid., p. 316.
#12 “No verão de 1382, Wyclif foi atacado em um sermão pregado em St. Mary’s, em Oxford, e seus seguidores foram pela primeira vez denunciados como ‘lolardos’ — um termo vago e sem sentido (‘murmuradores’) usados nos Países Baixos para estudantes da Bíblia e, portanto, hereges”. David Daniell, The Bible in English: Its History and Influence [A Bíblia em Inglês: Sua História e Influência] (New Haven: Yale University Press, 2003), p. 73.
#13 A imprensa de Gutenberg chegou em 1450.
#14 “Tyndale transmitiu uma força inglesa que é o oposto do latim, visto na diferença entre ‘alto’ e ‘elevado’, ‘dom’ e ‘doação’, ‘muitos’ e ‘multidões’”. Daniell, Tyndale, p. 3.
#15 Tyndale não seguiu Lutero ao colocar Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse em uma seção especial do Novo Testamento separada como inferior. “Tyndale, como mostrado mais tarde por seu prefácio a Tiago em seu Novo Testamento de 1534, não é apenas mais sábio e mais generoso — é mais fiel ao Novo Testamento”. Ibid., p. 120.
#16 Está disponível agora em versão impressa com todas as suas notas e introduções originais: Tyndale’s Old Testament [O Antigo Testamento de Tyndale], traduzido por William Tyndale (New Haven: Yale University Press, 1992); como Tyndale’s New Testament [O Novo Testamento de Tyndale], traduzido por William Tyndale (New Haven: Yale University Press, 1989).
#17 Como ocorreu que Tyndale foi martirizado em 1536 por traduzir a Bíblia para o inglês, e que seu Novo Testamento foi queimado em Londres pelo Bispo Tunstall, e ainda uma Bíblia completamente impressa, essencialmente a de Tyndale, A Grande Bíblia, poderia ser publicada na Inglaterra três anos depois, oficialmente endossada por este bispo que queimador de Bíblia? Daniell explica: “Tunstall, cujo nome apareceria brevemente nas páginas de título aprovando duas edições da Grande Bíblia, estava agindo de modo político, sendo um fantoche do papa através de Wolsey e do rei, traindo seu aprendizado humanista cristão de acordo com a igreja, precisando receber o favor de [Thomas] Wolsey… Queimar a palavra de Deus por causa da política era uma barbaridade para Tyndale”. Tyndale, p. 93.
#18 Tyndale, Escritos Selecionados, p. xi.
#19 Tyndale, p. 1. Daniell fala com mais precisão em outro lugar e diz que a Versão Autorizada é 83 por cento de Tyndale’s (Tyndale, Escritos Selecionados, p. Brian Moynahan, em God’s Bestseller: William Tyndale, Thomas More, and the Writing of the English Bible — A Story of Martyrdom and Betrayal [O Bestseller de Deus: William Tyndale, Thomas More e a Escrita da Bíblia em Inglês — Uma História de Martírio e Traição] (New York: St. Martin’s Press, 2002, p.1), confirma isso com suas estimativas: As palavras de Tyndale “correspondem a 84 por cento do Novo Testamento da [versão King James] e 75,8% dos livros do Antigo Testamento que ele traduziu”. Daniell também destaca quão notáveis foram as traduções do Antigo Testamento: “Esses primeiros capítulos do Gênesis são as primeiras traduções — não apenas as primeiras impressas, mas as primeiras traduções — do hebraico para o inglês. Isso precisa ser enfatizado. Não apenas a língua hebraica só era conhecida na Inglaterra em 1529 e 1530 por, no máximo, um minúsculo punhado de estudiosos em Oxford e Cambridge, e muito possivelmente por nenhum; que havia uma linguagem chamada hebraico ou que ela tinha qualquer ligação com a Bíblia, teria sido uma novidade para a maioria da população comum”. Tyndale, p. 287.
#20 Tyndale, Escritos Selecionados, p. xv.
#21 Tyndale, p. 142.
#22 Ibid., p. 2.
#23 Ibid., p. 116.
#24 Tyndale, Escritos Selecionados, p. xv.
#25 Daniell, Tyndale, p. 121. “Tyndale deu à nação uma língua bíblica que era inglesa em palavras, ordem de palavras e poesia. Ele inventou algumas palavras (por exemplo, “scapegoat” [bode expiatório]) e o grande Dicionário de Inglês Oxford tem atribuído incorretamente, e assim também mal datado muitos de seus primeiros usos”. (Ibid., p. 3)