Martinho Lutero: lições a partir de sua vida e labores (Parte 3)

  1. Lutero foi extraordinariamente diligente, apesar de obstáculos enormes.

O que ele realizou ultrapassou as barreiras de um super-homem, e, claro, torna todos nós pigmeus.

Seu trabalho como professor de Bíblia na Universidade de Wittenberg era em tempo integral. Ele escreveu diversos tratados teológicos: bíblicos, homiléticos, litúrgicos, educacionais, devocionais e políticos, alguns dos quais moldaram a vida da igreja protestante por séculos. Enquanto isso, estava traduzindo as Escrituras para o alemão, um idioma que ele ajudou a formar por essa tradução. Ele mantinha muitas correspondências, pois constantemente era solicitado a respeito de conselhos e orientação. Viagens, reuniões, conferências e colóquios eram comuns em seu tempo. Durante todo o tempo, ele estava pregando regularmente a uma congregação que ele deve ter considerado uma vitrine da Reforma (Meuser, 27).

Não somos Lutero e não sabemos quão difícil seria se tentássemos. Mas o ponto aqui é: esforçamo-nos em nossos estudos com rigor e diligência ou somos preguiçosos e casuais sobre isso, como se nada realmente grande estivesse em questão? Quando ele tinha cerca de sessenta anos, rogou aos pastores que fossem diligentes e não preguiçosos.

Alguns pastores e pregadores são preguiçosos e não são de proveito algum. Eles não oram; eles não leem; eles não examinam as Escrituras… o chamado é: vigie, estude e leia. Na verdade, você não pode ler as Escrituras em demasia; e o que você lê não pode ler com atenção suficiente, e o que você lê com atenção, não consegue entender o suficiente, e o que você entende, não consegue ensinar bem o suficiente e o que você ensina bem, não consegue viver bem o suficiente… O diabo… o mundo… e nossa carne estão furiosos e se iram contra nós. Portanto, queridos senhores e irmãos, pastores e pregadores, orem, leiam, estudem, sejam diligentes… Este tempo mal e vergonhoso não é o momento para ser preguiçoso, dormir e roncar (Meuser, 40).

Comentando Gênesis 3.19, Lutero diz: “O suor da família é grande; o suor político é maior; o suor da igreja é o maior” (Plass, 951). Ele respondeu uma vez àqueles que realizam um trabalho físico árduo e consideram o trabalho de estudar uma vida tranquila:

Claro, seria difícil para mim sentar “sobre a sela”. Mas, novamente, eu gostaria de ver que cavaleiro poderia ficar quieto por um dia inteiro e olhar um livro sem se preocupar, ou imaginar ou pensar em mais nada. Pergunte… a um pregador… quão trabalhoso é falar e pregar… A caneta é muito leve, é verdade… mas neste trabalho a melhor parte do corpo humano (a cabeça), o membro mais nobre (a língua) e o trabalho mais elevado (a fala) carregam o peso da carga e trabalham mais arduamente, enquanto em outros tipos de trabalho, seja a mão, o pé, as costas ou outros membros realizam o trabalho sozinhos de modo que uma pessoa possa cantar felizmente ou fazer brincadeiras livremente, o que um escritor de sermões não consegue fazer. Três dedos realizam toda a ação… Mas todo o corpo e a alma precisam trabalhar nisso (Meuser, 44).

Existe um grande perigo, diz Lutero, ao pensar que já chegamos a um ponto em que achamos que não precisamos estudar mais.

Que os ministros diariamente prossigam em seus estudos com diligência e se ocupem constantemente deles… Que eles continuem a ler, ensinar, estudar, ponderar e meditar. Que eles não cessem até que tenham descoberto e tenham certeza de que tenham ensinado o diabo sobre a morte e que se tornaram mais sábios do que o próprio Deus e todos os seus santos (Plass, 927).

É claro que o que Lutero quer dizer com isso é: nunca para de estudar. Lutero sabia que existia algo como excesso de trabalho e pressões prejudiciais e contraproducentes. Mas ele claramente preferia errar pelo excesso de trabalho do que pela negligência. Vemos isso em 1532, quando escreveu:

Uma pessoa deve trabalhar de tal forma que permaneça bem e não prejudique o seu corpo. Não devemos perturbar as nossas cabeças no trabalho e causar danos aos nossos corpos… Eu mesmo costumava fazer essas coisas, e me esforçava porque eu ainda não tinha superado o mau hábito de trabalhar em demasia. Também não o superarei enquanto eu viver (Plass, 1496).

Não sei se o apóstolo Paulo teria feito a mesma confissão no fim de sua vida. Mas ele disse: “Trabalhei muito mais do que todos eles [os apóstolos]” (1 Coríntios 15.10). E, em comparação com os falsos apóstolos, ele disse: “São ministros de Cristo? (Falo como fora de mim.) Eu ainda mais: em trabalhos, muito mais; muito mais em prisões; em açoites, sem medida; em perigos de morte, muitas vezes” (2 Coríntios 11.23). Assim, não é surpreendente que Lutero se esforce para seguir o seu querido Paulo em “em trabalhos, muito mais”. O que nos leva à próxima característica de Lutero quanto ao estudo, ou seja, o sofrimento.

  1. Para Lutero, as tribulações fazem um teólogo. Tentação e aflição são as pedras preciosas da hermenêutica.

Lutero observa no Salmo 119 que o salmista não apenas orou e meditou sobre a Palavra de Deus para compreendê-la; ele também sofreu para entendê-la. Salmo 119.67, 71: “Antes de ser afligido andava errado; mas agora tenho guardado a tua palavra… Foi-me bom ter sido afligido, para que aprendesse os teus estatutos”. Uma chave indispensável para a compreensão das Escrituras é sofrer no caminho da justiça. Assim, Lutero disse:

Desejo que vocês saibam como estudar teologia do modo correto. Eu mesmo tenho praticado esse método… Aqui você encontrará três regras. Elas são frequentemente propostas em todo o Salmo [119] e são estas: oration, meditatio, tentatio [oração, meditação, provação] (Plass, 1359).

E quanto às provações (Anfechtungen), ele as chamou de “pedra de toque”. “[Elas] lhe ensinam não somente a conhecer e entender, mas também a experimentar quão reta, verdadeira, doce, amável, poderosa e consoladora é a Palavra de Deus: é sabedoria suprema” (Plass, 1360). Ele experimentou o valor das provações repetidamente em sua própria experiência.

Pois, logo que a Palavra de Deus se torna conhecida para você, o diabo o afligirá, tornando-o um verdadeiro teólogo, e o ensinará por meio de suas tentações a buscar e amar a Palavra de Deus. Quanto a mim mesmo… devo agradecer muito aos meus papistas por me golpearem, pressionarem e me alarmarem tanto com a ira do diabo que eles me transformaram em um bom teólogo, conduzindo-me a um alvo que eu jamais teria alcançado (Plass, 1360).

O sofrimento fez parte da vida de Lutero. Considere que a partir de 1521 Lutero viveu sob o banimento do império. O imperador Carlos V disse: “Decidi mobilizar tudo contra Lutero: meus reinos e domínios, meus amigos, meu corpo, meu sangue e minha alma” (Oberman, 29). Ele poderia ser morto legalmente, exceto onde ele era protegido por seu príncipe. Ele sofreu uma calúnia implacável do tipo mais cruel. Ele uma vez mencionou:

Se o diabo não pode fazer nada contra os ensinos, ele ataca a pessoa, mentindo, caluniando, amaldiçoando e irritando-a. Assim como o Belzebu dos papistas fez comigo quando ele não podia subjugar meu evangelho, escreveu que eu estava possuído pelo diabo, que eu um bastardo, que minha amada mãe era uma prostituta… (Oberman, 88).

Fisicamente, ele sofria de pedras nos rins e dores de cabeça excruciantes, associadas a zumbidos e infecções no ouvido, além de constipação incapacitante. “Eu quase morro; e agora, banhado em sangue, não consigo encontrar paz. O que levou quatro dias para curar, as lágrimas abriram imediatamente mais uma vez” (Oberman, 328).

Não é surpreendente, então, que, emocional e espiritualmente, ele padecia de lutas muito terríveis. Por exemplo, em uma carta a Melancthon, em 2 de agosto de 1527, ele escreve:

Por mais de uma semana tenho sido lançado de um lado para o outro na morte e no inferno; todo meu corpo parece ter sido espancado, meus membros ainda tremem. Eu quase perdi completamente Cristo, sob ondas e tempestades de desespero e blasfêmia contra Deus. Mas por causa da intercessão dos crentes, Deus começou a ter misericórdia de mim e resgatou a minha alma das profundezas do inferno (Oberman, 323).

Externamente, para muitos, ele parecia invulnerável. Mas aqueles que eram próximos dele conheciam a tentatio [tentação]. Novamente, ele escreveu para Melancthon quanto estava no castelo de Wartburg, em 13 de julho de 1521, enquanto imagina-se que ele estava trabalhando arduamente na tradução do Novo Testamento:

Sento aqui relaxado, endurecido e insensível — ai de mim!, orando pouco, afligindo-me pouco pela igreja de Deus, antes, ardendo com o fogo feroz de minha carne indomável. Trata-se disso: eu deveria estar com inflamado no espírito; na realidade, estou inflamado na carne, com luxúria, preguiça, ociosidade e sonolência. Talvez seja porque você deixou de orar por mim, que Deus se afastou de mim… Nos últimos oito dias, não escrevi nada, nem orei, nem estudei, em parte por autoindulgência, em parte por outro obstáculo vexatório [constipação e hemorroidas]… Eu realmente não posso suportar mais… imploro que ore por mim, pois, aqui em minha reclusão estou submerso em pecados (E.G. Rupp and Benjamin Drewery, editors, Martin Luther: Documents of Modern History, (New York, St. Martin’s Press, 1970), 72).

Estas foram as provações que ele disse que o tornaram um teólogo. Essas experiências faziam parte de seus trabalhos exegéticos tanto quanto o léxico grego. Essas provações me fazem pensar duas vezes antes de murmurar devido as provações do meu ministério. Com frequência sou tentado a pensar que as pressões, conflitos e frustrações são simplesmente distrações do estudo e compreensão. Lutero (e o Salmo 119.71) nos ensina a ver tudo de outra forma. Essa ocorrência estressante que interrompeu o seu estudo pode muito bem ser a própria lente através da qual o texto será aberto para você como nunca antes. Tentatio — tribulação, o espinho na carne — é a contribuição involuntária de Satanás para nos tornarmos bons teólogos.

Mas, Lutero confessou que em tais circunstâncias a fé “excede os meus poderes” (Oberman, 323). Isso nos conduz à última característica de Lutero quanto ao estudo.

Continua na Parte 4

Por: John Piper. © Desiring God Foundation.Website: desiringGod.org. Traduzido com permissão. Fonte: Martin Luther: Lessons from His Life and Labor.

Original: Martinho Lutero: lições a partir de sua vida e labores. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Camila Rebeca Teixeira. Revisão: William Teixeira.