Martinho Lutero: lições a partir de sua vida e labores

(Conferência Bethlehem para Pastores 1996)

Uma das grandes redescobertas da Reforma — especialmente de Martinho Lutero — foi que a Palavra de Deus vem até nós sob a forma de um livro. Em outras palavras, Lutero compreendeu este fato poderoso: Deus preserva a experiência de salvação e santidade de geração em geração por meio de um livro de revelação, não por um bispo em Roma, e não pelos êxtases de Thomas Müntzer e pelos profetas de Zwickau. A Palavra de Deus vem até nós em um Livro. Essa redescoberta moldou Lutero e a Reforma.

Um dos principais oponentes de Lutero na Igreja Romana, Sylvester Prierias, escreveu em resposta às suas 95 teses:

Aquele que não aceita a doutrina da Igreja de Roma e do pontífice de Roma como uma regra de fé infalível, a partir da qual as Sagradas Escrituras também têm a sua força e autoridade, é um herege.

Em outras palavras, a Igreja e o papa são o depósito autoritativo da salvação e da Palavra de Deus; e o Livro é derivado e secundário. “O que há de novo em Lutero”, diz Heiko Oberman, “é a noção de obediência absoluta às Escrituras contra qualquer autoridade; sejam elas papas ou concílios” (193). Em outras palavras, a salvífica, santificadora e autoritativa Palavra de Deus vem até nós em um livro. As implicações desta simples observação são enormes.

Lutero descobre o Livro

Em 1539, ao comentar o Salmo 119, Lutero escreveu: “Neste salmo, Davi sempre diz que irá falar, pensar, falar, ouvir, ler — de dia e de noite, constantemente — nada além da Palavra e dos mandamentos de Deus. Porque Deus deseja dar-lhe o seu Espírito somente através da Palavra externa” (1359). Esta frase é extremamente importante. A “Palavra externa” é o Livro. E o Espírito salvífico, santificador e iluminador de Deus, ele diz, vem até nós através desta “Palavra externa”.

Lutero o chama de “Palavra externa” para enfatizar que é objetiva, fixa, fora de nós e, portanto, imutável. É um livro. Nem a hierarquia eclesiástica nem o êxtase fanático podem substituí-la ou moldá-la. É “externa”, como Deus. Você pode se apossar dela ou rejeitá-la. Mas você não pode torná-la diferente do que é. É um livro com letras, palavras e frases fixas.

E Lutero disse com grande força em 1545, o ano anterior à sua morte: “O homem que deseja ouvir Deus falar, leia a Sagrada Escritura” (62). Antes, ele havia dito em seus sermões em Gênesis: “O próprio Espírito Santo e Deus, o Criador de todas as coisas, é o Autor deste Livro” (62).

Batalha com o Livro

Uma das implicações do fato de que a Palavra de Deus vem até nós em um livro é que o tema desta conferência é “The Pastor and His Study” [O Pastor e Seu Estudo], não “O pastor e sua sessão espiritual”, ou “O pastor e sua intuição” ou “O pastor e seu multi-perspectivalismo religioso”. A Palavra de Deus que salva e santifica, de geração em geração, está preservada em um Livro. E, portanto, no centro do trabalho de cada pastor está o trabalho com esse livro. Chame-o de leitura, meditação, reflexão, cogitação, estudo, exegese ou do que quiser — uma parte grande e central do nosso trabalho é batalhar pelo significado de Deus em um livro e proclamá-lo no poder do Espírito Santo.

Lutero sabia que alguns tropeçariam no puro conservadorismo desse fato simples e imutável. A Palavra de Deus está fixada em um Livro. Ele sabia então, como sabemos hoje, que muitos dizem que essa afirmação anula ou minimiza o papel crucial do Espírito Santo em conceder vida e luz. Lutero, eu penso, diz: “Sim, isso pode acontecer”. Alguém pode argumentar que enfatizar o brilho do sol anula o cirurgião que remove a cegueira. Porém a maioria das pessoas não concordaria com isso. Certamente Lutero não concordaria.

Ele disse em 1520: “Estejam certos de que ninguém senão o Espírito Santo, desde o céu, torna alguém um doutor nas Escrituras Sagradas” (1355). Lutero era um grande amante do Espírito Santo. E a sua exaltação do livro como “Palavra externa” não depreciava o Espírito. Pelo contrário, elevava o grande dom do Espírito à cristandade. Em 1533, ele disse: “A Palavra de Deus é o maior, mais necessário e mais importante objeto na cristandade” (913). Sem a “palavra externa”, não discerniríamos um espírito do outro, e a personalidade objetiva do próprio Espírito Santo se perderia na obscuridade de expressões subjetivas. Estimar o Livro implicava a Lutero que o Espírito Santo é uma Pessoa bela a ser conhecida e amada, e não um barulho a ser sentido.

A Palavra encarnada

Outra objeção à ênfase de Lutero no livro é que a Palavra escrita minimizaria a Palavra encarnada, o próprio Jesus Cristo. Lutero diz que o contrário é verdade. Na medida em que a Palavra de Deus é desconectada da objetiva “Palavra externa”, a Palavra encarnada, o Jesus histórico, torna-se um nariz de cera moldado segundo as preferências de cada geração. Lutero tinha uma arma com a qual buscava livrar a Palavra encarnada de ser vendida nos mercados de Wittenberg. Ele expulsou os cambistas — os vendedores de indulgências — com o chicote da “Palavra externa”, o livro.

Quando ele afixou as 95 teses em 31 de outubro de 1517, a tese de número 45 dizia: “Os cristãos deveriam ser ensinados que aquele que vê um necessitado, mas desvia o seu olhar dele, e compra uma indulgência, recebe não a remissão do papa, mas a ira de Deus” (Oberman, 77). Esse golpe veio do Livro — da história do bom samaritano e do segundo grande mandamento no livro — a “Palavra externa”. E sem o Livro, não haveria golpe algum. E o Verbo encarnado seria o brinquedo de barro de todos. Então, precisamente por causa do Verbo encarnado, Lutero exalta a Palavra escrita, a “Palavra externa”.

É verdade que a igreja precisa ver o Senhor em suas conversas terrenas e caminhando sobre a terra. Nossa fé está enraizada nessa revelação decisiva na história. Mas Lutero reafirmou que essa visão acontece através de um registro escrito. O Verbo encarnado é revelado a nós em um Livro. Não é impressionante que o Espírito nos dias de Lutero, e em nossos dias, era e é praticamente silencioso sobre o Senhor encarnado — exceto quando magnifica a glória de Deus através do registro escrito sobre o Verbo encarnado?

Nem a igreja Romana nem os profetas carismáticos alegaram que o Espírito do Senhor lhes narrou eventos incontáveis ​​sobre o Jesus histórico. Isso é surpreendente. De todas as reivindicações de autoridade sobre a “Palavra externa” (pelo papa), e ao lado da “Palavra externa” (pelos profetas), nenhuma delas traz novas informações sobre a vida encarnada e o ministério de Jesus. Roma se atreve a acrescentar fatos à vida de Maria (por exemplo, a concepção imaculada, que Pio IX anunciou em 8 de dezembro de 1854), mas não à vida de Jesus. Os profetas carismáticos desejaram anunciar novas ações do Senhor no século XVI, e em nossos dias, mas nenhum parece relatar uma nova parábola ou um novo milagre do Verbo encarnado, omitido nos Evangelhos. Nem a autoridade romana nem o êxtase profético acrescentam ou removem algum registro externo sobre o Verbo encarnado.

Por que o Espírito é tão silencioso quanto ao Verbo encarnado — mesmo entre aqueles que usurpam a autoridade do Livro? A resposta parece ser que agradou a Deus revelar o Verbo encarnado a todas as gerações através de um Livro, especialmente através dos Evangelhos. Lutero disse o seguinte:

Os próprios apóstolos consideraram necessário ter o Novo Testamento em grego e guardá-lo seguramente nessa linguagem, sem dúvida, para preservá-lo de forma segura e sadia como em uma arca sagrada. Pois, eles previram tudo o que ocorreria e que agora passou a acontecer, e sabia que, se estivesse apenas na cabeça de alguém, desordem e confusão grosseiras e terríveis, e muitas diferentes interpretações, fantasias e doutrinas surgiriam na igreja, as quais poderiam ser evitadas e das quais o homem simples poderia ser protegido somente se o Novo Testamento fosse escrito neste idioma. (17)

O ministério interno do Espírito não anula o ministério da “Palavra externa”. Ele não duplica o que foi designado a fazer. O Espírito glorifica o Verbo encarnado dos Evangelhos, mas ele não narra novamente as suas palavras e ações para os analfabetos ou pastores negligentes.

A imensa implicação disso para o ministério pastoral é que nós, pastores, somos essencialmente agentes da Palavra de Deus transmitida em um livro. Somos fundamentalmente leitores, mestres e proclamadores da mensagem do Livro. E tudo isso é para a glória do Verbo encarnado e pelo poder do Espírito que habita no interior. Mas nem o Espírito que habita em nós nem o Verbo encarnado nos afastam do Livro que Lutero chamou de “Palavra externa”. Cristo é manifesto em nossa adoração, em nossa comunhão e em nossa obediência à “Palavra externa”. Aqui é onde vemos a glória de Deus na face de Cristo (2 Coríntios 4.6). Então, é por causa de Cristo que o Espírito se concentra no Livro, onde Cristo é evidente, não nos êxtases, onde ele é obscurecido.

A questão específica que desejo tentar responder a você é: Que diferença essa descoberta do livro fez na maneira como Lutero realizou o seu ministério da Palavra? O que podemos aprender a partir de Lutero ao estudarmos a Palavra? Toda a vida profissional de Lutero foi vivida como professor na Universidade de Wittenberg. Então, será útil traçarmos sua vida até esse ponto e depois perguntarmos por que um professor pode ser um modelo útil para pastores.

O caminho para ser um professor universitário

Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, em Eisleben, filho de um mineiro de cobre. Seu pai queria que ele fosse um advogado. E ele estava a caminho dessa vocação na Universidade. Segundo Heiko Oberman, “dificilmente há informações autenticadas sobre os primeiros dezoito anos que levaram Lutero à Universidade de Erfurt” (102).

Em 1502, aos 19 anos, ele recebeu o diploma de bacharelado, de modo inexpressivo, sendo considerado o número 30 dentre os 57 alunos em sua classe. Em janeiro de 1505, ele recebeu seu mestrado em Erfurt e ficou em segundo lugar entre os 17 candidatos. Naquele verão, a providencial experiência semelhante à de Damasco aconteceu. No dia 2 de julho, no caminho de casa para a faculdade de direito, ele foi surpreendido por uma tempestade e lançado no chão por um raio. Ele gritou: “Ajude-me, santa Ana, e me tornarei um monge” (92). Ele temia por sua alma e não sabia como encontrar segurança no evangelho. Foi assim, que ele acabou indo para o mosteiro.

Quinze dias depois, para desgosto de seu pai, ele manteve o seu voto. Em 17 de julho de 1505, ele bateu no portão dos eremitas agostinianos em Erfurt e pediu ao monge principal para aceitá-lo na ordem. Mais tarde, ele disse que essa escolha foi um pecado flagrante — “sem qualquer valor”, pois foi feita contra seu pai e por medo. Então, ele acrescentou: “Mas quanto bem o Senhor misericordioso permitiu em meu ingresso ao mosteiro!” (116). Vemos esse tipo de providência misericordiosa frequentemente na história da igreja, e isso deve nos proteger dos efeitos paralisantes de decisões ruins em nosso passado. Deus não é impedido em seus propósitos soberanos de nos guiar, como ele fez com Lutero, a partir de erros para uma vida frutífera de alegria.

Ele tinha 21 anos quando se tornou um monge agostiniano. Passar-se-ia mais de vinte anos até se casar com Katharina von Bora, em 13 de junho de 1525. Assim, houve mais vinte anos de luta com as tentações de um homem solteiro que tinha fortes inclinações. Mas “no mosteiro”, disse ele, “não pensava em mulheres, dinheiro ou bens; antes, meu coração tremia e se abalava sobre se Deus concederia a sua graça a mim… Pois, eu me desviei da fé e não podia deixar de imaginar que havia irritado a Deus, a quem eu, por sua vez, precisava apaziguar fazendo boas obras” (128). Não houve discussão teológica nos primeiros estudos de Lutero. Ele disse: “Se eu pudesse crer que Deus não estava irado comigo, me tranquilizaria com alegria” (315).

Na Páscoa, 3 de abril (provavelmente) de 1507, ele foi ordenado para o sacerdócio, e no dia 2 de maio, celebrou a sua primeira missa. Ele estava tão sobrecarregado com o pensamento da majestade de Deus, ele diz, que quase fugiu. O monge principal o persuadiu a continuar. Oberman diz que este incidente não é isolado.

Um senso do “mysterium tremendum” da santidade de Deus foi característico de Lutero ao longo de sua vida. Esse senso impediu a rotina de monge de penetrar em suas relações com Deus e guardou os seus estudos bíblicos, orações ou leitura da missa de degenerar em mero ato mecânico; a sua preocupação principal em tudo isso era o encontro com o Deus vivo (137).

Durante dois anos, Lutero ensinou aspectos da filosofia aos monges mais novos. Ele disse mais tarde que a filosofia do ensino era como esperar pelo objeto real (Oberman, 145). Em 1509, o que era real veio e seu amado superior, conselheiro e amigo, Johannes von Staupitz, permitiu o acesso de Lutero à Bíblia, ou seja, ele permitiu que Lutero ensinasse a Bíblia em vez da filosofia moral — Paulo em vez de Aristóteles. Três anos depois, em 19 de outubro de 1512, aos 28 anos de idade, Lutero recebeu seu doutorado em teologia, e Staupitz lhe concedeu a cadeira de teologia bíblica na Universidade de Wittenberg, que Lutero ocupou por todo o restante de sua vida.

 

Continua na Parte 2

Por: John Piper. © Desiring God Foundation.Website: desiringGod.org. Traduzido com permissão. Fonte: Martin Luther: Lessons from His Life and Labor.

Original: Martinho Lutero: lições a partir de sua vida e labores. © Ministério Fiel. Website: MinisterioFiel.com.br. Todos os direitos reservados. Tradução: Camila Rebeca Teixeira. Revisão: William Teixeira.