Um blog do Ministério Fiel
Pelo que William Tyndale viveu e morreu (Parte 2)
(Leia a Parte 1)
Como Tyndale conseguiu isso?
Surge a pergunta: como William Tyndale conseguiu essa conquista histórica? Podemos responder a isso no caso de Tyndale, lembrando duas maneiras pelas quais um pastor deve morrer no ministério. Nós devemos morrer para a noção que nós não temos que pensar ou trabalhar arduamente para conseguir objetivos espirituais. E devemos morrer para a noção de que nosso pensamento e nosso trabalho são decisivos para alcançar os objetivos espirituais.
Paulo disse em 2 Timóteo 2.7: “Pondera o que acabo de dizer, porque o Senhor te dará compreensão em todas as coisas”. Primeiro, pondere. Trabalhe. Não negligencie o trabalho árduo de pensar sobre a verdade apostólica. Mas, em segundo lugar, lembre-se que “o Senhor te dará entendimento”. Você se esforça. Deus dá. Se Deus não der, todo o nosso trabalho é em vão. Mas ele ordena que usemos nossas mentes e que nos esforcemos na realização de objetivos espirituais. Assim Paulo diz em 1 Coríntios 15.10: “trabalhei muito mais do que todos eles; todavia, não eu, mas a graça de Deus comigo”. A chave para a realização espiritual é trabalhar duro, conhecer, crer, sentir e ser feliz pela graça soberana de Deus ser a causa decisiva de todo o bem resultante.
A forma como essas duas verdades se unem na vida de Tyndale explica como ele poderia realizar o que fez. E uma das melhores maneiras de vê-lo é compará-lo com Erasmo, o estudioso humanista Católico Romano que foi famoso por seus livros Enchiridion [Enquiridion] e The Praise of Folly [O Elogio da Loucura] e por seu Novo Testamento grego impresso.
Erasmo era vinte e oito anos mais velho do que Tyndale, mas ambos morreram em 1536 — Tyndale martirizado pela Igreja Católica Romana, e Erasmo um membro respeitado daquela igreja. Erasmo tinha passado algum tempo em Oxford e Cambridge, mas não sabemos se ele e Tyndale se conheceram.
Aparentemente, observa-se semelhanças impressionantes entre Tyndale e Erasmo. Ambos eram excelentes linguistas. Erasmo era um estudioso de latim e produziu o primeiro Novo Testamento grego impresso. Tyndale conhecia oito idiomas: latim, grego, alemão, francês, hebraico, espanhol, italiano e inglês. Ambos amavam o poder natural da linguagem e fizeram parte de um renascimento do interesse no modo como a linguagem funciona.
Por exemplo, Erasmo escreveu um livro chamado De copia que Tyndale sem dúvida usou como estudante em Oxford.[26] Este livro ajudou os alunos a aumentarem as suas habilidades para explorar o potencial “copioso” da linguagem. Isso foi muito influente no início de 1500 na Inglaterra e era usado para treinar os alunos nas possibilidades infinitas da expressão verbal. O objetivo era prevenir a linguagem de afundar-se em mero jargão desgastado e não criativo, e em um discurso sem imaginação, prosaico, sem cor e enfadonho.
Uma lição prática para os estudantes de De copia era dar “nada menos do que cento e cinquenta maneiras de dizer ‘Sua carta tem me deleitado muito’. O objetivo era forçar os alunos a usarem todos os músculos verbais para evitar qualquer indício de flacidez”.[27] Não surpreende que este seja o tipo de mundo educacional que deu origem a William Shakespeare (que nasceu em 1564). Shakespeare é conhecido por seu uso incomparável da copiosidade na linguagem. Um crítico escreveu: “Sem Erasmo, não haveria Shakespeare”.[28]
Assim, tanto Erasmo quanto Tyndale foram educados em uma atmosfera de habilidade consciente.[29] Ou seja, ambos criam no trabalho árduo de dizer as coisas de forma clara, criativa e convincente quando falavam de Cristo.
Não só isso, mas ambos criam que a Bíblia deveria ser traduzida para o vernáculo de todas as línguas. Erasmo escreveu no prefácio de seu Novo Testamento grego:
Cristo deseja que seus mistérios sejam anunciados o mais amplamente possível. Eu desejaria que todas as mulheres também lessem o evangelho e as epístolas de São Paulo e desejo que estes fossem traduzidos em todas as línguas de todo o povo cristão, para que fossem lidos e conhecidos, não apenas pelos escoceses e pelos irlandeses, mas até mesmo pelos turcos e os sarracenos. Desejo que o lavrador cante parte delas ao usar seu arado, que o tecelão possa estar com elas ao usar a lançadeira, que o viajante possa, com suas narrativas, minimizar o cansaço do caminho.
Tyndale não poderia ter dito melhor.
Ambos estavam preocupados com a corrupção e com os abusos na Igreja Católica, e ambos escreveram sobre Cristo e a vida cristã. Tyndale até traduziu o Enquiridion de Erasmo, uma espécie de manual espiritual para a vida cristã — o que Erasmo chamou de filosofia de Cristo.
Mas havia uma enorme diferença entre esses homens, e isso tinha relação direta com a outra metade do paradoxo, ou seja, que devemos morrer não apenas para a preguiça intelectual e linguística, mas também para a presunção humana — autoexaltação humana e autossuficiência. Erasmo e Lutero entraram em choque na década de 1520 sobre a liberdade da vontade — Erasmo defendendo a autodeterminação humana e Lutero disputando pela depravação e escravidão da vontade.[31] Tyndale esteve firmemente do lado de Lutero aqui.
Nossa vontade está trancada e amarrada mais fortemente sob a vontade do demônio do que cem mil correntes prendem um homem a uma estaca.[32]
Porque… [por] natureza somos maus, por isso pensamos e praticamos o mal, e estamos sujeitos à vingança sob a lei, somos condenados à condenação eterna pela lei e somos contrários à vontade de Deus em toda a nossa vontade e em todas as coisas consentimos à vontade do diabo.[33]
Não é possível que um homem natural concorde com a lei, que ela seja boa, ou que o Deus que criou a lei seja justo.[34]
Essa visão da pecaminosidade humana preparou o terreno para a compreensão de Tyndale sobre a glória da graça soberana de Deus no evangelho. Erasmo — e Thomas More com ele — não viram a profundidade da condição humana, sua própria condição, e por isso não viram a glória e o poder explosivo do que os reformadores viram no Novo Testamento. O que reformadores como Tyndale e Lutero viram não foi uma filosofia de Cristo, mas a obra poderosa de Deus na morte e ressurreição de Cristo para salvar pecadores sem esperança, e presos ao inferno.
Erasmo não vive nem escreve neste reino da condição horrível e da salvação graciosa comprada pelo sangue. Ele tem a aparência de reforma em Enquiridion, mas algo está faltando. Caminhar de Erasmo até Tyndale é mover-se (para parafrasear Mark Twain) de um vagalume para um relâmpago.
Daniell expressa isso da seguinte maneira:
Algo no Enchiridion está faltando… É uma obra-prima da piedade humanista… [Mas] a obra de Cristo nos evangelhos, sua obra especial de salvação tão fortemente detalhada ali e nas epístolas de Paulo, está em grande parte ausente. Cristologicamente, onde Lutero troveja, Erasmo produz um som doce: o que para Tyndale era uma fortaleza invencível, no Enquiridion se parece como um jardim de verão.[35]
Onde Lutero e Tyndale eram produndamente zelosos sobre nossa condição humana terrível e a glória da salvação em Cristo, Erasmo e Thomas More brincavam e gracejavam. Quando Lutero publicou as suas 95 teses em 1517, Erasmo enviou uma cópia delas para More — juntamente com uma “carta jocosa incluindo jogos antipapais, e espirituosas críticas satíricas contra os abusos dentro da igreja, o que ambos gostavam de fazer”.[36]
Eu permaneço aqui com esta diferença entre Tyndale e Erasmo porque eu estou tentando meditar sobre como Tyndale conseguiu o feito da tradução do Novo Testamento. Reforma explosiva é o que ele realizou na Inglaterra. Esse não foi o efeito de Erasmo com sua erudita, elitista e inexata nuance de Cristo e sua tradição da igreja. Thomas More e Erasmo podem ter satirizado os mosteiros e os abusos clericais, mas eles estavam sempre brincando, se comparados com Tyndale.
E nisso eles eram muito parecidos com escritores cristãos famosos em nossos dias. Ouça esta impressionante avaliação de Daniell, e veja se você não ouve uma descrição de certos escritores da igreja emergente e sobre os campeões da Nova Perspectiva:
Não apenas não existe Cristo ou o Diabo plenamente anunciados no livro de Erasmo… há um toque de ironia sobre tudo isso, com um sentimento do escritor cultivando uma ambiguidade ligeiramente superior: como se ser dogmático, por exemplo, sobre a teologia completa da obra de Cristo, fosse bastante desagradável, abaixo dos melhores e elitistas patamares humanistas… Por outro lado, Tyndale… é ferozmente obstinado [“sempre cantando uma única nota”]; o assunto em questão, o acesso imediato da alma a Deus sem intermediário, é muito importante para fracas sugestões irônicas de superioridade… Tyndale é tão preciso quanto uma ferramenta de carpinteiro. Mas, no relato de Erasmo sobre as origens de seu livro, há um toque de sucessivas ironias encontradas nos jogos com personae. [37]
É irônico e triste que hoje, supostamente, os escritores cristãos de vanguarda possam atacar essa postura fria, evasiva, imprecisa, artística e superficialmente reformadora de Erasmo e chamá-la de “pós-moderna” e capturar uma geração de pessoas emergentes, inconscientes e historicamente ingênuas que não sabem que estão sendo enganadas pelas mesmas velhas táticas verbais usadas pelos escritores humanistas elitistas das gerações passadas. Nós os vimos no ano passado quando falamos sobre Atanásio (os Arianos escorregadios em Nicéia), e nós os vemos agora nos dias de Tyndale. Não é pós-moderno. É pré-moderno — porque é perpétuo.
O que levou Tyndale a cantar “uma única nota” durante toda a sua vida foi a firme convicção de que todos os homens estavam presos ao pecado, cegos, mortos, malditos e desamparados, e que Deus agira em Cristo para prover a salvação pela graça por meio da fé. Isso é o que estava escondido nas Escrituras latinas e no sistema de penitência e de mérito da igreja. A Bíblia deve ser traduzida por causa do evangelho libertador e vivificante.[38]
Há somente uma esperança para nossa libertação dos grilhões do pecado e da condenação eterna, Tyndale disse: “Nem uma criatura pode soltar os grilhões, exceto somente o sangue de Cristo”.[39]
Pela graça… Somos arrancados de Adão, a terra de todo o mal, e arraigados em Cristo, a raiz de toda bondade. Em Cristo, Deus nos amou, seus eleitos e escolhidos, antes que o mundo tivesse início e nos preservou para o conhecimento de seu Filho e de seu santo evangelho. E quando o evangelho[40] é pregado a nós, ele abre nossos corações e nos dá graça para crermos e o espírito de Cristo passa a habitar em nós; e o conhecemos como nosso Pai mui misericordioso, e consentimos com a lei, amando-a interiormente em nosso coração e desejando cumpri-la e nos entristecemos por não o fazermos.[41]
Esta enorme dose de escravidão ao pecado e de libertação pela graça soberana comprada pelo sangue[42] está ausente em Erasmo. É por isso há uma leveza elitista em sua religião — assim como há tanto dessa mesma leveza no evangelicalismo de hoje. O inferno e o pecado, a expiação e a graça soberana não eram realidades relevantes para ele. Mas para Tyndale eram tudo. E no meio dessas grandes realidades estava a doutrina da justificação somente pela fé. É por isso que a Bíblia precisava ser traduzida e, finalmente, é por isso que Tyndale foi martirizado.
Pela fé somos salvos apenas ao crer nas promessas. E, embora a fé nunca esteja separada do amor e das boas obras, contudo nossa salvação não é imputada nem ao amor, nem às boas obras, mas somente à fé.[43]
A fé, a mãe de todas as boas obras, nos justifica, antes que possamos fazer alguma boa obra; como o marido casa com sua esposa antes que possa ter filhos legítimos com ela.[44]
Essa é a resposta a como William Tyndale empreendeu o feito da tradução do Novo Testamento e a escrita de livros que incendiaram a Inglaterra com a fé Reformada. Ele trabalhava assiduamente como o artista mais hábil na arte da tradução envolvente, e era profundamente apaixonado pelas grandes verdades doutrinárias do evangelho da graça soberana. O homem está perdido, espiritualmente morto, condenado. Deus é soberano; Cristo é suficiente. Fé é tudo. A tradução da Bíblia e a verdade bíblica eram inseparáveis para Tyndale, e no final foi a verdade — especialmente a verdade da justificação pela fé — que inflamou a Grã-Bretanha com fogo Reformado e depois trouxe a sentença de morte a este tradutor da Bíblia.
#26 “Tyndale dificilmente teria negligenciado De copia”. Daniell, Tyndale, p. 43. Este livro passou por 150 acréscimos em 1572.
#27 Ibid., p. 42.
#28 Emrys Jones, The Origins of Shakespeare [As Origens de Shakespeare] (Nova York: Oxford University Press, 1977), p. 13.
#29 “Tyndale como artesão consciente não foi apenas negligenciado, mas negado: ainda que as evidências do livro que se segue tornem além de questionamente que ele, como um mestre, usou habilidade na seleção e arranjo de palavras que aprendeu parcialmente na escola e universidade, e parcialmente desenvolveu a partir do trabalho pioneiro de Erasmo”. Daniell, Tyndale, p. 2.
#30 Ibid., p. 67.
#31 O livro de Erasmo era intitulado On the Freedom of the Will [Sobre a Liberdade da Vontade], e o de Lutero era The Bondage of the Will [A Escravidão da Vontade].
#32 Tyndale, Escritos Selecionados, p. 39.
#33 Ibid., p. 37.
#34 Ibid., p. 40.
#35 Daniell, Tyndale, pp. 68-69.
#36 Ibid., p. 254.
#37 Ibid., Pp. 69-70.
#38 “No âmago da insistência de Tyndale sobre a necessidade das Escrituras em inglês estava a sua compreensão de que Paulo precisava ser entendido em relação à salvação de cada leitor, e ele precisava ser claro ali, acima de tudo”. Ibid., p. 139.
#39 Tyndale, Escritos Selecionados, p. 40.
#40 Aqui está a definição de Tyndale do “evangelho” que soa com alegria exuberante: “Evangelion (que chamamos de evangelho) é uma palavra grega e significa boas, felizes, contentes e alegres notícias, que tornam o coração de um homem alegre e fazem com que ele cante, dance e salte de alegria… [Este evangelho é] todo sobre Cristo, o verdadeiro Davi, como ele lutou contra o pecado, contra a morte e contra o diabo, e os venceu: por meio do que todos os homens que estavam presos ao pecado, feridos pela morte, vencidos do demônio, sem seus próprios méritos ou merecimentos são soltos, justificados, restaurados à vida e salvos, trazidos à liberdade e reconciliados para a graça de Deus e unidos a ele novamente: com tais notícias, os que creem adoram, louvam e agradecem a Deus, ficam alegres, cantam e dançam de alegria”. Ibid., p. 33.
#41 Ibid., p. 37.
#42 “Tyndale era mais do que um pensador teológico. Ele está sendo finalmente entendido, como tendo estado teológica e linguisticamente bem à frente de seu tempo. Para ele, como várias décadas depois para Calvino e no século XX, para Karl Barth) a mensagem primordial do Novo Testamento é a soberania de Deus. Tudo está contido nisso. Como ele escreveu, Isso nunca deve ser perdido de vista… Tyndale, como agora vemos, era original e novo — exceto que ele também era antigo, demonstrando a compreensão de Deus como revelado em todo o Novo Testamento. Para Tyndale, Deus é, acima de tudo, soberano, ativo no indivíduo e na história. Deus é o que afirma ser, em quem somente se encontra a salvação e o crescimento”. Ibid., p. ix.
#43 Ibid., P. 38.
#44 Daniell, Tyndale, pp. 156-157.