Um blog do Ministério Fiel
A garantia constitucional do culto e da crença em Deus
Como ensina a professora e colega Natammy Bonissoni,
Inúmeros conflitos, embates e controvérsias têm sido travados em prol de um único objetivo: a liberdade. O termo liberdade, que atualmente apresenta conotação política, econômica e jurídica, ganhou força a partir do surgimento do Estado cujo foco central era o indivíduo e o usufruto de suas liberdades, que, a partir da ideia de igualdade formal, buscava garantir que todos os homens, livres e iguais, regulassem suas relações mediante a mínima interferência do Estado[1].
Não podemos olvidar que as liberdades do indivíduo sempre foram a força motriz de uma relação saudável entre o Estado e seus jurisdicionados.
A busca pela liberdade envolve necessariamente a relação do indivíduo com o Estado. Os liberais dos sécs. XVIII e XIX, por exemplo, normalmente acreditavam que o Estado era a principal ameaça à liberdade, enquanto que muitos do século XX passaram a enxergar o Estado como o principal promotor da liberdade[2].
Dentre as inúmeras liberdades individuais tuteladas pelo Estado, encontram-se as liberdades de crença e de culto, dispostas no título constitucional dos Direitos e garantias fundamentais, mais especificamente em seu artigo quinto, incisos VI e VII, e se encontram no âmbito de proteção da liberdade de consciência e expressam a liberdade religiosa.
A liberdade de crença é a garantia que qualquer cidadão tem, brasileiro ou não, de optar por professar qualquer religião que assim escolher, assim como, em razão da liberdade de consciência, também, optar por não escolher nenhuma. Da liberdade de culto decorre o livre exercício do culto religioso e de suas liturgias, bem como da assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva e a liberdade dos templos de qualquer culto de se organizarem. No dizer de José Afonso da Silva, a liberdade religiosa engloba a inviolabilidade de crença, a proteção à liberdade de culto e às suas liturgias e ainda a liberdade de organização religiosa[3].
Essas liberdades fundamentais são essenciais para o Estado Democrático Brasileiro, instituído pelo seu povo, como visto anteriormente no item referente ao preâmbulo constitucional. Os direitos fundamentais dos seres humanos, entre eles as liberdades de crença e culto que expressam a liberdade religiosa, são os formadores das instituições democráticas, os quais só podem ter eficácia e vez num Estado Constitucional. O grande filósofo Robert Alexy ensina:
Os Direitos fundamentais e humanos são institutos indispensáveis para a democracia, ou seja, são normas fundantes do Estado Democrático e sua violação descaracteriza o próprio regime democrático. Aquele que estiver interessado também em democracia e, necessariamente, em Direitos fundamentais e humanos. O verdadeiro significado e importância desse argumento está em quem se dirige, precipuamente, aos Direitos fundamentais e humanos como realizadores dos procedimentos e instituições da democracia e faz com que reste patente a ideia de que esse discurso só pode realizar-se num Estado Constitucional Democrático, no qual os Direitos fundamentais e democracia, apenas de todas as tensões, entram em uma inseparável associação[4].
O Pacto de São José da Costa Rica – Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), também consagra a mesma garantia em seu artigo 12, vigente no Brasil a partir de sua adesão em 25 de setembro de 1992:
- Toda pessoa tem Direito à liberdade de consciência e de religião. Esse Direito implica a liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em privado.
- Ninguém pode ser objeto de medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças. (CADH, 1969)
A Convenção Europeia dos Direitos Humanos (1950) arremata em seu artigo 9º:
- Qualquer pessoa tem Direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este Direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou colectivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos. 2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou colectivamente, não pode ser objecto de outras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à protecção dos Direitos e liberdades de outrem. (CEDH, 1950).
O professor J.J. Canotilho, citando G. Jellinek, ensina, na mesma linha acima defendida, que a luta pela liberdade religiosa foi a verdadeira origem dos direitos fundamentais! Vejamos o que diz o mestre:
Esta defesa da liberdade religiosa postulava, pelo menos, a ideia de tolerância religiosa e proibição do Estado em impor foro íntimo do crente uma religião oficial. Por este facto, alguns autores, como G. Jellinek, vão mesmo ao ponto de ver na luta pela liberdade de religião a verdadeira origem dos Direitos fundamentais[5].
O professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho ensina que uma das principais causas de surgimentos dos princípios fundamentais, entre eles da Dignidade da Pessoa Humana, decorre da ordem religiosa e, mais especificamente, dos dogmas cristãos e dos mais remotos ensinamentos bíblicos, corroborando o dito acima quanto à influência judaico-cristã de nosso Estado Constitucional.
A causa profunda do reconhecimento de Direitos naturais e intangíveis em prol do individuo, decorrentes imediatamente da natureza humana, é de ordem filosófico-religiosa. De ordem religiosa porque decorre, sem saltos, dos dogmas cristãos. A igualdade fundamental de natureza entre todos os homens, criados à imagem e semelhança de Deus, a liberdade fundamental de fazer o bem, ou de não o fazer, decorrem dos mais remotos ensinamentos bíblicos[6].
Nesse sentido, Natammy L. A. Bonissoni[7] corrobora com este entendimento ao concluir que o avanço histórico e jurídico do direito à liberdade religiosa, incentivado pelos dogmas cristãos, por meio de seus valores e princípios colocados em prática através de seus adeptos, influenciaram não apenas os direitos humanos, mas, conforme afirmado por Alexis de Tocqueville, também forneceu os padrões morais para o desenvolvimento da Democracia na América, referência para as diversas nações.
Resta evidenciado o fato de que a liberdade religiosa consagrada na Carta Republicana tem especial destaque no Estado Constitucional Brasileiro, sobretudo na instituição e manutenção do Estado Democrático e Laico e dos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos que persegue. E, para assegurar sua plena e eficaz aplicação, são diversos os dispositivos legais na legislação esparsa brasileira, conforme verificamos nos capítulos seguintes deste livro.
Por fim, é vital que a sociedade reconheça a inspiração de sua formação e a exprima publicamente, quer seja por meio de feriados nacionais, estaduais ou municipais religiosos, seja por monumentos ou, ainda, símbolos religiosos no espaço público, sempre com efetiva participação de outras tradições religiosas neste mesmo espaço público. Essa é a máxima expressão da liberdade religiosa. Maritain arremata:
Deveria tal sociedade ter consciência da fé que a inspirou, exprimindo-a publicamente. É óbvio, na verdade, que para qualquer povo essa expressão pública de uma fé comum de veria de preferência assumir as formas daquela confissão religiosa à qual a história e as tradições dêsse povo estivessem mais vitalmente ligadas. Mas as outras confissões religiosas institucionalmente reconhecidas também deveriam participar dessa pública expressão, como acontece nos Estados Unidos atualmente – e seriam também representadas nos conselhos da nacionalidade, de modo a poderem defender seus próprios direitos e liberdades, cooperando na tarefa comum. Quanto aos cidadãos que não pertencessem a qualquer confissão religiosa, teria, apenas de compreender que o corpo político como um todo teria a mesma liberdade em relação à pública expressão de sua própria fé, como êles, na qualidade de indivíduos, eram livres em relação à expressão de suas próprias convicções não religiosas[8].
A liberdade religiosa reforça e protege a individualidade, haja vista que garante o livre exercício do credo de cada um, resultando em um ambiente em que as diferenças são respeitadas, sendo, assim, a abóbada do Estado Democrático de Direito. A professora Janaína Paschoal, com precisão cirúrgica, arremata:
A liberdade religiosa prestigia, reforça a individualidade, que não guarda qualquer relação com o individualismo. A individualidade favorece o respeito à diferença; o individualismo trata do culto ao eu, em prejuízo ao outro. Como já dito, não há nada mais individual que a forma de se conectar com o Criador. A padronização aniquila essa individualidade. Em um Estado laico e, portanto, plural, as convicções pessoais, religiosas, agnósticas, antirreligiosas e ateias pululam. No Estado ateu, em que o intuito é padronizar, essas convicções são asfixiadas[9].
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[1] BONISSONI, Natammy Luana de Aguiar. A inviabilidade de subsistência de um Ambiente Multicultural Laico. Tese. UNIVALI e UNIPG. Disponível em: <https://www.univali.br/Lists/TrabalhosDoutorado/Attachments/173/Tese%20-%20Natammy%20Luana%20de%20Aguiar%20Bonissoni.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2018.
[2] KOYZIS, David T. Visões e Ilusões Políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2014, p.51.
[3] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 19.ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p.251.
[4] ALEXY, Robert. Direito, razão, discurso, estudos para a filosofia do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.130-131.
[5] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p.503.
[6] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 22.ed., atual. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 248.
[7] BONISSONI, Natammy Luana de Aguiar. A inviabilidade de subsistência de um Ambiente Multicultural Laico. Tese. UNIVALI e UNIPG. Disponível em: <https://www.univali. br/Lists/TrabalhosDoutorado/Attachments/173/Tese%20 %20Natammy%20Luana%20 de%20Aguiar%20Bonissoni.pdf>. Acesso em: 17 abr. 2018.
[8] MARITAIN, Jacques. O Homem e o Estado. Rio de Janeiro: Agir, 1966, p.168-169.
[9] PASCHOAL, Janaína Conceição. Religião e Direito Penal – Interfaces sobre temas aparentemente distantes. São Paulo: LiberArs, 2018, p. 69.