Um blog do Ministério Fiel
O poder da espada na perspectiva bíblica
O sequestro de trinta e sete pessoas em um ônibus na ponte Rio-Niterói, no dia 20 de Agosto de 2019, e o seu desfecho (em que o sequestrador foi morto por um atirador de elite da Polícia Militar), levantou os ânimos de muitos cristãos sobre quais os limites do pensamento evangélico sobre a morte de um criminoso, legítima defesa e a validade do ato de comemorar a preservação da vida dos reféns, e a morte do delinquente.
A cosmovisão cristã tem uma resposta bem delimitada a respeito do assunto, e compete a nós compreender o norte escriturístico e o que a expressão dela, contida nos documentos de fé cunhados ao longo da Reforma Protestante, tem a dizer sobre o tema.
A responsabilidade do governo na segurança pública: uma determinação cristã
Para adentrar ao tema, precisamos reconhecer que bons governos só existirão se conduzidos sobre premissas bíblicas. O objetivo final de qualquer bom governo é a busca incessante do bem comum, centrado na dignidade da pessoa humana, como muito bem nos ensinou João XXIII, em sua encíclica “Pacem in Terris”[1]. A ideia de bem comum tem inspiração nas Sagradas Escrituras, ou seja, bons governos provém da vontade de Deus para os homens, e atendem os crentes em Deus e os não crentes, da mesma forma.
“Elemento fundamental do bem comum é o reconhecimento da ordem moral e a indefectível observância de seus preceitos. “A reta ordem entre as comunidades políticas deve basear-se sobre a rocha inabalável e imutável da lei moral, manifestada na ordem do universo pelo próprio Criador e por ele esculpida no coração do homem com caracteres indeléveis… Qual resplandecente farol deve ela, com os raios de seus princípios, indicar a rota da operosidade dos homens e dos Estados, os quais devem seguir os seus sinais admoestadores, salutares e úteis, se não quiserem abandonar à sanha das procelas e do naufrágio todo o trabalho e esforço para estabelecer uma nova ordem de coisas[2]”
Por outro lado, não podemos esquecer que a sociedade humana e a comunidade política só poderão alcançar o bem comum por meio de autoridades legitimamente constituídas e de um governo que não “dê as costas” para a lei natural, cravada no coração do homem. Deus não “elege” o governante “A” ou “B”, mas o poder de governar emana de Deus, e aqui está o grande X da questão.
“Esta autoridade vem de Deus, como ensina são Paulo: “não há poder algum a não ser proveniente de Deus” (Rm 13, 1-6). A esta sentença do Apóstolo faz eco a explanação de são João Crisóstomo: “Que dizes? Todo governante é constituído por Deus? Não, não afirmo isso. Não trato agora de cada governante em particular mas do governo como tal. Afirmo ser disposição da sabedoria divina que haja autoridade, que alguns governem, outros obedeçam e que não se deixe tudo ao acaso ou à temeridade humana”.Com efeito, Deus criou os homens sociais por natureza e, já que sociedade alguma pode “subsistir sem um chefe que, com o mesmo impulso eficaz, encaminhe todos para o fim comum, conclui-se que a comunidade humana tem necessidade de uma autoridade que a governe. Esta, assim como a sociedade, se origina da natureza, e por isso mesmo, vem de Deus[3]“.
O “X” da questão do poder de governar advém de princípios morais que tem como princípio e fim o próprio Deus de Israel, e, compete ao governante compreender que seu poder repousa, ou melhor, deriva desta ordem moral.
“A autoridade não é força incontrolável, é sim faculdade de mandar segundo a sã razão. A sua capacidade de obrigar deriva, portanto, da ordem moral, a qual tem a Deus como princípio e fim. Razão pela qual adverte o nosso predecessor Pio XII, de feliz memória: “A ordem absoluta dos seres e o próprio fim do homem (ser livre, sujeito de deveres e de direitos invioláveis, origem e fim da sociedade humana) comportam também o Estado como comunidade necessária e investida de autoridade, sem a qual não poderia existir nem medrar… Segundo a reta razão e, principalmente segundo a fé cristã, essa ordem de coisas só pode ter seu princípio num Deus pessoal, criador de todos. Por isso, a dignidade da autoridade política tem sua origem na participação da autoridade do próprio Deus[4]”
Se por um lado a ordem moral obriga o governante, caso ele queira o bem comum de seu povo, por outro, orienta os cidadãos para que pratiquem e reconheçam o certo e o errado. Isto não se confunde com uma imposição religiosa, que é típica de governos teocráticos. Trata-se de uma proteção das instituições. Sem instituições fortes, resta impossível a busca do bem comum. Ensina Wayne Grudem:
“Essa percepção interna do certo e do errado, que Deus dá a todas as pessoas, significa que elas frequentemente aprovarão padrões morais que refletem muitos dos padrões morais das Escrituras. […] Em muitos outros casos essa percepção interior da consciência conduz as pessoas que aprovam ou proíbem, totalmente de acordo com as leis morais das Escrituras: as pessoas frequentemente estabelecem leis ou têm costumes que respeitam a santidade do matrimônio e da família, protegem a vida humana e proíbem o roubo e a falsidade no falar.”[5]
A noção de um bom governo se expressa quando a dignidade da pessoa humana é preservada e a lei natural cumprida: segurança pública, por exemplo, quando o Estado efetivamente pune quem é mau. Isto vai muito além da acusação de que aqueles que comemoram o resultado da operação de resgaste na ponte são pessoas de coração ruim. Na verdade, é um ato bíblico, comemorar quando o governo protege e cuida do justo, afastando a mão pesada e armada do homem mal – o povo está reconhecendo o governo justo que promove segurança, conforme preleciona Provérbios 29:4.
Os atos de compaixão e misericórdia não se confundem com o poder legitimado do Estado, dado por Deus, para recompensar os bons e punir os maus, como muito bem ensina Lutero em “Sobre a Autoridade Secular. Até aonde se deve a obediência[6]”. Não podemos observar e zelar por apenas uma das premissas (1. Atos de misericórdia e 2. Poder punitivo do Estado), sob pena de as subvertermos, transformando-as em expressões selvagens e ideológicas, de esquerda ou de direita. O mesmo governo deve atender o pobre miserável, vítima do ciclo intergeracional da pobreza, também deve garantir a disciplina e a punição, que não só tem caráter repressivo a atitudes maléficas, mas também pedagógico. Neste sentido, a Confissão Belga arremata:
Artigo 36 – O Ofício das Autoridades Civis: Cremos que nosso bom Deus, por causa da perversidade do gênero humano, constituiu reis, governos e autoridades. Ele quer que o mundo seja governado por leis e códigos, para que a indisciplina dos homens seja contida e tudo ocorra entre eles em boa ordem. Para este fim Ele forneceu às autoridades a espada para castigar os maus e proteger os bons (Romanos 13:4).[7]
Nunca é demais lembrar da primeira letra do acróstico calvinista (T: Total Depravity), que por sinal é ponto comum entre a maioria dos cristãos (Calvinistas, Luteranos, Arminiamos e Católicos Romanos). O homem é naturalmente mal e totalmente depravado – sua condição pecaminosa está devidamente descrita na Bíblia Sagrada, a partir do primeiro pecado de Adão, nos lembrando o salmista que “em pecado me concebeu minha mãe” (Salmo 51:5). Esta questão avoca a necessidade do governo como instrumento de Deus para refrear os atos malignos, sobretudo aqueles que venham a gerar perigo ao bem comum:
“A Bíblia reconhece que, em algumas pessoas, a propensão para o mal torna-se excepcionalmente forte e violenta e, nesses casos, deve ser refreada por força superior (ou seja, pelo governo) a fim de evitar que a sociedade seja prejudicada. Por isso, Paulo diz: “Os governantes não são motivo de temor para os que fazem o bem, mas sim para os que fazem o mal” (Rm 13.3).”[8]
Ciente do valor que o governo tem na proteção dos seus governados, eventos chave, frutos da Reforma Protestante, fizeram questão de definir os pilares da Igreja quanto ao governo civil e o papel dos magistrados – entendendo que a função do magistrado, i.e. governador, implica na tomada de providências para evitar o homicídio dos justos, conforme nos rememora o catecismo de Heildeberg:
“Dia do Senhor 40 P.105. O que exige Deus no sexto mandamento? R. Que eu não devo desonrar, odiar, injuriar nem matar o meu próximo por pensamentos, palavras, ou gestos e muito menos por ações, por mim mesmo ou através de outros;1 antes, devo fazer morrer todo desejo de vingança.2 Além disso, não devo me fazer mal nem me expor levianamente ao perigo.3 Por isso também o governo empunha a espada para impedir homicídios.4 1. Gn 9.6; Lv 19.17, 18; Mt 5.21, 22; 26.52. 2. Pv 25.21, 22; Mt 18.35; Rm 12.19; Ef 4.26. 3. Mt 4.7; 26.52; Rm 13.11-14. 4. Gn 9.6; Ex 21.14; Rm 13.4.”[9]
No mesmo sentido, precisamos reconhecer, estimular e saudar, quando o governante oferece os meios necessários para um bom trabalho daqueles que estão encarregados pela preservação da vida do povo e pela punição do homem mal (forças policiais e sistema judiciário).
“É evidente que esse governo é uma dádiva de Deus para a humanidade em geral, porque Paulo diz que o governante é “ministro de Deus para a humanidade em geral, porque Paulo diz que o governante é “ministro de Deus para teu bem” e que ele é “ministro de Deus, vingador, para castigar o que pratica o mal” (Rm 13.4). Um dos principais expedientes que Deus usa para restringir o mal no mundo é o governo humano. As leis humanas, as forças policiais e os sistemas judiciais proporcionaram uma poderoso restringente (contenção) às ações do mal, e essas coisas são necessárias porque existe no mundo muito mal irracional que só pode ser restringido pela força e não pela razão ou educação.”[10]
É natural que fatos como este que ocorreu no Rio de Janeiro resultam em uma comoção maior, pelo nosso histórico como povo vulnerável: o temor de andar nas ruas, a certeza de que o sequestrador vai concluir seu ato com o homicídio de alguém ou de muitos, a conformidade de que o usurpador vai desfrutar tranquilamente do “fruto” do seu roubo ou furto – essas situações, corriqueiras, dão à situação um ar de (des)esperança.
Em síntese, por todo exposto neste singelo artigo, precisamos reconhecer que o ato de promover e aplaudir publicamente a figura do atirador de elite é um reconhecimento legítimo, onde aqueles que servem ao povo como figuras da administração e segurança pública, não pendendo para os atos de corrupção e negligência com o interesse público, devem ser recompensados e valorizados pelos seus superiores, pelo governante e, especialmente pelo povo.
Provérbios 29.10: Os assassinos detestam a pessoa íntegra, mas os homens retos protegem a vida de quem vive em integridade.
Nunca é demais lembrar da história bíblica em que Davi mata o gigante Golias, imagine se ele (Davi), tivesse pensado na mãe de Golias…
1 Samuel 18.6: Voltando o exército, depois de Davi ter matado o filisteu, de todas as cidades de Israel saíam as mulheres ao encontro do rei Saul, cantando e dançando alegremente, ao som de tamborins e címbalos.
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[1] Sim, além dos escritos de Bento XVI, existem textos sensacionais oriundos da Santa Sé, então deixe de “ranço”! http://w2.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem.html . Recomendo, também, a leitura da Rerum Novarum de Leão XIII: http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html
[2] Item 85: http://w2.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem.html , acesso em 25.ago.2019.
[3] idem Item 46.
[4] idem item 47.
[5] GRUDEM, Wayne. TEOLOGIA SISTEMÁTICA (Atual e Exaustiva). Vida Nova. São Paulo, 1999. P. 552
[6] Ou “Da autoridade Secular”.
[7] BRÉS, Guido de. Confissão Belga. Disponível em < http://www.monergismo.com/textos/credos/confissao_belga.htm >
[8] GRUDEM, Wayne. Política Segundo a Bíblia: princípios que todo cristão deve conhecer. Vida Nova. São Paulo, 2014. p. 176
[9] URSINUS, Zacarias. Catecismo de Heidelberg. Disponível em: < http://www.heidelberg-catechism.com/pdf/lords-days/O%20CATECISMO%20DE%20HEIDELBERG%20(Portuguese).pdf >
[10] GRUDEM, Wayne. Política Segundo a Bíblia: princípios que todo cristão deve conhecer. Vida Nova. São Paulo, 2014. p.