Religião na escola, pode?

Infelizmente a marca positivista traduzida na afirmação “estado laico é sinônimo de estado ateu” ainda é forte em nosso país. Mesmo os portadores de uma confissão de fé cristã acreditam na falsa ideia de que a confessionalidade não pode interferir na educação. Importa conhecer os desdobramentos do Estado Laico e como nosso ordenamento jurídico trata da questão do ensino religioso.

Na verdade, o nosso legislador compreende a importância do ensino religioso na formação do pensamento humano. Vamos além: o legislador não apenas entende, como reconhece a função primária do ensino religioso, que está ligada ao sentimento religioso, e que rememora todos os feitos que a religião cristã produziu na construção da civilização ocidental. Em suma, temos três motivos importantes para defender a validade e a legalidade do ensino religioso: por ser uma expressão da fé, por que a liberdade de crença é um direito fundamental, e por todas as contribuições intelectuais e morais que a religião ofereceu e permanece ofertando aos homens e mulheres.

Nunca é demais lembrar que o Estado Laico Brasileiro se assenta na Dignidade da Pessoa Humana, Legalidade e Segurança Jurídica, buscando o bem comum de seus jurisdicionados, atendendo suas necessidades básicas, tais como segurança e justiça.  Outra necessidade básica do ser humano é a busca pela espiritualidade e pelo transcendental, essa não provida pelo Estado Laico, mas reconhecida por ele como básica para a plenitude da Dignidade da Pessoa Humana de seus jurisdicionados.

E a Constituição Brasileira expressa a necessidade da presença curricular do ensino religioso, reconhecendo a importância da ordem espiritual do indivíduo. Reza o Texto Constitucional:

Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. § 1º – O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

A Educação Religiosa está inclusa no que a doutrina denomina de rex mixtae[1], que são as matérias sobre as quais tanto a autoridade eclesiástica quanto o poder civil possuem interesse e competência. Neste particular da pessoa humana, tanto a Igreja quanto o Estado possuem o direito de intervir, ambos em busca do bem comum, a primeira na ordem transcendente, o segundo, na imanente.

Arremata Marcos Soler:

Ao estabelecer a possibilidade do ensino religioso nas escolas públicas, o Estado não buscou interferir na liberdade individual de crença, mas como bem asseverou Anna Cândida da Cunha Ferraz, “buscou-se atribuir atuação positiva ao Estado no sentido de propiciar aos alunos das escolas públicas a efetiva realização da liberdade de religião em todas as suas formas de expressão”.[2]

O ensino religioso em escolas públicas não colide com o princípio da laicidade, já que ambas as autoridades (públicas e eclesiásticas) gozam de interesse legítimo na formação da pessoa humana. Assim sendo, o ensino religioso é fundamental na escola pública, sem nunca olvidar da possibilidade de escusa de consciência, conforme o próprio texto constitucional prevê ao utilizar a expressão “matrícula facultativa”.

Cumpre salientar que a escolha confessional de cada pessoa é estritamente íntima e particular, assegurada constitucionalmente pela liberdade religiosa, impedindo, em qualquer esfera, tanto de governo quanto particular, a imposição de determinada crença ou ponto de vista que colida com esta. Nestes casos, a pessoa suscitará objeção de consciência, desobrigando-se do ensino ou ponto de vista que confronte com sua fé, não importando qual seja, ou até mesmo a ausência dela, sendo que, na medida do possível e necessidade, cumprindo prestação alternativa.

O renomado professor Jorge Miranda ensinou, em conferência ministrada na capital federal brasileira[3], que posteriormente foi convertido em artigo na Revista do Instituto Brasiliense de Direito Público, que não existe nenhuma contradição entre o ensino da religião e a moral nas escolas públicas e a regra da não confessionalidade do ensino público, isto porque a não confessionalidade do ensino público remete à não identificação com nenhuma religião, ou seja, não pode e não deve o Estado impor alguma religião, mas deve permitir todas, em liberdade e igualdade.

Cumpre ressaltar que o ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental é regulamentado pela lei federal que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n.9.394/96:

Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

  • 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores.
  • 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso.

Na verdade, o Estado Brasileiro, ao adotar um laicismo colaborativo (art. 19, I, da CRFB/88), atua com neutralidade benevolente em face ao fenômeno religioso, uma vez que seu Estado Constitucional, de formação judaico-cristã, assenta-se e, principalmente, fundamenta-se na dignidade da pessoa humana. Assim, assegura e garante a livre manifestação da fé, intimamente vinculada à dignidade do ser humano e sua atuação secular paralela ao fenômeno religioso.

A relevância deste tema é enorme, tanto que as cláusulas 18 e 12, respectivamente, do Tratado Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e do Pacto de São José da Costa Rica, asseguram o ensino religioso e garantem aos pais o direito de ensinar as suas convicções morais e religiosas para seus filhos.[4]

Art. 18 […] 4. Os Estados Partes do presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e, quando for o caso, dos tutores legais – de assegurar a educação religiosa e moral dos filhos que esteja de acordo com suas próprias convicções.[5]

Art. 12 […] 4. Os pais, e quando for o caso os tutores, têm direito a que seus filhos ou pupilos recebam a educação religiosa e moral que esteja acorde com suas próprias convicções.[6]

Vale lembrar da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.439 DF julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 2017. Em sessão plenária, por maioria dos votos (6 x 5), os ministros entenderam que o ensino religioso nas escolas públicas brasileiras pode ter natureza confessional.

“A interdependência e complementariedade das noções de Estado Laico e Liberdade de Crença e de Culto são premissas básicas para a interpretação do ensino religioso de matrícula facultativa previsto na Constituição Federal, pois a matéria alcança a própria liberdade de expressão de pensamento sob a luz da tolerância e diversidade de opiniões.”[7]

Este conjunto de informações ressaltam dois pontos importantes: a construção da lei no Estado Democrático de Direito, uma conquista para todos os brasileiros, não deve ser proclamada apenas quando convém – e este é o grande problema daqueles que insistem em propagar um ensino ateu, para todas as crianças: a lei só é rememorada quando convém.

Segundo ponto, a necessidade de abandonar esta herança ateia que nos foi empurrada discretamente e que pode atingir a educação de nossos filhos. A Tradição Cristã nos trouxe uma coleção de contribuições, e o legislador reconhece a legalidade do desejo dos pais de que seus filhos recebam o ensino desta natureza, não sendo o Estado figura para interferir, pelo contrário, sua função é viabilizar.

*Este artigo contém partes retiradas com autorização do livro: Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas/ Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina. 2ª Ed. rev. ampl. – Porto Alegre: Concórdia, 2019.

 

[1] DALLA TORRE, Giuseppe. La questione scolastica nei rapporti fra stato e chiesa. Bologna: Patron, 1989, p. 34-37
[2] SOLER, Marcos. A Igreja e o Direito Brasileiro – Uma análise das leis e sua aplicação na vida das Igrejas. São Paulo: LTr, 2010. Op. Cit., p. 124
[3] Conferência proferida, em Brasília, em 18 de Junho de 2011, no Seminário sobre “O Estado laico e a liberdade religiosa”, promovido pelo Conselho Nacional de Justiça.
[4] O artigo 5º da Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções prevê a mesma proteção.
[5] Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm >
[6] Disponível em: < http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm >
[7] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.439 Distrito Federal. Disponível em: < http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=314650271&ext=.pdf >

Por: Thiago Rafael Vieira & Jean Marques Regina. © Voltemos ao Evangelho. Website: voltemosaoevangelho.com. Todos os direitos reservados. Original: Religião na escola, pode?