Um blog do Ministério Fiel
O município pode impedir a instalação de igrejas?
Considerações sobre o plano diretor
Este artigo contém partes do livro: Direito Religioso: Questões Práticas e Teóricas, de Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina. Publicado com permissão.
Será que um país como o Brasil, com um modelo de laicidade tão interessante e benevolente, pode abrir possibilidade para fazer uma pergunta como a que está presente no título deste artigo? Sim, caro leitor. Infelizmente, temos municípios geridos por agentes políticos que subvertem o conceito de propriedade disposto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, e que não tem o menor escrúpulo para respeitar o precioso princípio da liberdade religiosa: temos situações que representam risco ao exercício de culto, consistindo em verdadeiros embaraços (fato esse expressamente vedado pela CRFB/88) ao nosso Estado Laico, tão caro.
Primeiro, o direito brasileiro consagra aquilo que a doutrina consolida como função social da propriedade. Trata-se de um princípio que tem por fim evitar o desperdício da propriedade, e garantir que ela seja bem utilizada, a fim de atender os interesses de todos dentro do país. Tanto no art. 5º, inciso XXIII, quanto na relação dos princípios gerais da atividade econômica (art. 170, inciso III), ambos da nossa Carta Maior, encontraremos a determinação que implica no uso saudável da propriedade, conciliado com o princípio da propriedade privada (art. 170, inciso II).
É por tal entendimento constitucional, que administração pública, fazendo uso dos seus poderes, cria mecanismos para que a ordem seja mantida a nível nacional, e sobretudo, a nível local. Isso se dá por meio do plano diretor municipal, que tem por função:
[…] planejar e adequar o parcelamento e a ocupação do solo urbano na municipalidade, visando uma melhor convivência de seus munícipes, evitando problemas de vizinhança, tais como uma indústria que produza nível elevado de barulho, fumaça ou odor numa área tipicamente residencial.[1]
Não entrando no mérito de ser uma medida que diminua a liberdade individual de cada um dispor da sua propriedade da maneira que assim venha a aprouver, maculando, assim, um princípio de direito natural tão essencial, estamos tratando do tema com base no ordenamento jurídico vigente. A administração pública, no âmbito dos municípios, trabalha dessa maneira, organizando a propriedade com a delimitação de zonas, para que assim o município tenha uma infraestrutura organizada, possibilitando o bom andamento do trânsito, promoção do sossego e afins (mesmo que isto esteja só no papel). Um exemplo de plano diretor, é o do Município de Porto Alegre, ao qual citamos um trecho da sua estrutura, apenas a título de exemplo:
PARTE I DO DESENVOLVIMENTO URBANO AMBIENTAL TÍTULO I DOS PRINCÍPIOS Art. 1º A promoção do desenvolvimento no Município de Porto Alegre tem como princípio o cumprimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, nos termos da Lei Orgânica, garantindo: I – a gestão democrática, por meio da participação da população e das associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, na execução e no acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; (Alterado pela L.C. n° 646, de 22 de julho de 2010). II – a promoção da qualidade de vida e do ambiente, reduzindo as desigualdades e a exclusão social; III – a integração das ações públicas e privadas através de programas e projetos de atuação; IV – o enriquecimento cultural da cidade pela diversificação, atratividade e competitividade; V – o fortalecimento do papel do Poder Público na promoção de estratégias de financiamento que possibilitem o cumprimento dos planos, programas e projetos em condições de máxima eficiência; VI – a articulação das estratégias de desenvolvimento da cidade no contexto regional metropolitano de Porto Alegre; VII – o fortalecimento da regulação pública sobre o solo urbano mediante a utilização de instrumentos redistributivos da renda urbana e da terra e controle sobre o uso e ocupação do espaço da cidade; […][2]
Até aí, nenhuma objeção. O plano diretor municipal é um bom instrumento de organização local. O grande problema, é quando a prefeitura municipal, ou o prefeito, ou qualquer agente público, tentam impedir a construção de Igrejas ou templos de qualquer culto, e colocam como justificativa o plano diretor! Sim, da mesma forma que temos planos diretores incríveis, encontraremos municípios efetivando planejamento com base na violação á liberdade religiosa, utilizando instrumento público para tentar legitimar uma pretensão totalmente desconforme com a vedação ao embaraço para o exercício de culto.
Ao delimitar zonas aos quais é vedado a construção de templos de qualquer culto, ou ao criar requisitos que não estão previstos na Constituição, temos por violada a liberdade religiosa, a liberdade de culto, e a concretização do embaraço que não é permitido na República Federativa do Brasil.
Simplesmente alguns munícipios brasileiros têm sancionado leis municipais que proíbem a criação de templos religiosos em determinadas áreas da cidade, em total desrespeito ao ordenamento jurídico pátrio e diversos tratados internacionais de direitos humanos, alguns, inclusive com força de norma constitucional, pois recebidos pelo ordenamento jurídico pátrio na forma do artigo 5, § 3º da Constituição Brasileira.[3]
Em sentido de análise técnica, quando o Município age de tal forma, ele coloca um interesse primário, nacional, sob o domínio de um interesse individualista, que está em última lugar na hierarquia de prioridades nos quesitos Constituição e Lei. Para piorar, contraria até mesmo disposições internacionais que garantem a liberdade religiosa e a reconhecem como uma expressão sumária da dignidade da pessoa humana.
Não é crível que o exercício constitucional de culto se submeta a uma lei municipal de interesse local. O culto e o fenômeno religioso em si, independente da crença ou fé professada, não podem ser restringidos, embaraçados ou inviabilizados por uma lei municipal, estadual ou federal. Trata-se de uma afronta a um dos direitos basilares do homem, inclusive da própria Declaração Universal dos Direitos do Homem. Não pode uma norma restringir a liberdade religiosa decorrente da Dignidade da Pessoa Humana sob o pretexto da ordem pública ou bons costumes, na verdade sobre nenhum pretexto.[4]
A finalidade essencial de uma organização religiosa está no exercício da fé. O local de culto é uma extensão da crença de determinadas pessoas. Para o Cristianismo, o templo tem a função de promover comunhão entre os irmãos, centralizar os cultos para que todos participem, além de ser um local para promoção de ensino bíblico e afins. Para outras religiões, o local de culto tem o seu valor pelos motivos aos quais convém à sua confissão religiosa. Em todos estes casos, uma lei municipal, muito menos uma lei estadual ou até mesmo uma federal, NÃO possuem competência para desobedecer a imposição constitucional da liberdade de crença e de culto. Ao tentar impedir a consolidação de um circunscrição de culto, o ente afronta fatalmente o sentimento religioso.
[1] VIEIRA, Thiago Rafael. REGINA, Jean Marques. Direito religioso: questões práticas e teóricas. 2. ed. rev. ampl. – Porto Alegre: Concórdia, 2019. p. 285.
[2] Veja completo em PDDUA Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental. Disponível em: < http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/spm/usu_doc/planodiretortexto.pdf >
[3] VIEIRA, Thiago Rafael. REGINA, Jean Marques. Direito religioso: questões práticas e teóricas. 2. ed. rev. ampl. – Porto Alegre: Concórdia, 2019. p. 286.
[4] Ibidem.